Wednesday, November 23, 2011

Blogue em mudanças

Blogue em mudanças

Desde Novembro que estou a preparar algumas mudanças no blogue. Resolvi que o Infinito Pessoal iria passar a ter um novo figurino, pelo que vos convido a partir de hoje a entrar no Sociologia e Cultura. Agradeço o carinho de todos e espero a Vossa visita. Muito obrigado por tudo. Bem Hajam!

Luís Galego

http://sociologias-cultura.blogspot.com/

Sunday, October 02, 2011

Beau-Séjour...




«a que distância deixaste

o coração?»

José Tolentino Mendonça





- Perdoar-me-ás, Francisca, mas sou um homem rude e franco

disse Gabriel, com uma expressão séria no rosto, sentindo os músculos da cara arrepanhados, numa claro sentimento de desconforto.

- Meu anjo, és bela, impenetravelmente bela, e tão adorável que estremeço só de te beijar os cabelos, mas preciso de tempo. A nossa relação invade-me, força-me a viver numa correria entre tu e eu. Foi tudo muito acelerado e sinto-me perturbado.

Francisca como se tivesse levado um tiro no coração. Estavam sentados a uma canto no pequeno bar do Palácio Beau-Séjour, na expectativa de que naquele silêncio do Outono ninguém os conhecesse. Mas nem assim conseguiam iludir a impressão de estarem a ser observados. Gabriel disse

- É preciso que entendas, não se trata tão só de um doce pecado ou de segredos partilhados, existe a Inês e os gémeos de um lado, tu do outro e eu com a cabeça metida num emaranhado de espinhos. É tudo novo, estou confuso e algo desamparado e sem coragem de agarrar o toiro pelos cornos. Francamente não sei o que pensar.

Francisca escutava em silêncio, desolada, exalando um ar de profunda humilhação, com a sensação de ter sido condenada a habitar nos arredores monótonos da vida. Aquele encontro estava longe de ser uma Ode à Alegria. Gabriel não usava aliança, mas o coração brotava-lhe nos dedos. Desde o primeiro instante que Francisca se deliciava a admirar as mãos daquele homem de lábios grossos e olhos negros como a noite, humilde desenhador de arquitectura de uma autarquia da periferia, cuja taciturnidade era quebrada por espasmos de enorme jovialidade, embora quase impotente do ponto de vista linguístico. Foi amor ao primeiro toque, desejava-o palmo a palmo, milímetro a milímetro. Gabriel disse

- A verdade dói, mas também não podemos desprezar o António e os teus filhos

isto com o rosto virado de lado, assemelhando-se as suas palavras a uma letra para uma canção sobre traição. Francisca ouvia-o mas com os olhos desviados para o quadro exposto na parede: uma reprodução de Menez, sentido agudo da luz e da cor, em composições abstractas onde as vagas geometrias entranhavam um ritmo exclusivamente plástico na abstracção. A perseguição das palavras

- E tenho o horror de não ser capaz de ultrapassar este terrível sentimento de culpa

esmagavam-na. Não muito longe do Palácio há um esconderijo algures num canto perdido do mundo, onde se amaram meia dúzia de vezes, um prédio com as paredes manchadas de preto e a palavra PENSÃO quase apagada pela sujidade e pelo tempo, percorriam um corredor azul-mar em passos incertos, com a intensidade do medo, algo assustados, algo inquietos, devaneios de duas almas hipersensíveis agrilhoadas em estreitas vidas.

Gabriel, um homem alto e de constituição robusta, despia-se envergonhado, parecia uma criancinha assustada, com temor da sensualidade e do escuro.

- Nunca vivi uma situação desta natureza

desenvolvia ele.

- É a primeira vez que danço no trapézio proibido de um circo sem rede, uma realidade em que nunca me tinha visto desde que casei

e Francisca sentada na cama juntinha a ele, pouco à vontade, no receio de que Gabriel pensasse que ela era uma despudorada.

Os dois permaneceram calados durante algum tempo.

- Devo confessar que talvez seja melhor não nos precipitarmos, não achas? – pergunta Gabriel, numa voz meio rouca, tentando recuperar o sangue-frio e reunir num todo as peças espalhadas do quebra-cabeças que dá forma ao seu eu.

Francisca tocou-lhe de leve na mão com a intensidade do medo, limitando-se a concordar com a cabeça e qualquer coisa a chover dentro dela, a vida fodida – e a alma rasgada.

- Oh, meu amor, não posso, simplesmente não posso viver sem ti. E eu não vejo mais nada além de ti. E nada mais desejo senão que estejamos juntos outra vez. Amar-te é amar-me

e, ainda a meio do desabafo, já o achava extemporâneo, perdido como o fio de um cabelo: mulher, os gémeos, ainda crianças, ainda de bibe branco, a estabilidade dos filhos dela, adolescentes, a família do António, animais gregários, sempre principescamente tratada, verdade seja dita. A convicção supersticiosa de ter de prestar contas. Atirar-se ao desbarato numa aventura irreparável, um amor ligeiramente decadente, as salivas proibidas, uma relação sem destino. O pavor de ser supérflua, de estar a usurpar o lugar de outra pessoa. Além de mais restava-lhe alguma ternura pelo fantasmagórico marido de quem tinha apreciado os seus livros antes de o conhecer, mas há centenas de anos que não sabia o significado da palavra intimidade, vida a dois numa espécie de beau monde requintadamente culto e opressivo, que de tão insípido quase permitia ouvir o pêlo da alcatifa a crescer na mais fina das prisões, sim, de facto era casada com alguém a quem nenhuma emoção enrugaria a pele. Após um emudecimento incómodo Gabriel disse

- Eu sinto-me cada vez mais próximo de ti, invades-me as veias e o cérebro, mas estou perdido no labirinto da mágoa daqueles que pertencem a lugar nenhum, o que é que posso, podemos fazer?

Um universo a separá-los, a família antiga e abastada, amigos, interesses distintos, de instante para instante identificam-se lacunas, tão só carícias arriscadas, porque não pôr fim a estes encontros, mensagens escondidas, desassossego, arrependimento, filhos, sogro ministro de Estado, corpos tensos, paixão secreta, que complicado, e depois, o futuro? Gabriel disse

- Mas recuso a ideia de deixar de pensar em ti, acredita

e a cara feita em estilhaços para interditar uma lágrima, Francisca, para si mesmo

- Não sofras

os lábios tremem, reprimindo uma urgente necessidade de chorar, ela que desde a doença da irmã não sentia o coração tão apertado, a respiração tão cortante e rápida:

- Não tenhas medo

disse Gabriel, sorrindo-lhe

Com o tempo…

e agora em atitude febril de gata em telhado de zinco quente, fortalece o desejo de abraçá-lo e repetir incessantemente que o amava,

- Não me abandones

um sofrimento só comparável ao de quando viu Isabel reduzida a cinzas

Gabriel

- Também me arrepia a ideia de nos separarmos mas receio que nos possamos deixar engolir por areias movediças. Qual a alternativa, pergunta, enquanto lhe acaricia os pálidos braços lânguidos de bailarina.

Francisca susteve a respiração por um momento e decidiu levantar-se, empurrar a cadeira sem se preocupar se esta caía ou não, sem desviar os olhos por um segundo do rosto de Gabriel

- Desculpa, tenho de ir, esperam-me

e pálida e fria, saiu o mais depressa que as pernas o permitiram, tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o com o isqueiro do carro, sintonizou uma estação de música clássica e ao som da Paixão Segundo São Mateus de Bach apanhou a estrada na direcção de uma qualquer praia deserta, tranquila e escura, as lágrimas inundavam com persistência os olhos, enquanto amaldiçoava um mundo de enganos, um romance engolido pelas brumas.

Ter-lhe-á ocorrido que me viu pela última vez, que o Beau-Séjour foi o perpétuo adeus? Que a minha vida tinha ficado entalada na porta da pensão, como um dedo? Afinal o que era o amor? Que amores eram aqueles que encontrava pelo caminho e que tinham sempre algo de inconsistente? Mas isso, como é evidente, é questão de importância secundária

o que lhe importava agora tudo isso, quando amanhã é dia de celebrar o vigésimo aniversário do seu casamento num dos melhores hotéis de luxo de Lisboa?

Luís Galego

Sunday, June 26, 2011

Lê-me Sophia…



Lê-me um dos mais belos poemas, um daqueles em que o verde do mar é invadido pelas estrelas e sereias de cabelos roxos, a areia cheira a madressilva e as ondas agitadas se enrolam como búzios. Onde brilhem a espuma sal e vento e o cantar das marés cheias faça tudo parecer exausto, inútil, alheio.

Lê suavemente mas com paixão, entoa a riqueza e singularidade do tesouro oculto nos seus escritos. Respira docemente cada verso, cada palavra, acaricia o inconfundível, ilumina a perfeição tranquila e pungente. Retém o calor e a ternura de cada sílaba.

Ao leres certifica-te que lhe dás expressão, abre espaço para que me abrace à mulher poema com olhos de vidente, algas em vez de veias e um coração em forma de medusa. Ajuda-me a descobrir a vastidão da sua biografia, o seu percurso acidentado e abrupto, aquela fragilidade irredutível de uma identidade perplexa mas insubmissa que a fez sem remorso trocar os jardins do paraíso por um caminho desconhecido. Assim com os seus versos se rói a solidão e os dias crescem como uma flor vermelha.

Não te esqueças que nasci homem mas romântico e que sofro dessa patologia incurável e impronunciável.

E ninguém vai entender nunca essa beleza, mas tal como à poetisa viverão sempre mil gestos nos meus dedos.

Luís Galego

Sunday, May 15, 2011

qualquer coisa como um grito...



