Sunday, October 02, 2011

Beau-Séjour...




«a que distância deixaste

o coração?»

José Tolentino Mendonça





- Perdoar-me-ás, Francisca, mas sou um homem rude e franco

disse Gabriel, com uma expressão séria no rosto, sentindo os músculos da cara arrepanhados, numa claro sentimento de desconforto.

- Meu anjo, és bela, impenetravelmente bela, e tão adorável que estremeço só de te beijar os cabelos, mas preciso de tempo. A nossa relação invade-me, força-me a viver numa correria entre tu e eu. Foi tudo muito acelerado e sinto-me perturbado.

Francisca como se tivesse levado um tiro no coração. Estavam sentados a uma canto no pequeno bar do Palácio Beau-Séjour, na expectativa de que naquele silêncio do Outono ninguém os conhecesse. Mas nem assim conseguiam iludir a impressão de estarem a ser observados. Gabriel disse

- É preciso que entendas, não se trata tão só de um doce pecado ou de segredos partilhados, existe a Inês e os gémeos de um lado, tu do outro e eu com a cabeça metida num emaranhado de espinhos. É tudo novo, estou confuso e algo desamparado e sem coragem de agarrar o toiro pelos cornos. Francamente não sei o que pensar.

Francisca escutava em silêncio, desolada, exalando um ar de profunda humilhação, com a sensação de ter sido condenada a habitar nos arredores monótonos da vida. Aquele encontro estava longe de ser uma Ode à Alegria. Gabriel não usava aliança, mas o coração brotava-lhe nos dedos. Desde o primeiro instante que Francisca se deliciava a admirar as mãos daquele homem de lábios grossos e olhos negros como a noite, humilde desenhador de arquitectura de uma autarquia da periferia, cuja taciturnidade era quebrada por espasmos de enorme jovialidade, embora quase impotente do ponto de vista linguístico. Foi amor ao primeiro toque, desejava-o palmo a palmo, milímetro a milímetro. Gabriel disse

- A verdade dói, mas também não podemos desprezar o António e os teus filhos

isto com o rosto virado de lado, assemelhando-se as suas palavras a uma letra para uma canção sobre traição. Francisca ouvia-o mas com os olhos desviados para o quadro exposto na parede: uma reprodução de Menez, sentido agudo da luz e da cor, em composições abstractas onde as vagas geometrias entranhavam um ritmo exclusivamente plástico na abstracção. A perseguição das palavras

- E tenho o horror de não ser capaz de ultrapassar este terrível sentimento de culpa

esmagavam-na. Não muito longe do Palácio há um esconderijo algures num canto perdido do mundo, onde se amaram meia dúzia de vezes, um prédio com as paredes manchadas de preto e a palavra PENSÃO quase apagada pela sujidade e pelo tempo, percorriam um corredor azul-mar em passos incertos, com a intensidade do medo, algo assustados, algo inquietos, devaneios de duas almas hipersensíveis agrilhoadas em estreitas vidas.

Gabriel, um homem alto e de constituição robusta, despia-se envergonhado, parecia uma criancinha assustada, com temor da sensualidade e do escuro.

- Nunca vivi uma situação desta natureza

desenvolvia ele.

- É a primeira vez que danço no trapézio proibido de um circo sem rede, uma realidade em que nunca me tinha visto desde que casei

e Francisca sentada na cama juntinha a ele, pouco à vontade, no receio de que Gabriel pensasse que ela era uma despudorada.

Os dois permaneceram calados durante algum tempo.

- Devo confessar que talvez seja melhor não nos precipitarmos, não achas? – pergunta Gabriel, numa voz meio rouca, tentando recuperar o sangue-frio e reunir num todo as peças espalhadas do quebra-cabeças que dá forma ao seu eu.

Francisca tocou-lhe de leve na mão com a intensidade do medo, limitando-se a concordar com a cabeça e qualquer coisa a chover dentro dela, a vida fodida – e a alma rasgada.

