Luís Galego
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Rita revela bem cedo a paixão pelas literaturas. As palavras dos supremos sacerdotes da escrita atenuam-lhe a solidão do quarto onde estuda. Abriga-se à sombra dos grandes lendo Tolstoi e Tocqueville, Dostoievski e Montaigne, Dickinson e Yeats e o mundo é seu. Menina-prodígio mas sem direito a escolher a área que pretende seguir e com a qual sempre sonhou, porque os pais optam por ela e inscrevem-na no agrupamento de ciências de modo a entrar numa faculdade de medicina, ainda que em qualquer parte do mundo, ainda que hipotequem todo o património. O que interessa é que a filha seja médica, quem sabe especialista no Neurological Institute of New York? Rita, com 19 valores, ingressa na mais prestigiada escola de ciências médicas do país, mosaico de enormes talentos. Orgasmo sem precedentes para os progenitores que vêem resolvidas parte das suas frustrações, sem que prestem a mínima atenção à apatia da filha quando vê confirmada a entrada num curso que pouco lhe diz. Pedro, filho e neto de enfermeiros, noitadas passadas às voltas com canhenhos, renunciando a muito do que é próprio da sua idade, ambiciona circular pelos labirintos dos hospitais civis e exercer medicina interna; por duas décimas vê-se colocado em veterinária e embrulhado num manto de mágoa porque entre o que pretende – curar pessoas - e o que consegue – tratar de bichos - existe o micróbio da desmotivação. Joana sempre quis ser bióloga e investigar biologia molecular e celular, não tem dúvidas e não lhe apetece ser mais nada. A Clássica de Lisboa não a admite por décimas ignorando uma diáspora de cansaço e sacrifício; um pequeno percalço num dos exames finais do secundário e depara-se com um obsceníssimo Não Colocado na página electrónica – qual roleta russa – que anuncia o futuro e que a deixa lavada em lágrimas frente ao computador, engolida por um mar nocturno e sem lua. Carlos, irremediavelmente baldas e pouco dado às letras e às ciências, mais vocacionado para a colagem de cartazes e com uma formidável capacidade de mobilização em período eleitoral, desiste enfastiado dos estudos, tendo completado o secundário a custo e a prestações. Uma fábrica de diplomas de que nunca tinha ouvido falar e que fecha os olhos à incompetência escancara-lhe as portas para um curso que nem sabia que existia e para que servia. Sim, mas qual é o problema? Com várias interrupções e muitos erros de português – mas isso, como é evidente, é questão de importância secundária – lá termina a exótica licenciatura. A mãe orgulhosa telefona para o gabinete onde o filho foi convidado para adjunto, prémio pela dedicação partidária, e repara na subserviência com que as secretárias tratam o seu rapazinho, com tanta genuflexão e tratamento diferenciado. O Sr. Engenheiro está em reunião, dizem, com as sílabas bem pronunciadas. Ele é agora uma personagem influente do partido, ombro a ombro com os fortes e a megalomania do poder e mesmo percebendo zero sobre a assessoria que presta, passa tardes cheias de circunlóquios e conversas de ocasião contribuindo para a feitura de leis que se aplicam aos cidadãos deste país, do qual fazem parte a Rita, anestesista sem vocação, um lamentável desperdício de energia, que em vez de ensinar literatura comparada está incumbida em intubar doentes e assegurar-lhes a ventilação, Pedro, a ganhar miséria à hora fazendo biscastes em algumas clínicas veterinárias dos subúrbios, Joana, filha de empregada fabril, gente sem importância e pedigree, socialmente invisível, segue os passos da mãe, porque o destino lhe destruiu os sonhos, a inocência e qualquer coisa chamada dignidade. O astucioso Carlos com a sua sábia displicência pode mudar de partido, de religião ou clube de futebol e até presidir uma comissão interministerial ou quem sabe uma empresa pública porque o importante é servir o seu país, isto é, servir-se do país, a corruptela e os inúteis.