Unidade de oncologia, poema em alto risco, onde dia a dia, médicos e técnicos de saúde enfrentam gemidos e terapêuticas complicadas. Todos eles suportam intermináveis jornadas nas quais não há tempo para comer, nem sequer para dormir; onde os dias se confundem com as noites. O peso das patologias tratadas obriga a que a fé e a esperança, aliadas ao rasgar constante de novos horizontes, sejam a senha da vida. Ali combate-se o que constitui a segunda causa de morte e toda a alegria é clandestina. Na sala de espera impressiona-me o olhar do rapaz de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca e que aguarda o seu copo de veneno. Um anjo faz-lhe um afago com os seus pálidos dedos delicados, ele, uma asa quieta, magro, lábios sem cor, com os olhos pisados, perdidos, tristíssimos, magoados, a expressarem qualquer coisa como um grito. Sobre o coração da mãe pesam montanhas, tira um lenço da mala e passa suavemente na face do filho e os seus olhos doces de protectora denunciam um lago triste, meses de silêncio e de tortura, soluços até ao limite de si. Uma senhora idosa olheiras roxas, roxas, quase pretas, com um lenço de cor azul-cobalto a cobrir a ausência de cabelo questiona a enfermeira acerca de uns exames que parece não entender, numa postura de fada envolta num perfume de violeta. Várias mulheres com perucas grotescas que não ligam com a paisagística dos rostos aguardam numa sala que desmaia. Sinfonia de dor e saturação estampada no rosto de todas elas. Um cigano de óculos escuros e dentes de ouro, ar escultural de vagabundo, boémio ou quem sabe poeta, mete os polegares trémulos por baixo das lentes riscadas de modo a secar as pálpebras molhadas. Uma rapariga, perfil moreno, lusitano, já longe da inocência, aguarda de pé enquanto uma nódoa de sangue queima a mágica tarefa de viver. Uma outra, olhos verdes, cor do verde oceano, sem peito, os dois pulmões doentes e nervos a tilintar já só almeja ouvir sons marinhos numa concha vazia. Carnes rasgadas, ossos músculos nervos e veias doentes deambulam por aquela passerelle de sofrimento e indizíveis cansaços. E eu, cheio de pudor por a vida me apertar nos seus braços e ainda sonhar em tratar por tu a mais longínqua estrela, sinto um lúgubre arrepio colar-se-me às costas. Sou um simples finalista de psicologia e enquanto eles sofrem eu termino a parte curricular na área da psico-oncologia, estou aqui apenas a observá-los e a registar os seus movimentos, a orientadora diz que tenho olho clínico, estou ali duas semanas, daqui a pouco tudo isto não passou de um estágio, mas dentro de mim estas pessoas insistem em doer, gente frágil que em cinzentas brumas se dilui, sem rede, suporte ou armadura, e eu fico vivo a fantasiar com mundos inteiros e fantásticos castelos,

a vida desta gente que ameaçada por um verme rastejante não é igual à vida da outra gente intangível que dança com a eternidade, obriga a curvar-me a seus pés.

Arrelio-me com um Deus mal informado, irrito-me comigo, com a morte, que é uma puta, com as horas más da vida, como posso ser emproado, imbecil, negligente, como posso lamentar-me, gostava de agasalhar todos estas almas que expiram em tempestades de lágrimas.

Estas palavras saem de mim como golfadas de sangue, perco vocábulo, frases e emoções, pensamentos afogam-se-me na garganta, isto que rabisco não faz justiça à velha senhora do lenço cor de azul-cobalto, que sorri para não ter que expor a sua própria dor.

Nesta hora fria permitam que poise a minha cabeça dolorida nos vossos ombros e afiancem que não é roubada a vida a ninguém da sala de espera. Se a mulher do lenço cor de azul-cobalto e o miúdo de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca morrerem vou sentir-me ensanguentado,

vou sentir raiva, desespero e nojo.

Luís Galego

Imagem: Frida Kahlo - Frida Kahlo Henry Ford Hospital

Sunday, April 03, 2011

numerus clausus


Rita revela bem cedo a paixão pelas literaturas. As palavras dos supremos sacerdotes da escrita atenuam-lhe a solidão do quarto onde estuda. Abriga-se à sombra dos grandes lendo Tolstoi e Tocqueville, Dostoievski e Montaigne, Dickinson e Yeats e o mundo é seu. Menina-prodígio mas sem direito a escolher a área que pretende seguir e com a qual sempre sonhou, porque os pais optam por ela e inscrevem-na no agrupamento de ciências de modo a entrar numa faculdade de medicina, ainda que em qualquer parte do mundo, ainda que hipotequem todo o património. O que interessa é que a filha seja médica, quem sabe especialista no Neurological Institute of New York? Rita, com 19 valores, ingressa na mais prestigiada escola de ciências médicas do país, mosaico de enormes talentos. Orgasmo sem precedentes para os progenitores que vêem resolvidas parte das suas frustrações, sem que prestem a mínima atenção à apatia da filha quando vê confirmada a entrada num curso que pouco lhe diz. Pedro, filho e neto de enfermeiros, noitadas passadas às voltas com canhenhos, renunciando a muito do que é próprio da sua idade, ambiciona circular pelos labirintos dos hospitais civis e exercer medicina interna; por duas décimas vê-se colocado em veterinária e embrulhado num manto de mágoa porque entre o que pretende – curar pessoas - e o que consegue – tratar de bichos - existe o micróbio da desmotivação. Joana sempre quis ser bióloga e investigar biologia molecular e celular, não tem dúvidas e não lhe apetece ser mais nada. A Clássica de Lisboa não a admite por décimas ignorando uma diáspora de cansaço e sacrifício; um pequeno percalço num dos exames finais do secundário e depara-se com um obsceníssimo Não Colocado na página electrónica – qual roleta russa – que anuncia o futuro e que a deixa lavada em lágrimas frente ao computador, engolida por um mar nocturno e sem lua. Carlos, irremediavelmente baldas e pouco dado às letras e às ciências, mais vocacionado para a colagem de cartazes e com uma formidável capacidade de mobilização em período eleitoral, desiste enfastiado dos estudos, tendo completado o secundário a custo e a prestações. Uma fábrica de diplomas de que nunca tinha ouvido falar e que fecha os olhos à incompetência escancara-lhe as portas para um curso que nem sabia que existia e para que servia. Sim, mas qual é o problema? Com várias interrupções e muitos erros de português – mas isso, como é evidente, é questão de importância secundária – lá termina a exótica licenciatura. A mãe orgulhosa telefona para o gabinete onde o filho foi convidado para adjunto, prémio pela dedicação partidária, e repara na subserviência com que as secretárias tratam o seu rapazinho, com tanta genuflexão e tratamento diferenciado. O Sr. Engenheiro está em reunião, dizem, com as sílabas bem pronunciadas. Ele é agora uma personagem influente do partido, ombro a ombro com os fortes e a megalomania do poder e mesmo percebendo zero sobre a assessoria que presta, passa tardes cheias de circunlóquios e conversas de ocasião contribuindo para a feitura de leis que se aplicam aos cidadãos deste país, do qual fazem parte a Rita, anestesista sem vocação, um lamentável desperdício de energia, que em vez de ensinar literatura comparada está incumbida em intubar doentes e assegurar-lhes a ventilação, Pedro, a ganhar miséria à hora fazendo biscastes em algumas clínicas veterinárias dos subúrbios, Joana, filha de empregada fabril, gente sem importância e pedigree, socialmente invisível, segue os passos da mãe, porque o destino lhe destruiu os sonhos, a inocência e qualquer coisa chamada dignidade. O astucioso Carlos com a sua sábia displicência pode mudar de partido, de religião ou clube de futebol e até presidir uma comissão interministerial ou quem sabe uma empresa pública porque o importante é servir o seu país, isto é, servir-se do país, a corruptela e os inúteis.


Luís Galego

Sunday, March 20, 2011

o chá das cinco...


O Lawrence é um sítio arriscado, desde logo porque se recuam séculos de história e “estórias” que nos compelem a viajar no tempo. Nunca se sabe o que pode suceder naquela mansão senhorial de construção setecentista, onde pernoitaram hóspedes ilustres como Alexandre Herculano, Bulhão Pato, Camilo Castelo Branco, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão ou William Beckford, um espaço que ganha importância em Os Maias, de Eça de Queirós, que o conhecia bem, por nele se abrigar, onde Lord Byron escreveu parte do poema Childe Harold's Pilgrimage. Porque careço da suavidade, do afecto, do sentimentalismo, do veludo impresso pelos escritores que frequentaram aquele lugar, nunca resisto a entrar.

Entro e vejo-a. Muito mais nova do que eu, um anjo de incrível beleza. E tem aquele ar parisiense porque passou alguns anos na Sorbonne a estudar Antropologia e a deambular pelo Quartier latin. Quando damos por isso eu já estou a acariciá-la e ela já me está a acariciar. O seu corpo místico arde sob os meus dedos palpitantes. Aquele hotel de charme no centro da mágica e enigmática Vila de Sintra é perigosíssimo. O chá das cinco dura uma eternidade, salta as estações do ano e os corações vêm à boca oferecendo amoras bravas. Saímos daquela que é a hospedaria mais antiga da Península Ibérica e atravessamos a povoação espiados pela vista magnífica da Serra. Conduz-me para a casa dela. Uma velha moradia quase em ruínas, quase vazia, mas envolvida pelo verde profundo da mata nativa e pelo colorido prazenteiro do jardim. Chegou de Paris a semana passada, diz-me. Eu prefiro não saber pormenores. Como se pairasse num sonho adolescente sinto-me deslumbrado com aquela princesa secreta da aventura naquela estranha residência. Com os corpos iluminados pelas velas e em insuportável ternura morremos na pele e na respiração um do outro. Com ela incendio o entardecer e o desejo desfaz-se em embriaguez dentro da alma. Mas a mulher que percorro com as mãos é-me desconhecida. Pálpebras pesadas adormece a falar-me amorosamente do namorado italiano que investiga neurologia da mente e que deixou na cidade à beira Sena.

Caminho sem pressas pelas ruas frias para ir ao encontro da mulher que me aguarda em casa, vestindo um sentimento estranho porque transporto comigo o perfume e o impudor daquela deusa ainda incriada. O que diriam as personagens de Eça de Queirós a estas infidelidades? Como comentaria o poeta e herói romântico Lord Byron esta traição? Aquele hotel em que cada quarto é genuíno, onde não existem números nas portas e que já foi conhecido pela Estalagem dos Cavaleiros é deveras perigoso. Ou tudo não passará de uma macumba dos fantasmas da escrita que ali permanecem e se divertem em constante orgia literária à custa de espíritos incautos?