- Oh, meu amor, não posso, simplesmente não posso viver sem ti. E eu não vejo mais nada além de ti. E nada mais desejo senão que estejamos juntos outra vez. Amar-te é amar-me

e, ainda a meio do desabafo, já o achava extemporâneo, perdido como o fio de um cabelo: mulher, os gémeos, ainda crianças, ainda de bibe branco, a estabilidade dos filhos dela, adolescentes, a família do António, animais gregários, sempre principescamente tratada, verdade seja dita. A convicção supersticiosa de ter de prestar contas. Atirar-se ao desbarato numa aventura irreparável, um amor ligeiramente decadente, as salivas proibidas, uma relação sem destino. O pavor de ser supérflua, de estar a usurpar o lugar de outra pessoa. Além de mais restava-lhe alguma ternura pelo fantasmagórico marido de quem tinha apreciado os seus livros antes de o conhecer, mas há centenas de anos que não sabia o significado da palavra intimidade, vida a dois numa espécie de beau monde requintadamente culto e opressivo, que de tão insípido quase permitia ouvir o pêlo da alcatifa a crescer na mais fina das prisões, sim, de facto era casada com alguém a quem nenhuma emoção enrugaria a pele. Após um emudecimento incómodo Gabriel disse

- Eu sinto-me cada vez mais próximo de ti, invades-me as veias e o cérebro, mas estou perdido no labirinto da mágoa daqueles que pertencem a lugar nenhum, o que é que posso, podemos fazer?

Um universo a separá-los, a família antiga e abastada, amigos, interesses distintos, de instante para instante identificam-se lacunas, tão só carícias arriscadas, porque não pôr fim a estes encontros, mensagens escondidas, desassossego, arrependimento, filhos, sogro ministro de Estado, corpos tensos, paixão secreta, que complicado, e depois, o futuro? Gabriel disse

- Mas recuso a ideia de deixar de pensar em ti, acredita

e a cara feita em estilhaços para interditar uma lágrima, Francisca, para si mesmo

- Não sofras

os lábios tremem, reprimindo uma urgente necessidade de chorar, ela que desde a doença da irmã não sentia o coração tão apertado, a respiração tão cortante e rápida:

- Não tenhas medo

disse Gabriel, sorrindo-lhe

Com o tempo…

e agora em atitude febril de gata em telhado de zinco quente, fortalece o desejo de abraçá-lo e repetir incessantemente que o amava,

- Não me abandones

um sofrimento só comparável ao de quando viu Isabel reduzida a cinzas

Gabriel

- Também me arrepia a ideia de nos separarmos mas receio que nos possamos deixar engolir por areias movediças. Qual a alternativa, pergunta, enquanto lhe acaricia os pálidos braços lânguidos de bailarina.

Francisca susteve a respiração por um momento e decidiu levantar-se, empurrar a cadeira sem se preocupar se esta caía ou não, sem desviar os olhos por um segundo do rosto de Gabriel

- Desculpa, tenho de ir, esperam-me

e pálida e fria, saiu o mais depressa que as pernas o permitiram, tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o com o isqueiro do carro, sintonizou uma estação de música clássica e ao som da Paixão Segundo São Mateus de Bach apanhou a estrada na direcção de uma qualquer praia deserta, tranquila e escura, as lágrimas inundavam com persistência os olhos, enquanto amaldiçoava um mundo de enganos, um romance engolido pelas brumas.

Ter-lhe-á ocorrido que me viu pela última vez, que o Beau-Séjour foi o perpétuo adeus? Que a minha vida tinha ficado entalada na porta da pensão, como um dedo? Afinal o que era o amor? Que amores eram aqueles que encontrava pelo caminho e que tinham sempre algo de inconsistente? Mas isso, como é evidente, é questão de importância secundária

o que lhe importava agora tudo isso, quando amanhã é dia de celebrar o vigésimo aniversário do seu casamento num dos melhores hotéis de luxo de Lisboa?

Luís Galego

18 comments:

João Roque said...

As saudades que eu já tinha dos teus textos.

Rosario Ferreira Alves said...

escrita sublime de quem sabe da humanidade das almas encurraladas em corpos, encurraladas em vidas socialmente embrulhadas no papel onde todas as regras se escrevem...

um grande abraço, Luís. continue sempre. é muito bom lê-lo.

P. P. said...

Momento sublime!

Ana Maria de Portugal said...