Luís Galego
Olá, como se chama? Não foi complicado vir ter a minha casa? Não é simples encontrar esta vila escondida caracterizada por um levíssimo toque de mistério, como um sítio abandonado aos lobos, distante da grande cidade repleta de betão e ruas cheias de encontrões. Quando viu uma casa pequena, uma quase tenda no deserto soube certamente que aqui era o meu refúgio, este espaço-silêncio, comprado em hasta pública, rodeado de coisa nenhuma. Eu sei, a casa é modesta, mas é a minha pérola redonda. Não preciso de um palácio adormecido à beira lago da velha Escócia, mas não prescindo do arder de velas em candelabros de bronze, de um copo de vinho, de um cigarro e de um sorriso, de quando em vez. Embebida num véu de magia coloco um colar de pétalas e sento-me nesta poltrona defronte da janela, escutando o mar, a agitação das ondas torcidas como búzios, o vento, a chuva, o clamor da tempestade, a serenidade do luar, espiando uma estrada de estrelas que parecem flores e acenando às asas de aviões distantes. Os sons lá fora em sinfonia são violinos bem tocados e toda a música me pertence despertando o desejo de abrir a porta às sereias dos cabelos cor de violeta e com elas dançar sem parar. Entrego-me à vida como a um vício. Bourgeois, a gata, de quando em vez, desentorpece-se, desremela os olhos, trepa pelas paredes acima e acaba por sair, entra sem bússola nem licença nos terrenos mais próximos. Gosto de pensar que é uma espécie de gata em telhado de zinco quente que permite algumas coisas mas não todas. É uma felina que não dissimula mas que recheia horas mortas, fazendo-me carícias às pernas e ao espírito, é uma sócia que não importuna. Cúmplice, regressa sempre com o amanhecer do universo, lembrando um fantasma assustado a pedir aconchego. Meu jovem jornalista está a ouvir uma mulher de idade, sem biografia ou requinte e que não foi uma rainha do êxito nem femme fatale, como todas as velhas dizem ter sido, apenas interpretei umas coisitas numa altura em que uma mulher cantar jazz significava sair da sombra da história da arte sem ter de falar a linguagem dos machos, mas tornar presente o seu próprio desejo. Caríssimo, não o conheço, só presumo que seja mais um estagiário grávido de esperanças que lançam às feras com vencimento zero, nem percebo se veio do sol ou do mar, mas confidencio-lhe que a minha vida é louca mas feliz. Construo o meu real conforme me apetece. Gosto do acaso do dia-a-dia por que o seu perfume não se esgota, enalteço a surpresa dos instantes! Na minha vida o abismo, a amargura, as depressões sincopadas, o medo, a nostalgia, o odor de morte são inconstitucionais, tão pouco sei o que são. Vivo sem muito dinheiro mas o paraíso pertence-me. Habito uma espécie de união clandestina, por que nunca senti a necessidade de oficializar o amor que sinto por um homem que conheci em fresca idade e cujas crateras dos seus olhos cor de oceano pese os tempos permanecem belas...um escultor de belos traços, possante e frágil, de ascendência judia, artista de primeiríssima água, que vive tal caixeiro-viajante transportando a bagagem abstracta dos anos, deslumbrando-se de terra em terra, carta sem paradeiro certo, mas continuando a preservar o jardim do prazer que é o seu velho ateliê, a poucos quilómetros daqui. Fazemos amor de vez em quando. Quando a noite é mais forte e nos parece iluminada de archotes. Amizade, ternura ou amor, pouco interessa. Um sentimento de muitos anos sem imposições ou grades e a deixar os dias correr tranquilamente. Sou solidária com a Phedra, travesti cubano de porte altivo mas vestida de revolta, especialista em fracassos no mercado escravo, a quem num dia de vendaval dei a mão, é ela que me limpa a casa e me traz as compras da mercearia mais inspirada. Caminho pela praia, a minha avenida, aos fins de tarde, pisando a areia molhada onde o tempo poisa leve. Contemplo o azul e os barcos no mar; as conchas e os seixos habitam-me o olhar. Imagino deusas a voltarem à terra montadas em cavalos brancos, uma delas preta, tal como eu, num mundo que se enfeita de arco-íris e que respeita todos os aromas e qualquer cor. São os sonhos da criança que serei sempre. É necessário, às vezes, não acordar a utopia, o poema que se dissolve na boca. A noite sensualíssima traz consigo a espuma e o sal e deita-se comigo, nua nos meus braços. Que mais posso desejar? De vez em quando alguém se lembra que gravei uns discos e compram, fico enternecida tal como quando sentia a tensão do clarinete. Não tenho esconderijos nem disfarce. Apenas um chão feito de memória. Em certos momentos sinto falta da minha filha que mora num país perdido. Cansei-me de tentar desvendar o seu segredo, gostava que telefonasse, ainda assim tenho intacta a sua ausência e o privilégio de me comover com o vestido em tons floridos que revejo numa sua fotografia de menina de longos cabelos que embala uma boneca. Sabe uma coisa? Ultimamente tenho mergulhado em águas da poesia portuguesa. Li um tal Álvaro de Campos e num só verso identifiquei a minha alma: poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Luís Galego
imagem retirada da net