Luís Galego

Sunday, March 06, 2011

ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo…


Olá, como se chama? Não foi complicado vir ter a minha casa? Não é simples encontrar esta vila escondida caracterizada por um levíssimo toque de mistério, como um sítio abandonado aos lobos, distante da grande cidade repleta de betão e ruas cheias de encontrões. Quando viu uma casa pequena, uma quase tenda no deserto soube certamente que aqui era o meu refúgio, este espaço-silêncio, comprado em hasta pública, rodeado de coisa nenhuma. Eu sei, a casa é modesta, mas é a minha pérola redonda. Não preciso de um palácio adormecido à beira lago da velha Escócia, mas não prescindo do arder de velas em candelabros de bronze, de um copo de vinho, de um cigarro e de um sorriso, de quando em vez. Embebida num véu de magia coloco um colar de pétalas e sento-me nesta poltrona defronte da janela, escutando o mar, a agitação das ondas torcidas como búzios, o vento, a chuva, o clamor da tempestade, a serenidade do luar, espiando uma estrada de estrelas que parecem flores e acenando às asas de aviões distantes. Os sons lá fora em sinfonia são violinos bem tocados e toda a música me pertence despertando o desejo de abrir a porta às sereias dos cabelos cor de violeta e com elas dançar sem parar. Entrego-me à vida como a um vício. Bourgeois, a gata, de quando em vez, desentorpece-se, desremela os olhos, trepa pelas paredes acima e acaba por sair, entra sem bússola nem licença nos terrenos mais próximos. Gosto de pensar que é uma espécie de gata em telhado de zinco quente que permite algumas coisas mas não todas. É uma felina que não dissimula mas que recheia horas mortas, fazendo-me carícias às pernas e ao espírito, é uma sócia que não importuna. Cúmplice, regressa sempre com o amanhecer do universo, lembrando um fantasma assustado a pedir aconchego. Meu jovem jornalista está a ouvir uma mulher de idade, sem biografia ou requinte e que não foi uma rainha do êxito nem femme fatale, como todas as velhas dizem ter sido, apenas interpretei umas coisitas numa altura em que uma mulher cantar jazz significava sair da sombra da história da arte sem ter de falar a linguagem dos machos, mas tornar presente o seu próprio desejo. Caríssimo, não o conheço, só presumo que seja mais um estagiário grávido de esperanças que lançam às feras com vencimento zero, nem percebo se veio do sol ou do mar, mas confidencio-lhe que a minha vida é louca mas feliz. Construo o meu real conforme me apetece. Gosto do acaso do dia-a-dia por que o seu perfume não se esgota, enalteço a surpresa dos instantes! Na minha vida o abismo, a amargura, as depressões sincopadas, o medo, a nostalgia, o odor de morte são inconstitucionais, tão pouco sei o que são. Vivo sem muito dinheiro mas o paraíso pertence-me. Habito uma espécie de união clandestina, por que nunca senti a necessidade de oficializar o amor que sinto por um homem que conheci em fresca idade e cujas crateras dos seus olhos cor de oceano pese os tempos permanecem belas...um escultor de belos traços, possante e frágil, de ascendência judia, artista de primeiríssima água, que vive tal caixeiro-viajante transportando a bagagem abstracta dos anos, deslumbrando-se de terra em terra, carta sem paradeiro certo, mas continuando a preservar o jardim do prazer que é o seu velho ateliê, a poucos quilómetros daqui. Fazemos amor de vez em quando. Quando a noite é mais forte e nos parece iluminada de archotes. Amizade, ternura ou amor, pouco interessa. Um sentimento de muitos anos sem imposições ou grades e a deixar os dias correr tranquilamente. Sou solidária com a Phedra, travesti cubano de porte altivo mas vestida de revolta, especialista em fracassos no mercado escravo, a quem num dia de vendaval dei a mão, é ela que me limpa a casa e me traz as compras da mercearia mais inspirada. Caminho pela praia, a minha avenida, aos fins de tarde, pisando a areia molhada onde o tempo poisa leve. Contemplo o azul e os barcos no mar; as conchas e os seixos habitam-me o olhar. Imagino deusas a voltarem à terra montadas em cavalos brancos, uma delas preta, tal como eu, num mundo que se enfeita de arco-íris e que respeita todos os aromas e qualquer cor. São os sonhos da criança que serei sempre. É necessário, às vezes, não acordar a utopia, o poema que se dissolve na boca. A noite sensualíssima traz consigo a espuma e o sal e deita-se comigo, nua nos meus braços. Que mais posso desejar? De vez em quando alguém se lembra que gravei uns discos e compram, fico enternecida tal como quando sentia a tensão do clarinete. Não tenho esconderijos nem disfarce. Apenas um chão feito de memória. Em certos momentos sinto falta da minha filha que mora num país perdido. Cansei-me de tentar desvendar o seu segredo, gostava que telefonasse, ainda assim tenho intacta a sua ausência e o privilégio de me comover com o vestido em tons floridos que revejo numa sua fotografia de menina de longos cabelos que embala uma boneca. Sabe uma coisa? Ultimamente tenho mergulhado em águas da poesia portuguesa. Li um tal Álvaro de Campos e num só verso identifiquei a minha alma: poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Luís Galego

imagem retirada da net

Saturday, February 12, 2011

Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT


Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem
José Martí


Augusta Duarte Martinho completava 96 anos hoje, sábado, se estivesse viva; foi vista pela última vez no Verão de 2002. O seu cadáver (e o do cãozito na varanda à espera dela até também morrer e de vários pássaros) foi encontrado atrás da porta da cozinha, de barriga para baixo, num prédio cinzento da uma localidade portuguesa da freguesia de Rio de Mouro no concelho de Sintra, entregue ao mais insidioso retiro e esquecimento. Essencialmente só.

Durante mais de oito anos, Augusta não foi vista por ninguém, não levantou os vales da pensão da Segurança Social, não pagou as despesas de condomínio, não cumpriu as obrigações ficais. Por não ter honrado estes compromissos, o Estado penhorou a casa, vendendo-a em leilão. A nova proprietária adquiriu a casa e o cadáver, que jazia na cozinha. Este panorama mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito. A mesquinhez.

Estranho mundo este. A história desta reformada educadora de infância ou professora – também ninguém sabe ao certo – é toda ela uma tétrica parábola sobre a cidade de cimento e do vazio, dos homens e das mulheres, que vimos construindo na aparência de civilização. Num país reduzido a números e estatísticas ninguém se intriga face a nove anos de ausência. A colectividade mais preocupada em comentar os reality shows televisivos, que exploram a pura e suprema banalização da intimidade e louvam cretinos esquece quem caminha sozinho, abraçado a um inferno chamado solidão interior, numa realidade sem show. Como pergunta chocado o escritor e ensaísta Eduardo Pitta Ninguém estranhou que a luz da cozinha tivesse estado acesa durante oito meses? A Direcção-Geral dos Impostos põe casas a leilão sem contacto prévio com o contribuinte? Um caso perturbante, comovente e dramático, na sua frieza e desumanidade que demonstra, a sangue frio, a face de uma multidão apodrecida e egoísta, expurgada de solidariedade humana, que passa ao lado de quem está apenas entregue ao casulo de uma alma que é feita para não estar sozinha.

Não é concebível que um corpo tenha permanecido durante anos e anos desconhecido e só, como dizia o poeta Milosz. Assim se constroem vidas em forma de monólogo, algumas que degeneram em sofrimento, e que se finam todos os dias abandonadas num apartamento qualquer perto de nós. A velhice e o isolamento são o pior dos males, uma espécie de enfermidade: ninguém estranha, ninguém vê, ninguém sabe. Os sentimentos mais genuínos logo se desumanizam numa cidade onde até o carteiro, que consta dever tocar sempre duas vezes, não dá por nada. Neste circo de horrores, uma vizinha preocupa-se e muito. Três meses após o seu desaparecimento Aida Martins vai à polícia participar a ausência. Recorrentemente. Ninguém se interessa. Ninguém investiga. Sem ordem do tribunal ninguém pode entrar em casa. Inconformada, recorre também à GNR e à Conservatória do Registo Civil. Aflita corre mundo e resolve dar notícia do desaparecimento ao Ministério Público onde vai 13 vezes. Nunca consegue autorização para arrombar a porta. Reclama em todas as instâncias. Como se de um acontecimento insignificante se tratasse ouve tão só: Minha Senhora, a participação está registada: Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT.

Incompetência e ignorância que merece inquérito desapiedado a autoridades tão inaptas que nem sequer, ao ser comunicado o desaparecimento, fizeram o mínimo: abrir a porta da residência da desaparecida.

De facto isto não aconteceu no Burundi ou no Zimbabué. Foi mesmo aqui ao virar da esquina, numa triste praceta das Amoreiras, atravancada em bosques de betão de um dos maiores dormitórios suburbanos de Lisboa onde se ouvem os risos de crianças a correr de uma escola próxima e o movimento dos comboios na estação…
Luís Galego

Monday, February 07, 2011

o irmão do meio...



morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento


Mia Couto


Depois da sua morte sinto que foi roubada seriedade à vida. Após isso, tudo é possível. O que mais me intriga e dói na morte, na do meu irmão como na de todos os que amamos, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo – no comércio de viver –, desaparece-se num precipício onde se despedaçam esperanças, horizontes, ousadias, sonhos, e tudo continua como se fosse natural, como se de criaturas fictícias fragmentadas por esquinas e cafés se tratasse, sem deixar rasto.

Com a memória ainda ulcerada desfolho as horas a partir daquela noite deserta, daquelas horas de um passado que não passa, daqueles minutos que se cravam no peito e vincam a nossa pele interior. Desde então, conto o tempo para o desmentir, para regressar a todos os instantes antes desse momento mas a morte continua presente nos relógios.

O meu irmão morreu dia 21 de Setembro de 2010, enquanto as estrelas semeavam a noite. Sinto o sopro nocturno da notícia e desde então, não paro de o reviver. Vivo esse ontem como se fosse o tempo presente. Estou nos lugares que foram dele. Afago os livros de Geologia que eram seus, as pedras que coleccionava, os diplomas que com esforço e sucesso conquistara, os discos de vinil do José Afonso, uma biografia sobre Bruce Lee, o herói da sua adolescência, o livro que o apaixonou muito cedo, "Papillon" de Henri Charrière e todos os símbolos pendurados ao longo das paredes. Através dele também me transporto para a cidade onde nascemos e passámos a nossa infância, aquela cidade de Évora, onde o Inverno era frio e o Verão sem sombra, um tempo vivido devagar. Recordo a sua vida e o seu talento para a bola, o gosto pela música gregoriana mas não suficiente infalível para poupar uma alma inquieta, o seu intelecto e a capacidade de memorização. Recordo o seu ingresso na Faculdade de Ciências de Lisboa e as directas de estudo. Lembro-me que gostava de se perder pelo interior das igrejas vazias da baixa pombalina, maneira que tinha de se proteger da violência das coisas. Recordo os elogios francos que tecia sem cessar ao sobrinho e à minha mulher. Palavras sem regresso, bric-à-brac de lembranças, pois agora a nostalgia é um rio que corre mais rápido.

