Wednesday, March 31, 2010

um enigma chamado beleza...

Ó beleza! Onde está a tua verdade?
William Shakespeare

Não existe unanimidade à volta do conceito de beleza. O belo é um conceito movediço, sem definição coerente, é como desembarcar numa ilha misteriosa, uma arma de dois gumes. Sábios doutores da estética dizem-nos que a beleza é como o amor, não se pode definir, um espectáculo sem rede alguma. Se há quem nomeie a beleza física como imprescindível, para outros o belo espiritual prevalece. O que para uns representa beleza, para outros é um casarão vazio e condenado. O povo diz, “Quem feio ama, bonito lhe parece”, John Donne contrapõe que o amor construído sobre a beleza morre com a beleza, ternura rápida, e Confúcio atalha que ainda não viu ninguém que ame a virtude tanto quanto ama a beleza do corpo. Aristóteles conluie que a beleza é dom de Deus. Platão ensina-nos que o belo coincide com o bem e que a beleza tem algo mais que as outras formas inteligíveis: é a única que pode ser vista pelos olhos físicos, além de o ser pelos olhos da alma.

Um enfeitiçado pela beleza, como S. Agostinho, soube interpretar o belo com sublimes expressões: «Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!»”. Mas uma das mais atraentes definições pertence a S. Tomás de Aquino, que a descreve como “aquilo que provoca um conhecimento gozoso”, a emoção que nos é provocada pelo estético.

Conceito que pesa séculos sobre as costas e as pressões sociais ditam regras e restrições, em todas as idades e classes sociais. Nos programas para a infância, o mau é retratado como um indivíduo vil e feio, um marinheiro num barco naufragado, enquanto que o herói é jovem, atraente, de brilho intenso em eterna aventura, equívocos para camuflar o coração. Esta percepção de beleza é-nos incutida desde o berço. Modelos, fotografias ou espécies de magazines prescrevem doces venenos, padrões que são interiorizados ao longo de uma vida e que propõem enganar a rotina dos caminhos sem lua. Para se atingirem certos parâmetros, há quem recorra a métodos artificiais, barbitúricos piedosos, que vão proporcionar a beleza, a jóia valiosa mais pretendida, e, por consequência, provocar um sentimento avassalador de auto-confiança, a sensação de possuir a imortalidade a cada instante – contra o velho corvo que é o tempo – enchendo-se de estrelas como um manto real e assim roer a solidão.

“As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”, diz Vinícius de Moraes numa época em que a magreza não era deslumbrante e as raparigas não se violentavam para alcançar um corpo andrógino. Mas não será a beleza tudo aquilo que nos agrada, esmaga, comove, faz estremecer? Uma mulher com quem beber e morrer, uma personagem de Pirandello, as palavras escritas de Yourcenar, as imagens e a Sinfonia de Mahler em Morte em Veneza, as vozes de Jessye Norman e Elis Regina, o concerto para violino de Tchaikovsky, um verso de Sophia que conhecemos de cor, uma harpa envelhecida de Herberto Helder, as rugas encontradas na paisagística do rosto das belas mulheres, o aplauso ao velho actor, um sorriso, um afago, um segredo ao ouvido, a carícia da espuma, a beleza das flores quase sem perfume, uma pequena folha na felicidade do ar, um toque de lábios intenso, um abrir mão da primavera – como escreve Neruda – para que alguém muito especial nos continue olhando, um último abraço ao cair da noite, uma lareira que se acende em Novembro, o rio lá em baixo, tão azul ao final da tarde?

Não será beleza, também, a desconstrução dos estereótipos que podemos estarrecidos admirar na obra de eximia complexidade de Ricardo Passos, convocando-nos para um império dos sentidos?

O que é afinal a beleza?


Luís Galego
Mestre em Sociologia

[texto a publicar em Catálogo, acerca da obra de Ricardo Passos]

12 comments:

Maria Julia said...

Adorei ler um tema sempre debatido e que muito me atrai - complexo sim e subjectivo, mas...o BELO é o que cada um de nós ama...pode não ser o objecto da nossa paixão - eu separo as águas!

