Saturday, November 25, 2006

Rómulo de Carvalho, ou a importância de se chamar António

Centenário do nascimento de Rómulo de Carvalho
Doce lembrança
Rómulo de Carvalho foi uma pessoa singular. Historiador da Ciência e da Educação, nasceu poeta, tornou-se professor de Física e deslumbra porque combina palavras com a serenidade, a certeza, a perícia de quem mistura sais. Quando publicou o primeiro livro fê-lo em segredo. Não contou a ninguém, escondeu-se atrás de um pseudónimo e até a mulher recebeu um exemplar autografado pelo correio!

Colhidos de surpresa, os críticos não pouparam elogios. Mas interrogavam-se: afinal quem é este homem? A resposta aí está: nasceu a 24 de Novembro de 1906, no Bairro da Sé, em Lisboa, e foi baptizado com o nome de Rómulo. Cresceu rodeado de afecto e tinha apenas cinco anos quando surpreendeu a família apresentando o seu primeiro poema. Ele próprio recordava esses tempos com um vago sorriso de ternura:

“Fiz exame de admissão ao liceu com oito anos e fiquei aprovado. Mas como não tinha idade para frequentar as aulas, continuei na escola primária que era um andar na Travessa do Almada. Ocupava o tempo a ensinar os mais novos. Essa foi a minha primeira experiência como professor. Se calhar, despertou ali a minha vocação…”

O estudo, sempre grande fonte de prazer. Igualmente atraído por Ciências e por Letras, acabaria escolhendo Fisico-Quimicas, “Considerei que assim tinha acesso a uma maior vastidão de conhecimentos e preparava o espírito para me apoderar das Letras por conta própria. Fiz o curso (...) na Faculdade de Ciências do Porto porque quis afastar-me de Lisboa, onde o excesso de solicitações me dispersava. No Norte não conhecia ninguém e podia, portanto, mergulhar no estudo a tempo inteiro. Sem nunca abandonar a leitura. Mantive-me atento ao mundo literário. E nas horas vagas dava explicações. Acho que quis ser professor por causa disso. Apercebi-me que podia ser útil, que transmitia o saber com facilidade.”

A trajectória cientifica do poeta revela-se na obra: linguagem específica das Ciências, evidência invejável e um extensíssimo talento.
“Não há não,
duas folhas iguais
em toda a Criação.
Ou nervura a menos,
ou célula a mais,
não há com certeza,
duas folhas iguais.”
Para Rómulo/Gedeão era fácil, o que parecia fácil mas não era, “Nunca estive sentado diante de uma folha de papel à espera de inspiração. As palavras ocorriam-me espontaneamente, muitas vezes a propósito do quotidiano e compunha o poema de cor onde quer que estivesse. Depois, chegava a casa e escrevia.”:

“Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,…”

Avesso a mostrar-se, recolhido, discreto, calmo, mas ao mesmo tempo algo distante, homem de saberes múltiplos e de humor subtil, Rómulo de Carvalho que nunca teve pressa, mas em vida tanto fez, deixou, em morte, uma saudade imensa da parte de todos quantos o conheceram e à sua obra. Faz cem anos que nasceu Rómulo de Carvalho/António Gedeão e os seus poemas tocam-nos muito.

Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

6 comments:

Tino said...

Quando um homem conhece quimicamente a composição de uma lágrima pode ser tudo o que entender ser neste planeta. :)
Abraço e bom fim de semana!

Al Cardoso said...

Infelizmente continuam os homens a desconhecer (ou querer ignorar) certas composicoes quimicas e por isso, este mundo e como e.

Um bom fim de semana.

OLHAR VAGABUNDO said...

concordo com o al cardoso,,,
abraço vagabundo

TG said...

Rómulo de Carvalho/António Gedeão, pouco poderei acrescentar ao que já foi dito, a sua obra fala por si, existe um poema que eu gosto muito:

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

Antonio Gedeao

uma abraço e um bom fds
Tiago

Anonymous said...

Rómulo de Carvalho ... a importância de ser "António" ...

António é o nome que escolhi para a personagem principal do livro que ando a "tentar" escrever - "Baia das Gaivotas ..." www.aveneziana.blogs.sapo.pt (tags: contos)...
António foi o meu bisavô mais carismático, e igualmente uma das personagens do meu livro anterior ...
***
Esta foi apenas uma pequena nota de identificação pessoal com o nome ... Curiosidades.
____
Do autor Rómulo de Carvalho. Brilhante, sem dúvida. Lágrima de Preta, Pedra Filosofal, Meu pratinho de arroz-doce ... e tantos outros ... da ternura à melancolia, do sonho à magia, viajar com Rómulo de Carvalho (sou Mel de Carvalho ... dou-me conta neste momento...) é viajar com uma estrela a brilhar longe, no infinito e tão mas tão pungente, que ninguém mais está sózinho ...

E, ao escrever, leio o Tino a meu lado ... sim, Tino, com toda a certeza, um homem que conhece a composição da água (primeiro elemento) pode ser tudo o que entender ser neste UNIVERSO... diria ...

Um beijo e vivam os poetas, os que nos leem e todos os que lemos ... porque ...

"Um bom poema é aquele que nos dá a impressão
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!" - Mário Quintana

Rómulo de Carvalho conseguia a alquimia de num só tempo ser as duas coisas ...

Uma vez mais ... um abraço grande de Mel

Victor Figueiredo said...

Excelente título para o post!

Ao imaginar-me aluno do prof. Rómulo quando andei pelas físicas, acredito que a vida teria sido bem diferente.

Abraço,
Victor