A sua morte foi terça-feira de uma noite sem fim, uma valsa demorada. Aconteceu depois de uns tempos de um organismo cansado. Uns dias antes, ele parecia mais pacificado no seu sofrimento, mas era uma esperança pálida, uma sombra incerta. De repente, tudo mudou. Houve uma dor maior, um declínio da vitalidade, a suspensão da coragem, um corpo que se veste devagar. Durante anos, foi sendo abatido, atacado, escalavrado, ferido, sovado pela vida. Ainda novo mas a solidão parecia-lhe mais viva que o sangue e sentia-se expirar no exacto momento em que julgava ter deixado de ser útil, doía-lhe a vida que se deitava com ele na cama após longas insónias e cigarros consumidos. Esteve mal, medrou, piorou, melhorou. Foram dias e noites de ansiedade e de espera, de aflição e de mágoa, um vazio sem fundo. Nesse tempo, a minha mãe viveu com ele a fadiga dos consultórios e o éter dos hospitais. A mãe contorcionista que tinha medo de o ver irremediavelmente perdido caminhava com ele de mão dada pelas praias da madrugada, por que para as progenitoras os filhos são uma parte do seu coração, uma parte da sua energia, seu amor primeiro, a sua luz, o seu agasalho, alma diante de alma. Nos últimos tempos mãe e filho viviam colados como a hera ao muro e evidentemente que para elas os filhos são imortais.

Mesmo combalido, ele apercebia-se do nosso cuidado, da nossa insistência, da nossa obsessão, do nosso ar de entendidos em medicina, em arriscada armadilha. Os clínicos admitiam-lhe tudo, mesmo as impaciências, as queixas, as raivas acesas. Eram derrotados pela inteligência, pela insubmissão, pela agitação dele. Quando chegava das consultas estendia-se sobre a cama onde se abandonava a uma alheia introspecção e adormecia devagar num sono químico. Um dia, percebeu que podia acontecer o pior por se sentir o mais vulnerável dos seres, sem abrigo contra o desconhecido. Pouco antes de sentir que a mão da morte lhe pousava no ombro, estava muito doente.

A noite veio de dentro. Em minha casa, o telefone tocou dentro de mim. Acordei com o coração a desancar contra o peito. Ouvi a voz da minha mãe e percebi que estava atravessada pelo carimbo da morte. Universo de pranto. Era noite escura e o mundo dormia, um terror que asfixiava, que mordia, amargura indelével, emoção funda, o choro coagulado nas gargantas. Nós corremos para casa dele, onde a minha mãe praticamente residia e o assistia. Encontrámo-lo morto, caído no chão do quarto, triste espectáculo sem rede alguma. A sua voz calada para sempre, os seus olhos fechados para sempre. A vida interrompida, um abismo último. Sangue do nosso sangue. O corpo só na plenitude das trevas e do silêncio, a sua missão embargada, a sua última viagem. Os homens vão, vêm, andam, rodopiam, e nenhuma informação de morte. Mas, quando ela chega a propósito de um ente querido surpreende-nos imprevistamente e sem defesa, confrontamo-nos com algo de abjecto e ignóbil, uma dor oceânica que agride, o apocalipse de tudo o que amamos. Ele estava inclinado sobre a sua morte, como se sucumbindo à dor que o fulminara subscrevesse os versos de António Feijó (…) É pela tua mão, feito um rasgão na treva, /Que a Alma se liberta, e de esplendor vestida /— Borboleta celeste, ébria de Deus, — se eleva /Para a luz imortal, Luz do Amor, Luz da Vida!

Encosto-me à memória e lembro-o defraudado, teimoso, obsessivo, em atrozes dilemas, às vezes impossível, às vezes a escorrer melancolia, um livro fechado. Lembro-o obstinado, prudente, prevenido, até muito perspicaz. Lembro-o crente, humano, inteiro, íntegro, de uma só palavra, de uma só vontade, mas também com sentido de humor. Lembro-o ansioso, visceral e algumas vezes cansado de sofrer e arredado do princípio da alegria. Lembro-o bom aluno, arguto, adivinho.

Agora, vivo numa ilha sem ele e o sol morre dentro do seu nome. Num tempo entristecido que é o do seu desaparecimento físico, do seu repouso, do seu exílio eterno. Anoitece devagar e olho o retrato dele, o preferido, a imagem de uma adolescência longínqua. Contemplo o seu olhar infinito de cientista e acende-se a lua – e a morte por instantes deixa de ser um enigma ou um fantasma.

Luís Galego
Imagem: "Café da Manhã de Um Homem Cego", de PABLO PICASSO.

Saturday, January 15, 2011

Doutora Marta

Enquanto o mundo dorme penso no que daria para ouvir as suas doutas exposições, para apreciar os seus olhos enigmáticos e as mãos esguias, aqueles cabelos escuros e um rosto de Modigliani, havia naquela mulher de quase quarenta anos algo de essencialmente humano! Universidade, pais velhotes, sobrinhos, alunos, sebentas, carro caindo aos pedaços, e tudo o mais que faça parte de uma mulher investigadora e solteira a roçar os quarenta. Qual era então o enigma do seu encanto, se tudo nela parecia banal? Porque é que toda a gente a apreciava tanto, como se de um verdadeiro poema épico se tratasse? Que fazia para ser tão amada? Talvez porque era imensa e porque possuía um brilhante poder de observação. Com ela aprendi muito sobre história, sobre filosofia, sobre linguística e a reunir estudos gregos e latinos com emoção, um insaciável desejo de saber, a descoberta da boa leitura e o veneno da escrita; fazia-me sentir desinquieto no puro espaço dos cinco sentidos durante as suas aulas ou quando a encontrava no Centro de Estudos Clássicos (onde passava o tempo a estudar e a organizar volumes encadernados de línguas, literaturas e culturas da antiguidade clássica). Geria o tempo, como se este fosse elástico, um facho inextinguível, uma intensa alegria de viver, os dias para ela eram longos e tinham cem anos. Contou-me que quando saia da Faculdade ainda ia para Carcavelos dar aulas de Latim medieval e carinho a um grupo de juristas alemães aposentados, uma espécie de voluntariado cultural. Fiquei simultaneamente feliz e tenso como a pele de um tambor quando me deu a notícia de ter conseguido uma bolsa no departamento de Greek and Latin Studies, na Saint Louis University. Foi há mil anos mas tenho uma recordação extraordinariamente presente da tarde em que me despedi dela. Imaginem só, alguém com possibilidade de apenas investigar o seu tema de eleição, a sua paixão, o caminho de estrelas que traçou! Deixou-me uma pilha de livros, alguns dos seus rascunhos sobre vasos gregos, um conjunto de poemas boémios que nunca ousou editar e a minha alma aberta como uma ferida. Quando a nossa correspondência de certo modo definhou, acabando por ser suspensa, e a minha vida abalroou de novo na impertinente companhia de analfabetos de erudições, teimava em preocupar-se comigo, perguntava a toda a gente por mim, tentando salvar-me de um destino cego, dos pântanos da vida de um recem assistente universitário. Partiu num domingo de céu invernal, as emoções inundavam com persistência os rostos de alguns que foram despedir-se dela; à porta de embarque, mãos ansiosas, ofereci-lhe uma orquídea; enternecida, deixou cair lágrimas daqueles olhos com tons de pedra rara que desaguaram no meu coração. Restou uma doce carícia e o meu olhar envelheceu.

Ter-me-á ocorrido que seria este o derradeiro afago? Obviamente que sim. Foi rigorosamente o que pensei: sim, estou a senti-la pela última vez. Na verdade, é o que me acontece sempre com as pessoas especiais. A minha existência é um ininterrupto adeus a extraordinárias criaturas que muitas vezes não percebem a minha postura reservada, sincera, arrebatada.

Luís Galego

Sunday, December 05, 2010

o passado é inútil como um trapo...


Não entendem nada de vinhos mas tinham guardado um ícone: Palazzo Della Torre, para abrir numa data específica. Que dia tão especial será esse? Nenhum dos dois se recorda. E, não entendendo nada de vinhos, quem sabe se aquele vinho envelhecido ainda se mantinha em boas condições? Chegou o momento da separação, dia de má conjugação astral mas oportunidade para autopsiar um relacionamento. Impunha-se a questão: o que pertence a quem? Pinturas, caixas de papéis, roupas, móveis, aglomerações de jornais e revistas alemãs e francesas, norte e sul americanas, guias e mapas, catálogos, álbuns de fotografias, centenas de artigos literários e diários, discos, whisky irlandês e objectos não identificados. Mas os livros eram a sua bússola e riqueza e a sua ruína, o seu património de paperback e hardcover, o enxoval e o dote, os seus momentos de existência, a impressão de estar em posse de um outro mundo. Viciados em novelas, livrarias e estantes, têm um seguro multi-riscos sobre o recheio da casa por causa do espólio literário. Como se alguém estivesse interessado em roubar livros, ainda que belas edições antigas. O medo que um cataclismo danifique as colecções de Dostoevsky ou de Tolstoy, a Bíblia e as obras de Shakespeare e Montaigne, o Middlemarch, de George Eliot, os Thibault, de Martin du Gard e mais do que qualquer outro, as páginas amarelecidas de A Morte de Ivan Ilicht, de Tolstoi, enchia-os de pânico em viagem. Maravilhas da literatura oriental obstruem o apartamento, dramaturgos russos escalam pelas paredes, intelectuais franceses instalam-se na casa de banho, na cozinha, nos quartos, biógrafos anglo-saxónicos escorrem pelo soalho, números antigos da Magazine Littéraire murmuram no sótão, diversas tendências literárias entornam-se, tropeçam, devaneiam pelos corredores. Amontoamentos de ensaios ibero-americanos em equilíbrio precário que derrocam a las cinco de la tarde, para desespero da empregada romena, curiosamente bibliotecária no seu país e especialista em estudos sobre a Escola Latina na Transilvânia. Prateleiras bem apetrechadas de literatura do terceiro mundo mas que tresandam a romances grandiosos, históricos e políticos. Edições em língua árabe, obras de divulgação cientifica, ficções e teses académicas, short stories e antologias, scripts de filmes, livros de design, literatura de viagens, brochuras em catalão e castelhano, dicionários, orações de sapiência, longos salmos de amorosas inconfidências, nacos de prosa e prosódia, paixões e obsessões de gays e lésbicas, autores indiscretos que a espreitar por um postigo os ajudam a compreender o mundo; adoráveis misturas de livros de obstetrícia e de clássicos, comida vegetariana japonesa e livros sobre borboletas, insectos e repteis com Mario Vargas Llosa, doçaria e cartografia com história cultural e das mentalidades e também livros ainda adormecidos, por abrir; sim, já chegaram a comprar livros a peso em Veneza, como se se tratassem de frutos exóticos ou especiarias recém-chegadas do Oriente. Os livros, um universo que estimam mais do que a uma pessoa de família.