Obrigada Luís.

Ricardo Passos said...

É para mim um privilégio e uma honra, poder contar com um texto com tamanha profundidade, no catálogo da minha próxima exposição de pintura.
As palavras escritas são, por si só, uma magnífica exposição de talento, sensibilidade e capacidade literária, para além da maravilhosa viagem através da História, sob várias vertentes, acerca do conceito de beleza.
Estou certo que o teu contributo com "Um enigma chamado beleza..." será uma mais-valia para a compreensão do meu trabalho, que, espero que esteja à altura das tuas tão enriquecedoras palavras.
Um grande bem-haja.

Anonymous said...

Poxa tu fartas-te de escrever.
Tu não és mestre da sociologia és mestre da paciência.

António Mestre em Ovos da Páscoa e omeletas.

Rosario Ferreira Alves said...

Obrigada por tão belas palavras que tão bem emolduram a arte do Ricardo Passos. Acho que ambos estão de parabéns. A concertação do Luís sobre a beleza é sem dúvida ela própria uma bela poesia que nos toma com todos os 5 sentidos e nos embala o coração enternecido...Obrigada mais uma vez...

Rosário

vitor said...

Assistiremos a essa desconstrução, fundamental em uma qualquer época intemporal, em toda a sociedade repleta de obstinação na tentativa de linearização do conceitos do todo, renegando a individualidade e a reflexão para alem do óbvio, do visível?

Je Vois La Vie en Vert said...

A beleza exterior é subjectiva e a beleza interior é a mais importante, no meu ver .
Feliz Páscoa !
BEIJINHOS da Verdinha

maria said...

Ó beleza! Onde está a tua verdade?
A particularidade da beleza é mostrar-nos que a verdade se encontra nas pequenas coisas que apreciamos e consideramos belas.
Encontro beleza nas palavras do Infinito Pessoal, porque me fazem bem à alma e me ajudam a "roer a solidão". Aqui encontro a emoção do calor de uma lareira a crepitar num final de tarde "em Novembro"...
Novembro é um mês belo...

Anonymous said...

"Mas não será a beleza tudo aquilo que nos agrada, esmaga, comove, faz estremecer?" Será sem dúvida tudo o que vemos com os olhos do coração. Sem medo, sem preconceito, com alegria na alma e no coração, diponíveis para a vida.

Beijinhos, adoro ler-te,
Fátinha

Anonymous said...

Mais um texto impecável, mas penso ser eu que tenho um problema com "o feio", "aquilo que pretende chocar". Talvez a vida me choque tanto diariamente, que aquilo que me serena é o belo, o suave, o macio...aquilo que me puxa para ali ficar especada, porque me faz sentir em paz, me devolve o meu silêncio envolvendo-me em cores pacificas, toques macios, palavras sussurradas....eu sou uma amiga da solidão

JJ said...

para mim a beleza e' a ausencia de pensamento perante uma realidade, ( de forma natural ), e mediante a sua absorçao pelos sentidos, uma identificação ou nao , pelo que achamos belo , como paradigma, nesse momento da vida.

ANITA said...

É grande para mim a felicidade falar de dois amigos!
Um, mais recente, o Luís, mas que me "cativou" de imediato com a sua escrita. E o outro, querido amigo Ricardo, que tanto admiro e que aqui recebe elogio merecido, através das palavras do Luis.

É engraçado reparar em quanta cumplicidade existe entre os dois, que suponho bons amigos.

A Arte do Ricardo é realmente grande e inovadora. Deve-o decerto à sua recusa de alinhar em conceitos e estereotipos caducos.
Livre, como tem/deve ser todo o Artista.

Obrigada Luís, pela mestria das palavras que tornam claro o que para muitos continua "turvo".
1 Abraço

Camila said...

Eu acredito que a beleza é subjetiva. Nenhum parâmetro, mas cada pessoa gosta de coisas diferentes. Eu, quando me sinto feia, eu uso perfumes para cheirar rico e se sentir melhor.