..."o que lhe importava agora tudo isso, quando amanhã é dia de celebrar o vigésimo aniversário do seu casamento num dos melhores hotéis de luxo de Lisboa?"
... ... ... ... .. ...
O que importava agora celebrar 0 20º aniversário de casamento num dos melhores hotéis de luxo de Lisboa se o AMOR existiu na véspera?
É esta realidade da vida, esta mentira disfarçada e constante que aqui está tão bem retratada, Luís.
Como sempre gostei imenso.Parabéns
Um beijinho

José H.Pereira said...

Belo retrato de uma hipócrisia tão presente nesta sociedade. Talvez Gabriel seja mais poeta e menos "rude". Muito bem escrito, parabéns.

Mar Arável said...

Bem-vindo

Mais um belo retrato a preto e branco e em relevo de encontros desencontros onde a ficção
parece realidade e é
nesta sociedade de liberdade condicionada que expulsa todos os que querem numa relação fazer do outro propriedade privada.

Venham mais cinco
Abraço

Unknown said...

É muito bom vir aqui e encontrar novos escritos...

A continuar...

Maruska Camara said...

Nunca sei onde acaba a ficção e começa a realidade!!!! Escusado será

dizer que está bem escrito porque tu escreves bem....nunca vivi uma história assim.... mas se sabiam, se ele queria ir embora...para quê o encontro numa pensão ordinária????
Mas é a tua história....não a a minha.... e gostei muito, apesar de todo o mau estar subentendido.
Um grande xi coração da Maruska

Anonymous said...

Vai sendo cada vez mais um costume os casamentos serem precedidos de festas de “despedida de solteiros”, mesmo quando os casais já vivem juntos há algum tempo.

Será que os vigésimos aniversários de casamento começam a ser habitualmente antecedidos de umas “escapadelas de casados”?

Ora, entre “despedidas” e “escapadelas”, imagino algo em comum: a sensação de perda de liberdade. Aquela liberdade em cujo quadro os actos não são penalizados com um sentimento de culpa (notório neste post), ainda que possam confrontar-se com um consequente assumir da responsabilidade.

As “despedidas de solteiros” manifestam-se ruidosamente sob os olhares de todos ao som dos copos a brindar.

As “escapadelas de casados”, pelo que se sabe, acontecem escondidamente sob o olhar cúmplice dos dois envolvidos ao som dos corpos...!

Th.M.

andré maia said...

Apenas um passeio pelos recantos da memória, nesse outono escancarado sobre as ilusões, quando os dias se vestem de cobre e mel?

...Ou terá sido a nostalgia que se limita a sublinhar os vinte anos de um casamento que - se calhar por equívoco meu - mais se assemelha à secreta celebração de uma saudade diluída nas teias do imprevisto?

Anonymous said...

Como é lindo o seu texto!
E tão próximo da realidade...
Parabéns.

Anonymous said...

É tão belo o seu texto...
Tão real...
Vou continuar a ser sua visita!

Anonymous said...

Tão belo o seu texto, e tão real...
Vou continuar a visitá-lo!
Parabéns.

Virgínia do Carmo said...

Detalhes de um alinhamento de exigências nos carris de uma sociedade que cresceu demasiado - na direcção errada.

Muito bom lê-lo, Luís. Obrigada pela partilha.

Dolores... said...

Relações humanas, belas e profusas, concomitantemente, desenhadas com delicadeza, numa descrição minuciosa e com diálogos precisos.
Fruto de quem sempre está atento à VIDA e aos que por ela passam.
Tudo muito belo.
Grande beijinho, poeta.

Unknown said...

Passado tanto tempo, a qualidade e a mestria com que dominas a narrativa continuam num nível muito elevado. Que bom que é saber escrever assim. Que bom que é poder ler assim...

Anonymous said...

Gostei. Sempre gostei. Mas nem tudo é possível. Talvez seja romantica em excesso, talvez só quisesse estar contigo. Possou muito tempo, muito, mas às vezes disfarçamos, mas estamos presos a alguma coisa. Gostava que um dia conhecesses a minha filha, Joana. (S.S. ME)

Gazeta Insonia said...

Bem Luis, se eu entendi bem você está terminando um caso com o Infinito Pessoal e assumindo um casamento com o Sociologia e Cultura. É isso? Pois eu quero contar-lhe uma história bem pessoal. Mas não aqui. Depois tu me contas se entendi bem ou qual é a direção que este espaço infinito tomará. Um beijo.