Os filhos são criados mais com livros e enciclopédias do que com brinquedos; a miúda ordena os seus livros com precisão militar e nada a indispõe mais do que saber que o irmão lhes toca. O acervo do rapaz cresce periclitante e de mãos dadas com as suas borbulhas, caótico, sem regra e prospera com a espontaneidade dos lírios do campo e até o gato passeia por cima dos livros na mesa, como se tivesse saído de Old Possum's Book of Practical Cats, de T. S. Eliot. A colecção daquela família assemelha-se a um jardim inglês, multicolor, imprevisível, hospitaleiro. Cada livro parece falar com eles uma linguagem idiossincrática, como se existisse um idioma para o coração. Aquela família de livrariófilos para ser feliz, tem de ter a sua dose diária de literatura, isto numa terra em que a norma é não ler, os livros montes de poeira, o leitor uma espécie de aberração e paradoxalmente um Presidente da República que nada entende de letras mas é doutor honoris causa em literatura. É com eles, os livros, que tencionam envelhecer.

Mas as pessoas inteligentes perdem-se por causa das coisas mais estúpidas e ultimamente passaram de dueto a duelo:

- E os livros?

- Partes iguais, parece-me sensato.

- Como sensato? Eu tenho direito a escolher e sabes bem porquê.

Agustina, com o seu mau humor capaz de aterrorizar os incautos, começou a tirar os livros das estantes e de sacos como se coelhos fossem. Os que ela queria na sala, os que podiam ficar com ele na biblioteca.

- Espera aí! - gritou Vladimir, bufando de indignação. - Os clássicos são meus!

- Não entendo porquê – reagiu ela, colérica e soberba na sua superioridade intelectual. - Coloquei toda a obra do António Lobo Antunes na tua pilha, na biblioteca.

- Eu disse clássicos, quero lá saber do Lobo Antunes? Nunca apreciei a sua prosa escarpada.

- Muito bem! Grande confidência. Tu nunca gostaste do António Lobo Antunes? Tu que dizes que ele é o homem que sabe substantivar os adjectivos, como nenhum outro escritor? Quer dizer que tudo o que afirmas é um embuste?

O diapasão anímico da conversa subia vertiginosamente na contagem dos megahertz emocionais. O que queria ela dizer com embuste: os dois nus refastelados na cama, enquanto ele lhe lia fragmentos de Não entres tão depressa nessa noite escura. O quarto à meia-luz, os dois confundidos um no outro. Entre corpos toda a literatura era deles.

- Não mudes de assunto. Tchekhov, Gogol, Turgueniev, Jane Austen, Dickens, Emile Brontee, Stendhal, Flaubert são meus, diz de rajada. Ah e os poetas também.

- Não foste tu que ainda há segundos reclamaste partes iguais?

- Podes ficar com o António Lobo Antunes completo.

- Eu abomino o Lobo Antunes! Sempre detestei aquelas personagens sem espessura, nem carne, nem sangue, tal como tu, curiosamente.

- Irra! Então a dissimulada és tu, disse Vladimir, já não conseguindo manter aquela certa elegância, mesmo em condições adversas, como era conhecido pelos mais próximos.

- Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer. Eu odeio quando tu finges saber discutir literatura; tu um charlatão literário, sempre com considerações teóricas, em extravagantes demonstrações de erudição, armado em bibliófilo dizendo que Eça é o teu “maestro” e o teu “autor”. E proclamas ad nauseam o teu amor pelos livros apenas para que os outros saibam como és excepcional e muito mais culto e refinado do que todos os restantes. E mais...

- Cautela com o que dizes...

- Coisa pouca. Odeio quando me tocas de manhã. Abomino!

- Sim? E os tremores que sentes são encenação barata?

- Exactamente! Queres a verdade? São! Não sei de onde vocês machos de trazer por casa concluíram que mulher gosta de sexo à laia de Henry Miller, como se estivéssemos sempre de perna aberta para todas as vossas fantasias ridículas!

Naquela noite pouco terna, em território gelado sem um sobressalto protector, decidiram protelar a partilha dos livros antes de se agredirem. Ele húmido de lágrimas foi até à varanda fumar para se afastar daquela Madame Bovary de bolso, que adora dar a impressão de uma daquelas pomposas amantes de livros que dizem ter descoberto tal e tal volume raro num alfarrabista nas ruas secundárias de Bratislava. Ela com precisão cirúrgica e a soprar restos de fúria foi conferir os fundos das estantes largas para ter a certeza de que não se estava a esquecer de nada. Foi quando deparou com o Palazzo Della Torre.

Mostrou o vinho ao marido.

- Recordas-te?

- Deuses. Onde estava essa maravilha?

- Na estante do quartinho onde estão os policiais. Lembro-me, tão só, que tínhamos jurado que só o abriríamos numa certa data... mas qual e porquê?

- Não faço a mínima ideia.

No exacto momento em que a vida se encaixota e já cansados das provações homéricas de uma relação de mil e uma noites veio-lhes à memória Eugénio de Andrade:

(…) O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.

Luís Galego
Imagem: Lissue Lumineuse, Vieira da Silva (n. em Lisboa 13 Jun 1908 -m. Paris 6 Mar. 1992)

Thursday, August 19, 2010

Paris, je t'aime...


Gostava de saber porque te amo nesta forma estranha
de te não ter amado nunca.

Virgílio Ferreira

Paris é uma cidade de um magnetismo poderoso, mesmo para quem sofra de constante abstinência de amor. Nunca se sabe o que pode suceder quando a alma anda por aí livre ao acaso.
Naquela tarde nostálgica de domingo Clara entra no Museu Picasso e sobressalta-se com os olhos dele, de uma beleza que quase lhe dói, uns olhos meigos mas que lhe fazem lembrar o mar. O Rafael tem menos vinte anos do que ela, o cabelo loiro platinado e a suave melancolia que atrai uma mulher. Tem aquele ar de River Phoenix talvez porque tenha estado três semestres em Oregon a tentar estudar literatura norte americana e o carácter sublime e incompreensível dos poetas. Quando dão por isso Clara já lhe está a tocar na face, ele a acariciar a mão dela, um súbito abraço e tudo o mais não importa. São estrangeiros numa cidade onde até os museus são perigosos, as emoções duram semanas num minuto, saltam as estações, os corações desmaiam na boca antes de se morderem e não querem ser incomodados por nada deste mundo. Quando são literalmente convidados a sair do museu atravessam a Rue de Thorigny e Rafael leva-a para o seu apartamento. Um prédio muito antigo, meio fantasmagórico, que mais parece a pinacoteca raramente frequentada onde Clara trabalha como documentalista, desde que se licenciara em Filosofia. Tinha chegado dos Estados Unidos há pouco tempo, desculpa-se Rafael. Ela não se importa. Acha um sonho, velas acesas, vinho branco e uma serigrafia de Maurice Boitel frente à cama onde ele a enfeitiça na mais doce das ilusões. O sexo é um animal estranho pelo que tem de o ir aquietando como pode, mansamente. E fazem o que é possível fazer, os dedos a arder na doçura dos corpos. Por fim ele adormece a falar-lhe na paixão de Yann Andréa por Marguerite Duras, aquele amor que ilumina o final da vida da escritora. De repente é noite e Clara é forçada a separar-se da beleza do corpo do seu anjo, da sua respiração que enche o quarto todo, deixa-o deitado, nu sobre o lençol e parte para ir ao encontro do marido que a aguarda no Hôtel Amour, num quarto cheio de fumo e uma última garrafa de gin à cabeceira, ansiando que ela o satisfaça, ela, Clara, que leva consigo um coração consumido pelo bater das próprias pancadas. Paris é um vicio, o desejo nunca é demais, algo acaba sempre por acontecer e certamente que a velha cidade das luzes guardará mais esta confissão que fará dela o que entender.
Luís Galego

Imagem: Le baiser, Musée National Picasso, Paris

Wednesday, July 28, 2010

mais parece o brilho dum diamante...


Quando saiu do Laboratório sentiu um perturbante sopro de independência. Estava uma tarde de Novembro resplandecente com fendas do sol entre as nuvens. Chamou um táxi. Lisboa acima endireitou-se no assento com as mãos dentro das luvas de couro pousadas sobre os joelhos. A taxista chama-se Maria Teresa, senhora desprovida de ingenuidade, mas sem a secura do realismo bruto, conta-lhe vaidosa que já tinha sido entrevistada para a televisão no dia internacional da mulher, o conduzir já lhe “curou” as insónias, bicos de papagaio e duas artroses na coluna. Se lhe oferecessem um novo emprego, com o mesmo ordenado e à frente de uma secretária ou empregada numa loja não aceitava. Gosta de andar por aqui e ali, mais livre, mais autêntica e pujante. Em frente à Igreja dos Italianos de Nossa Senhora do Loreto pagou o táxi. De novo na rua começou a caminhar em passo acelerado. Sentia-se desinquieto. Perguntava-se quem poderia ir visitar. Começou a sentir as emoções à flor da pele. Queria conversar com alguém com talentos psicológicos na análise da alma humana, dar-lhe conta da sua existência, da fragilidade das suas conquistas, da vida de um biólogo negro de aguçado espírito científico que pretende escapar à corrupção do seu país e que agora pertence à casta dos eternos bolseiros de investigação. Pequenos nadas, no fundo para encarar a vida que a todo o instante lhe escapa. Junto à fachada principal do D. Maria II percorreu os endereços gravados no telemóvel. Passar em revista amizades recentes provoca-lhe um certo arrepio, nomes gravados como sombras de fantoches pendurados por invisíveis cordéis. Qualquer coisa pulsou dentro de si ao chegar a um contacto desconhecido, como se fosse o apelido de um ser tresandando a pecado, quem sabe alguém com quem teclara fora de horas num chat chamado desejo.

O vento da manhã surpreende-o a caminhar por uma rua miserável. O sol espreita por entre a névoa e reflecte-se nas carcaças de automóveis. Acelera o passo para fugir ao cheiro e à paisagem, àquele ambiente de fracasso. Sente o corpo fraco, um fantasma de tímido aspecto; os sapatos começam a massacrar-lhe os dedos grandes, como agulhas a furar a pele. No cruzamento mais próximo há um café de aspecto triste prestes a desabar a qualquer minuto. Sem alternativa gasta os últimos euros num bolo de noz. Lá fora parou um camião volkswagen para transporte de móveis.
- Desculpe, dá-me uma boleia? – pergunta ao indiano que está ao volante.
- Para onde é que vai?
Sem querer, uma lágrima escapasse-lhe através das pálpebras, escorre pela cara até chegar à boca. Tão só uma lágrima. Nem sequer desliza como se fosse dele, mais parece o brilho dum diamante.

Luís Galego

Friday, June 11, 2010

chicote de raiva...

Uma mulher, a minha mãe, morreu pelo crime de te ter amado, contagiada pelo abismo que foste tu, ser maléfico como um pássaro sem bico. Um homem, o meu pai, morreu de amor por a ter perdido, sem ter apreciado um último abraço e o sabor de um beijo. Destruíste um homem e uma mulher devido ao teu egoísmo, ao teu egocentrismo que deu mais valor à sórdida auto-estima machista do que à cumplicidade deles. Foste um bicho feroz e carnívoro que conspurcou o lençol da neve com os sinais do seu vómito. Se pensas que o vidro fosco do tempo os eliminou estás enganado. Estou aqui. Sou ambos, sou Inês Bessa-Luís e António Franco. Não conseguiste nada. Não estão mortos, não desapareceram, não estão esquecidos. Continuam a viver em mim, são duas estrelas refugiadas dentro do meu espírito.

Não sabes quem eu sou. Não vês na juíza que te julga a menina que tinha a idade das amoras, seu selvagem sem alma por dentro? À noite, quando fechas os olhos, vês a minha mãe cansada de esperar, gemendo como um animal estrangulado, depois de ter fugido de casa, iludida pelos teus dotes de don juan e pelas teias eróticas de trazer por casa? Sabes que a ausência de um regaço de mãe que nutre e embala só é comparável a uma sala de tortura, a um recinto escuro, de infância? Sabes que a privação de um pai na meninice é um armário poderoso com tecidos sanguinários guardados? Sentir a falta dos dois é o mesmo que estar soterrada numa casa fria cheia de fantasmas perdidos nas sombras. A vida passou a ser só um inverno punitivo, névoa e abandono, um navio encalhado nos ramos, uma ilha de silêncio. Aterrorizei-me tempos a fio enquanto adormecia devagar. Deprimida olhava um rosto de dor frente ao espelho, onde caíam lágrimas, gota a gota, do coração esponjoso, cru, agitado, que não enxugava, como só no absoluto da pré-adolescência se conhece. Medos que nem mesmo o tempo ou o riso conseguem sarar.

Não me chames minha senhora, sou magistrada judicial, faço julgamentos com sangue-frio e alma cheia de musgo e de rasgões. É a cólera que me leva aos precipícios da memória de uma noite que desfolhou relâmpagos sobre mim. Tu és o nó de sangue que me sufoca. És uma faca cravada na minha secreta existência. A minha mãe morreu por tua causa, mulher com ternura a jorrar pelos poros, cujas mãos estremeciam por algo novo e já tocada na carne profunda sentiu-se uma nódoa vendida aos ventos da noite, optando pela morte por não ter coragem de regressar aos braços meigos do marido. O meu pai, bom homem, não resistiu ao desaparecimento da mulher, ele um subscritor do lirismo dos apaixonados estava convencido que morariam para sempre um no outro num casarão sem número. Eu sou Inês Bessa-Luís e António Franco e tu és insignificância, menos que nada. Enterro o meu terror e os meus demónios privados esmagando-te com o pé, hoje e aqui, nesta sala de audiências, independentemente do crime de que és acusado.

Luís Galego

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Saturday, May 29, 2010

mulheres...


*
Ao cair da noite calada e quieta como um grande segredo, tocou o telemóvel que esquecera na biblioteca. Margarida atendeu. Ao tempo que suspeitava, sabia que eu adoecera febril daquela excessiva espera. Tratava-me com íntimo pudor como a um enfermo terminal, pronta a quaisquer esforços. Certo que quando a situação a atingiu forte sentiu um terror vago: resistiu até ao fim, mesmo percebendo que o tédio escorria de um para o outro e que o seu amor resultara inútil. Mariana já se tornara a minha âncora maior, o último peixe vermelho de um lago, duma sensibilidade tal que me deixava sem respiração.
Atendeu o telemóvel, ignoro o que perguntou. Ouvi a voz titubear, e percebi que era o momento. Gestos indecisos, um sorriso do tamanho do medo, entregou-me o telefone, colocando-o à minha frente, e ausentou-se.
- Olá! – disse numa voz doce, a voz de Mariana, mas falava com uma certa enfatuação, como quem já desprezou o sotaque, como se já não recitasse um poema açucarado.
Disse-me onde estava e deu-me um endereço junto à Cinemateca.... Desliguei, subi ao quarto, amontoei uma série de coisas numa mala, desci as escadas, e sem um abraço nem o sabor de um beijo mergulhei num vendaval de pensamentos, enquanto, pela derradeira vez, pisava o chão da minha casa.

**
Cinco da manhã. Chove tanto, tanto. Estendido na mais estreita cama senti frio no coração, a alma suja de restos e a consciência de que não encontro a mulher com que sonhei. Nem em Lisboa nem no Rio de Janeiro. Nem nos sítios mais impronunciáveis. Existem mulheres, e, em todas elas, um fragmentozinho da fêmea ideal, uma carícia de espuma, um violino que gostamos de tocar, um levíssimo toque de mistério, mas em nenhuma se reúne tudo o que se espera e dela aguardamos. Nenhuma mulher agrega em si tudo isso, nem existe a única, a perfeita, a imensa, essa figura singular que nos traz bem-aventurança e nos canta até adormecermos. Existe sim a melodia do corpo feminino e muitas outras coisas que não posso compreender.... Senti-me como um turista solitário, num inter-regional que pára em todas as estações, mas sem esperança em chegar ao destino do sonho que é o verbo amar.

A noite desaba sobre as minhas lágrimas que sinto perdidas como fios de cabelo. Um cigarro, outro cigarro vai acalmar seguramente …

***

Mafalda, cabelos, mãos, sal e pele, ternos lábios, rosto de Klimt, overdose de beleza. – Então na próxima quarta-feira, certo, Mafalda? Espero que tenhas gostado. Às sete e um quarto, se estiveres de acordo…a essa hora cá estarei …aqui, no hotel azul-cobalto, onde ninguém nos possa falar ou reconhecer.

Luís Galego

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Saturday, May 08, 2010

a dor dos homens...


O homem tem lugares no seu coração
Que ainda não existem,
E entra neles a sofrer
Para que venham a ter existência

Leon Bloy

Entardecer de Outono. Aeroporto da Portela. Pela primeira vez vi o meu pai chorar. Eu seguia para a República Checa – uma viagem que me levaria à Faculdade de Medicina da cidade de Pilsen, a 90 quilómetros de Praga. Estava impaciente por partir, a minha casa cheia de reposteiros e velharias nos arredores dos subúrbios de Lisboa tinha-se tornado de alguma forma insuportável para mim e o ensino superior português tinha-me castrado, não fosse o meu espírito; por falta de uma décima fiquei à porta de uma qualquer escola médico-cirúrgica que falasse a língua de Camões. Que sistema de acesso é este que recusa, à partida, tanta gente com vocação e 17 valores? Atingiram-me as lágrimas do meu pai, uns olhos de nevoeiro, quando me abraçou para se despedir.

Ao longo de anos não tínhamos tido a audácia em partilhar este gesto íntimo, este toque afectivo. Ele era um homem alto, entroncado, uma montanha mas percebi que a força do seu abraço representava a sua alma cheia de tristeza, angustia funda. Eu partia para longe, e ele sentia a mágoa da despedida. Eu estava a amadurecer e a conhecer-me melhor, e para ele eu era uma flor solitária. Ele amava-me, tive essa consciência como nunca. Era qualquer coisa que não carecia de ser dito antes, e agora os seus olhos pisados revelavam-no. Em todos os momentos que vivemos, havia o sentimento de que a vida é cruel, e que ele e eu residíamos próximos dessa injustiça.

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Lá fora, a chuva, telefono para Portugal e soube que ele tinha morrido, sem aviso. Para a minha tia, o sofrimento tinha já algumas horas, e descreveu-me dolorosamente a sua madrugada nos corredores frios do Santa Maria.
- O Prof. Lobo Antunes disse que ele combateu até ao último minuto.
Desliguei e olhei infeliz para a Adriana. Os dedos trémulos e a língua presa entre os dentes. Ela pôs os braços à volta do meu pescoço e pediu-me que chorasse.
Porque é que nós homens não conseguimos chorar? Uma lágrima cai em silêncio pela minha cara. Nada nos prepara para a morte do ser que amamos incondicionalmente. O mar salgado das lágrimas que escorreram por dentro dos olhos, por dentro do corpo do meu pai no aeroporto de Lisboa é a mais bela e a mais triste imagem com que fico.

Luís Galego

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Sunday, May 02, 2010

solitário procura companheiro(a)...

A solidão torna-se insuportável quando sobe pelo corpo, navega pelo sangue e se arruína em bebedeira de luto dentro do coração esfomeado, como um castigo, um amargo soneto à morte antecipada; a solidão é uma carteirista da felicidade alheia, uma cadela nocturna, uma máscara de morte. Convive com horas clandestinas, estrelas apagadas, chagas infernais. No desassossego da idade talvez fosse melhor partilhá-la com alguém a quem extorquir um pouco de ternura; talvez essa grave coima que é a solidão ficasse atenuada, se repartida com um qualquer, um companheiro de circunstância, uma mulher vendida aos ventos que se conhece na íntima noite numa rua vazia e difícil de encontrar. Há horas que são momentos de dor, jogos de relâmpagos e de cataclismos. Mas secam, porque a solidão também enlaça devagar, como uma deusa sonâmbula que desliza. Bruscamente tudo acontece: primeiro, a curiosidade, descoberta casta; depois, o desejo, desassossego na respiração; a seguir, a paixão que se desfaz na lua; e, por fim, entra em cena madame solidão, iluminada pelas luzes longas e em frente de uma cortina escura. Desiste-se, adoece-se, envelhece-se, geme-se como um animal estrangulado, morre-se mirrado até ao osso, sem conchego e sem deus. Sente-se as mãos molhadas do choro e já não se espera outra mulher que console, nem um amigo de braço estendido que amacie a alma esburacada e até a pele passa a ser virtual. Cada discurso é estéril, mesmo o mais sapiente. Quanto egoísmo, quanto propósito supérfluo, quantos acrobatas a ensaiar o mortal, ninguém sai sem cadastro! Quando nos desiludem já pouco se espera do ser humano, nada é mais que profundo vazio, frágil instante, sala de tortura, carne ardida, punhal num peito, voo de pássaro ferido, animal que uiva, como se o mundo fosse um castelo-fantasma e perdesse todo o sentido, ficando tão só a escuta do grande sismo silêncio que, a pouco e pouco, começa a ressoar na alma em desagregação, como nas margens do tempo.

Ainda assim, pálido e frio, especialista em fracassos, insiste entrar sem bússola no labirinto das emoções, de recomeçar e deixar o seu cartão de visita, dados pessoais e telemóvel: solitário, 40 anos, escondido nuns óculos escuros, talvez poeta, talvez humano, procura companheiro(a)…

Luís Galego

Ver imagem aqui.

Saturday, April 24, 2010

Madalena...


Madalena dança num trapézio sem rede mas ama o marido mais do que tudo no mundo. É isso que ela diz – a toda a gente, ao psiquiatra, até aos estranhos – e gosta de o afirmar. Esta convicção é acompanhada por uma inquietação muda e por uma fictícia compostura da voz. Pretende provar que ama o homem com quem vive mais do que nunca. Evita olhar frontalmente pois teme detectar a mais leve dúvida nos olhos do médico que a segue. Teme que o clínico consiga auscultar-lhe o espírito através das múltiplas camadas do seu semblante e que destape os diferentes rostos escondidos por trás das máscaras. Receia que a verdade salte, irreprimível, da sua face, porque quando se procura amordaçar a realidade para que não fuja pela palavra ela tende a escapar pelo olhar.

Madalena é magistrada e a barra do tribunal é para ela um rio que corre mais rápido. É uma mulher cautelosa e tem um enorme sentido de equilíbrio e do limite das coisas. Pensa antes de falar e é atenta, controlada, pulso firme. Parece fria e conservadora e não consegue rir-se de forma espontânea. Aguenta-se à beira do abismo sem cair. Contêm-se e não se atreve a ceder aos seus próprios desejos. Nem às necessidades do organismo – necessidades tais como recostar-se numa cadeira, ou fechar os olhos quando se sente cansada ou com sono. Tem a mente constrangida por regras, considerações, precauções e interrogações. Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície. Carrega às costas um pânico que se deita à noite com ela na cama. Ela sabe que o marido é feito de matéria diferente, uma sensibilidade estranha em carne viva, coração desgovernado, colérico quando contradito e tem que ser constantemente compreendido. São assim os homens, dizem-lhe.

A separação amputa-a, ainda que tenha vivido com ele as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mas a única alternativa é fugir. Faz a mala e escreve um bilhete, explicando que está doente, que vai ausentar-se por alguns dias, e que depois explica tudo. Por agora, a única coisa que pode fazer é sair e pedir colo ao universo.

Madalena segue no seu carro, conduzindo lentamente pela marginal e o mundo está sossegado. Não tem qualquer destino em mente e já nem o peso de um remorso, apenas um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Gosta de conduzir ao acaso, de viajar em direcção ao desconhecido, sem necessidade de etapas frenéticas. Desce a tarde lenta e as lágrimas correm-lhe pela cara, e não são de tristeza. Baixa o vidro da janela do condutor e o sol daquele primeiro dia de Outono brilha-lhe sobre as nódoas negras esculpidas no braço. Sente que pode recomeçar a viver.

Luís Galego

Saturday, April 17, 2010

molhado olhar...

Nestes dias meteorologicamente imprevisíveis com que os Deuses devastam e enchem as nossas existências, os sentidos ficam enigmáticos como se comemorassem o dia das depressões sincopadas. Acendemos um cigarro, para que o calor do lume nos reconforte. Mesmo dentro do quarto fechado, escutamos o jogo de relâmpagos, o mar de folhas quando o sono sob o rumor da chuva se desfaz e olhamos líricos através da janela embaciada. Quando ouvimos a água bater nos vidros, sentimos o som de violinos por todos os lados mas também o canto alucinado do vento. O tempo contorcionista cobre o céu que se enche de lágrimas, dói de tanta perfeição e até pode ser que o vendaval um qualquer dia venha no lusco-fusco repousar em nossas casas. O tempo é assim, uma história pungente aumentada. É um poema que se oferece à nossa frente. Mas tudo dura pouco. De rompante, o sol reaparece, limpa-nos as olheiras e resta apenas o peso das pingos sobre a sabedoria melancólica das árvores e da acácia que ainda se atreve a trazer ao cimo a folhagem. Tudo em breve desaparecerá e fica em nós a morder-nos um segredo.

Chego à janela e persigo com o olhar a mulher que passa na avenida como um pássaro esquivo. Tem porte altivo, nos seus cabelos parece habitar uma tempestade e nos quadris dançar um desafio, com qualquer coisa de orquídea brava. Solidão é o único luto que põe, sem nenhum motivo de pranto. Compra todos os dias o jornal. É esse o pretexto para sair de casa e correr a avenida, o seu palácio sem porta. Aquele trajecto até ao quiosque encanta-a mais do que as frequentes idas a Bruxelas do seu senhorio. Passa tanta vez naquela estrada, naquele caminho onde ilude o universo. O percurso que o senhorio faz obriga-o a correr a uma velocidade que lhe destroça a viagem, enfrentando um vazio que lhe dá guarida profissional. Ao contrário, a inquilina faz aqueles passeios diários como quem ousa um novo passo de dança. A avenida arrebata-a como se entrasse no paraíso sem ter que achar a portaria. Sente o mundo pulsar na pele e quebrar o vidro do dia. Descobre sempre cristais. Olha o céu, o chão e a cor daquela velha avenida de Lisboa. Põe tanto azul naquele trilho que todos os sinais, todas as presenças, todas as ausências lhe contam uma história e ganham um sentido.

A chuva passa. A mulher continua a caminhar para casa. Antes de entrar, vê o vizinho das águas-furtadas sair com uma ruiva quase incriada. Beijam-se, morrendo na boca um do outro, beijos que apetece roubar, enrolados numa paisagem silenciosa em cúmplice harmonia. A mulher reparou e aqueles frágeis momentos foram sobrenaturais, o sinal de também ela ter existido carnalmente. Sobe os degraus mas a vida parece-lhe mais leve que a sua própria sombra. Despede-se da avenida como de um cavaleiro branco, príncipe secreto da aventura. Acha que o mundo se confunde com uma plataforma instável, mas ao pensar isso abre-se-lhe o sorriso de quem crê na simplicidade das coisas…

Luís Galego

Ver imagem aqui (Fear and Faith, John Lautermilch)

Sunday, April 11, 2010

Ch'io mi scordi di te?...Non temer amato bene...


Oh, who could have foretold
That the heart grows old
Yeats

Acabada de chegar dos céus grisalhos de Londres já passava da meia-noite. O dia tinha sido amargo, um suplício. Vinha esgotada, derreada, devastada, como quem anda em chão lamacento. Mas não é só no corpo que tudo magoa e a febre arde. Sente-se rasgada, horrivelmente agoniada, corpo em risco de desabar, já sem espírito para continuar. Sabe que o mundo é mais forte do que ela e que tem poucas forças para resistir ao seu poder. Que é frágil como um grão de neve. Quando uma furtiva lágrima desliza no seu rosto percebe que está deprimida. Com a idade, ganha horror aos hipnóticos, opta por uma taça de vinho branco. Desprende os cabelos e deita-se nua nuns lençóis desalinhados carregando às costas uma vasta solidão de eremita, sem vontade sequer de ir ver o que a Mila, uma ucraniana, pálida como uma figura do período azul de Picasso, diáspora de cansaço e sacrifício, que como muitas outras chegam amortalhadas de miséria, lhe deixou para cear. Decide fazer dieta. Soma-lhe três cafés. Sintoniza a Antena 2, tentando fixar a atenção na voz de Cecilia Bartoli numa ária de concerto de Mozart – Ch’io mi scordi di te?...Non temer amato bene. O que ouve inquieta-a ainda mais. Muda de antena, adormece. Acorda poucos minutos depois, com um ferro no coração e o corpo tão encarquilhado como a mente. Levanta-se, dirige-se ao frigorífico. Come doces de laranja à colherada, como quem pede socorro. Não tem força anímica para mais nada, mas sabe que, a meio da noite, se levanta como um fantasma e atira-se à torta de chocolate avianense. A segregação das noites mói, enraivece-a, escalavra-lhe corpo e os sentidos. A vidinha que o Alexandre O’Neill odiava, encaroçada de mágoa. Mas não consegue sair dela: está cercada pela rotina do cansaço, pelo comodismo da letargia, pela dependência da melancolia, contrariando o que sentia outrora, a coragem como farol contra o nevoeiro.

Na companhia aérea sente-se esvaziada naquele espaço claustrofóbico. Debate-se de forma simplória a crise de todos, a penúria e a autópsia da transportadora, os salários milionários dos pilotos e o malfadado PEC, reportório estafado e ela matuta na sua própria carência, na brevidade da vida e na crise actual do silêncio. Tudo o que ali se discute é óbvio, e ninguém se interroga que na empresa, como no país, somos todos reféns daquilo a que Max Weber chamava “a gaiola de ferro da burocratização”, a manipulação estatística que vai apertando pelas tenazes de burocratas, gestores e economistas. Esquecem-se que “Quand un peuple a de bonnes moeurs, les lois deviennent simples”, como dizia Montesquieu. Quando intervém, em reuniões que a Direcção soberba na sua superioridade moral insiste em promover como uma liturgia, ouve a sua voz como se fosse a de outra mulher. Tem consciência que repete frases feitas, que lhe soam a falsete de travesti, a boutades amargas, a meias-tintas. Sabe que não põe convicção, nem veemência, nem rigor no que diz. Tem horror aquele léxico oco. Salienta que a aristocracia de uma profissão exprime-se igualmente pela cultura, como tão bem frisou João Lobo Antunes, e é isso que ali falta, universo de gente inculta e ignorante, “le triomphe de la médiocrité”. Para ela deviam colocar os olhos em terras de Sua Majestade onde o princípio que predomina é basicamente “The most for the most, and not everyting for a few”. E fica perplexa que, no fim, as colegas mais novas, magras como cães vadios, consultando o seu espelhinho de bolso, lingerie preta, batons vermelhos e saltos de agulha, venham saudar pelo que disse. Gente que associa Schostakvich ou Mara Zampieri a marcas de shampoo. Parece-lhe que isso é sintoma de declínio, coeficientes de inteligência abaixo de zero, criaturas que frequentam universidades de vão de escada e participam sem questionar numa viagem sem bússola, mas pasma-se com grande entusiasmo e uma inesgotável joie de vivre. Profissionais de uma cultura machista, onde os homens se designam de comissários e elas de assistentes. E ambos os sexos tão só o mesmo tea or coffee.

Parece que Aristóteles terá dito que o único poder que os deuses não possuem é o de apagar o passado. Não admira pois que ela simples mortal o não consiga. Casou duas vezes e viveu uma relação breve. Uma mulher sem família é como uma cadela sem dono, é caminhar sobre uma estrada repleta de vidros partidos, terá lido algures. Cada casamento durou uma eternidade, a última união tão só alguns meses. O primeiro casamento terminou devido às traições dele. Engenheiro físico escocês que conheceu no Estrela Hall quando puxava de um belo charuto, circuncisava-lhe a ponta e arrancava demoradas fumaças de prazer, empenhado à altura pelo estremecer da vida, sensibilidade em carne viva e que lhe tinha confidenciado que para além dela lhe bastava a música de Schumann, uma mente como uma lâmina, corria do laboratório para a universidade, da universidade para a o laboratório. Regressava a casa a horas mortas, ou não voltava. Apesar de feminista e cúmplice das Três Marias, a justificação que absolvia os atrasos dela não podia desculpar a inexaurível indisponibilidade dele. Discutiam e o diapasão anímico das enormes troikas subia na contagem dos megahertz emocionais. Passaram anos em tempestades, num tormento onde actuavam acusações, reacusações, ofensas, farpas palermas, coléricos quando contraditos e uma sexualidade enrugada como pétalas de rosa em páginas de livros que o trânsito do tempo empalideceu. Num seminário de Verão em Salzburgo o engenheiro físico apaixona-se por uma engenheira química australiana e pela raça puríssima dos seus traços e foram fazer experiências físico-químicas para o outro lado do oceano. Alguns anos depois, casou com um astucioso professor de economia politica mas que exprimia sentimentos de indizível delicadeza, conheceu-o num encontro fortuito nas arcadas vazias de uma grande cidade italiana. A conversa levou-os às águas doces que, na Sicília, brotam dentro do salgado mar. E as manhãs ficavam com outra luz. Um segundo encontro, já em terras lusas, sucedeu num dia de Outono, no alto de uma falésia da Arrábida, a olhar o mar dourado, insubmisso a qualquer paleta. Desta vez a conversa foi longa, menos recatada, um diálogo suculento que provocou o matrimónio poucos meses depois. Um conforto burguês que findou em enfado, em permanentes ladainhas de costumes. Afinal tão só uma cançoneta melancólica, talvez sedutora, vazia, no fundo uma fácil exibição vaidosa da debilidade masculina. Nada acontecia de estimulante. Passavam os fins-de-semana enrolados no sofá, náufragos, sem paixão e sem disfarce. Durante aquelas horas, as palavras do outro eram já sabidas antes de ser ditas, frases já acumuladas como pó no fundo das gavetas, num tédio quase monástico. Um domingo ao entardecer, ele, com a sua face façanhuda, disse-lhe: "Não há açúcar que polvilhe a nossa relação!". Quando ela chegou no dia seguinte a casa estava vazia, desarrumada, ele tinha alugado um quarto forrado de um papel ridículo perto do jardim das Amoreiras. Neste caso e como escreveu António José Saraiva (…) as flores e a Primavera não secaram, os rios continuaram a correr e os pássaros a cantar (…). Telefonam-se quando imprescindível e o que dizem têm o mesmo desinteresse, a mesma sensaboria do que falavam quando viviam juntos. Da última relação – a mais profunda e a mais curta, o canto do cisme soou cedo – há a assinalar as nódoas negras, as cicatrizes que ficaram no consciência e o facto de que pela primeira vez na sua vida se ter visto autorizada a sentir (parafraseando a Traviata de Verdi) o gáudio de ser amada, amando. Finalmente o amor a sério, pensava com um entusiasmo quase infantil, um bálsamo nas feridas antigas. Um jovem poeta natural de Praga, ar vadio, pouco dinheiro, dador de poesia e esplendorosa juventude, mãos quentes, recem saído da Charles University e leitor de checo na universidade nova de Lisboa. Muito mais novo, não aguentou os olhares curiosos e maldizentes dos restantes. Não é fácil para uma mulher madura largar tudo por uma fantasia, pela indizível magia de noites intensas, por um perfume de um homem invulgar, sentir-se atraída por um escritor sem malícia de 23 anos chamado Rainer; é um pecado mortal, tabu universal a mulher ser mais velha que o homem. O jovem talento que lhe soletrava Joyce ao ouvido e os seus lábios lhe abrasavam o rosto, bastava que ele a segurasse pelas ancas para começar o incêndio, num autêntico terreno metafísico, foi para uma residência artística em Nova Iorque, o umbigo do mundo, situada nas franjas de Harlém, e por lá deve permanecer. A tragédia grega ensina que “o amor não deve atingir a própria medula da alma”. Na sua vida a medula da alma foi atingida uma vez pelo amor e resiste mal à ausência e os sonhos acumularam-se nas rugas. Um coração que não sara. Faz-lhe tanta falta aquele amor. Um tempo vivido devagar – e foi tão breve.

Tem dois filhos do primeiro casamento, que vivem longe. Sentiu-os crescer dentro dela como intrusos, prodigiosa contradição, para quem amar os seus é tão natural como respirar. Só um político como o príncipe Metternich pode afirmar “L’ erreur n’a jamais approché de mon esprit”. Dois jovens adultos, duas vidas a velocidades diferentes, criados com mais livros do que carrinhos. A sua educação assemelhava-se a um jardim inglês, multicolor, imprevisível, mas acolhedor, uma mãe sempre presente, embora nem sempre próxima. Um, geólogo, inteligência brilhante, desatento e carinhoso, extraordinária doçura no olhar, mas ao mesmo tempo de reserva e timidez, está a fazer o doutoramento no Massachusetts Institute of Technology e partilha um apartamento com uma cantora de blues. O mais novo, conservador de museus, estagiário no museu de arte contemporânea da universidade de São Paulo, estóico e epicurista, travo diferente, mas a sua crítica tranchante, não se intimidando com o dogmatismo, exprimindo sotto voce, o julgamento em que punha sempre o peso das ideias, descoincidentes, vive com um arquitecto de interiores japonês. O geólogo envia mensagens diariamente, o outro de quando em vez. Visita-os quando pode. Interessa-se mais pelo que eles investigam, recusa até longos salmos de confidências, receio de saber mais, reconhece-se paradoxalmente na personagem de Merly Streep em Angels in América: a actriz é Hannah Porter Pitt, a mãe de Joseph. Quando o filho lhe revela a sua homossexualidade esta recusa saber. Tenta perceber aonde falhou e procura sentir-se útil para em troca sentir amor, que há tanto deixara de receber. Prefere falar de estilos artísticos e de ciência com os filhos. A arte fascina-a, porque é para pensar, entende bem aquele mundo de sombras e ecos. Gosta de penetrar no segredo de um pintor ou escultor. Não sabe como se pinta ou se esculpe daquela maneira e por isso acha admirável. Gosta de se deixar inundar pela proposta. Procura fugir da análise psicanalítica, das exegeses excêntricas que puxam pelos cabelos; tenta apenas soltar o olhar, deixá-lo voar. Se vai a exposições, embrenha-se como em textos escritos em línguas clássicas. Há naquele ambiente qualquer coisa que a magnetiza. Talvez uma carga erótica, uma liberdade desconhecida, um beijo naqueles recortes de grande intensidade. Certas coisas que só a arte pode dizer e o resto é silêncio.

Quando se entretém a vasculhar a intimidade da memória, lembra que quando frequentava a faculdade de letras, era tão feliz e não sabia, gostava de ir pelas ruas acompanhada pelas suas sombras, ruas nas margens da cidade, ruas desertas entre colinas desfeitas, pensando no que lia e lia muito, a sua leitura era hedonista, em esgotante poligamia: para além da cultura clássica, mergulhava na antropologia visual, na arqueologia, na estética, na ética, na história cultural e das mentalidades e até no ramo das neurociências, a neurologia da arte. Invejava todo o saber e Apolo era o seu Deus, porque o era da poesia e a descoberta da poesia é o privilégio que os deuses concedem a alguns. O livro o seu trivial pursuit. Como no poema perfeito, cada palavra é insubstituível. Alimentava-se de filósofos, teóricos, ensaístas, artistas, extasiava-se com a precisão da língua e de nacos de prosa do Eça, e desde os seus arrogantes treze anos que estava enamorada do Heathcliff de Wuthering Heights, obra que lera sempre com igual deleite e um migraleve na última página – e nunca se cansou de dedilhar aquelas folhas. Aquilo sim era musculação da vida. Outro tempo, outras maquilhagens. Andou muito tempo atraída pela cultura grega. Leu e releu os poemas homéricos. Interrompeu ao fim de três anos o curso de línguas e literaturas clássicas para concorrer a assistente de bordo e a literatura hibernou, a não ser livros de bolso, prontos a comer, short stories cómicas e burlescas que lê aos golinhos ou Elles e Marie Claires emprestadas, como se tudo o resto estivesse contemplado no Index Librorum Prohibitorum. Se pensa nisso, sente culpa e remorsos. Se medita nos textos organizados e traduzidos pela Professora Maria Helena da Rocha Pereira, enorme arquivo de sabedoria, sente uma colossal tristeza por ter trocado a licenciatura, para ir servir tea or coffee, uma ilusória carreira de glamour e quarentena intelectual, falso métier de todas as vaidades, que perdeu cedo a graça. Há tempos, recomeçou a ler. Uma chefe de cabine uruguaia deu-lhe a conhecer novas leituras. O livro de uma escritora do seu país, Andrea Blanqué, que conta a história de uma mulher só, "A Passageira". Leu esse romance em que se fala de uma mulher com a idade dela: a história de alguém desprotegido prestes a afogar-se no mar da mediocridade. Quando o romance começa, encontra-se uma personagem feminina que tem 37 anos, é divorciada e cria os seus dois filhos sozinha, porque o seu marido emigrou para Israel. Não é um romance crepuscular e muito menos o volume III dos Essais de Montaigne, o mais perfeito, mas habitam personagens que irrompem pela sua vida adentro – um pouco como fantasmas num filme em branco de João César Monteiro.

Mais uma furtiva lágrima. A dor é um farol sem ninguém de vigília, um beco sem saída. Põe um CD de vozes negras que gemem coisas como When I Am Laid In Earth, melodia puxada para a cobrir com um manto de um belo poema. A noite cai e com ela a fragilidade do ser.

Assusta-se de pensar que as noites são iguais e que vai ter que as atravessar, uma a uma, sozinha, tal Ana Karenina, Madame Bovary, Mrs Dalloway. Vêm-lhe à memória Álvaro de Campos ao confessar que a sua alma é um buraco negro de inenarrável energia que nunca chegará a explodir, que permanecerá para sempre contido, simplesmente porque nada parece valer a pena. Sentindo-se como uma velha senhora com gota à Dostoievsky, não resiste e acaba por tomar o sedativo acompanhado de um pequeno espumante. O tranquilizante não lhe deu a password para aceder ao mundo paradisíaco, mas aferrolhou a cancela que dá para o inferno de Bosch.

O dia nasce obsceno, novamente tea or coffee, e engastada em ternura contorna as lágrimas mentais e esboça o seu melhor sorriso a um conjunto de crianças de uma aldeia do Norte que fazem a sua primeira viagem de avião, cheias de sonhos brilhantes e que ainda acreditam no horizonte longínquo, em que a eternidade se renova, tal como ela em menina quando ouvia fascinada Over the Rainbow e lhe bastava uma lua de papel…

Luís Galego

Ver imagem aqui (Picasso, Femme en Blanc)