Saturday, November 17, 2007

a cotovia...

ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer

Natália Correia

Sexta-Feira, noite de Novembro a roçar o frio. Chego a Vale dos Barris, em Palmela, zona protegida, em pleno Parque Natural da Arrábida. No Vale, os 4 ha da quinta do Teatro O Bando espraiam-se entre o caminho e a encosta que sobe à Serra do Louro terminando no campo arqueológico onde reminiscências de povos domiciliam, entre as espécies selvagens que ali pululam. Os moinhos espiam-nos os passos que se encantam com a paisagem encantadora de mar, serras e vales. Mas ali também se enaltece a criação artística. Dois pavilhões aquartelam o quotidiano do teatro onde as pausas, marcadas pelo sino, desafiam o encontro.

Aqui, ir ao teatro não é consumir. É contemplar o espaço cénico numa envolvente natural cheirando o alecrim e o rosmaninho. Assim, o chão imortalizado transforma-se com o propósito de assistir «A Cotovia», espectáculo inspirado em «Auto da Feiticeira Cotovia», uma metáfora sobre a censura. Uma representação sobre mulheres, o universo literário feminino de Natália Correia. Em palco 13 actrizes contam a história da feiticeira Cotovia que é condenada à fogueira por defender a poesia. É uma exposição sobre a condição feminina e sobre a censura em tempos de ditadura. Duas actrizes estão em palco com o Grupo de Teatro as Avozinhas, composto por Senhoras com mais de 60 anos. A acompanhar os textos, três músicos dão ao espectáculo um aroma a fumo e a cabaret.

Qualquer texto de Natália Correia é para mim uma tentação: "É o processo extraordinário da Feiticeira Cotovia / que diz que as roseiras ao contrário / é que dão rosas e é que há poesia". Estamos perante um julgamento, um auto, um tribunal dirigido pela Inquisição que decide condenar quem diz que "a pátria que se chama vida é dar-se ferida de ser pouca / com séculos de carne decidida / à liberdade que é luz na boca". O que os inquiridores querem é que ela confesse, que é uma "sibila com bico de rouxinol". É bonito escutar as alegações da Feiticeira Cotovia nomeadamente quando responde à solteirona por ela lhe ter dado "o evangelho de todo o pecado / num ventre vermelho sensualizado". A Feiticeira só se defende dizendo que "passou um amante no voo directo / dum corpo para a sua constelação / com pena de ti roubei-lhe o trajecto / e pus-te uma pomba infinita na mão". Aos ataques do frade que a condena por ter feito "com as cores dum arco-íris e uma cadela vadia uma harpa para Osíris para me embruxar a freguesia" a Feiticeira Cotovia replica chamando até ela as cantigas de amigo - "Vai chegar o meu amigo / traz uma pinha na íris / se a pinha é vir ter comigo / tanto faz Baco ou Osíris".

Todos exigem que a Cotovia confesse os seus supostos pecados, as suas ideias do "poente dum país que não existe / e que andas muito contente quando deves andar triste". No texto está sempre presente o sado-masoquismo da Inquisição - "Em catedrais de mil archotes / numa luxúria de extrema-unção / um frenesim de sacerdotes tem um orgasmo de Inquisição".

Natália Correia morreu de tédio das curiosidades satisfeitas. Uma mulher que tudo fez para escapar a uma vida banal, tal era o pavor de uma não-Vida de que fosse simples espectadora. Tal como João Brites, o encenador, acredito que a escritora se associaria de bom grado a esta imprevista e comovedora homenagem.

19 comments:

teresamaremar said...

Natália, a vontade de dizer, a busca inquieta da verdade, a Mátria em chamamento.

Mulher do seu tempo, mas igualmente para além dele, o feminismo distinto do conceito costumado.

A mulher, matriz primordial, arquétipo da liberdade erótica e passional.
Espaço dual de permanente provocação.



tédio das curiosidades satisfeitas... a fazer-nos reflectir(-nos)

Entre Eros e Thanatos, Natália, espaço essencial de vida onde se cruzam amor e morte.

teresamaremar said...

Para te dizer que levei o tédio das curiosidades satisfeitas para o ArtesDuas.
Era-me irresistível.

bom fim de semana

isabel said...

Deixo-te um poema de Natália, Língua mater dolorosa [1976]. Gosto muito!

"Tu, que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luiz Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca."


Ela própria acusada de abuso de liberdade de imprensa. Uma mulher com garra.

Bom fim de semana, Luís.

Anonymous said...

"Uma mulher que tudo fez para escapar a uma vida banal, tal era o pavor de uma não-Vida de que fosse simples espectadora." Sem dúvida uma excelente descrição Para Natália Correia.

Dela gosto de muitos escritos entre os quais o que aqui deixo:

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

Excelente post!
Abraço

ps - Bombay Saphire, muito boa escolha, o meu Gin favorito :)

avelaneiraflorida said...

Caro Luís,

Que post lindissimo!
Não apenas pela Natália (eterna!) , mas pela NATUREZA que a acompanha...
e, como não podia deixar de ser, pela lembrança dos cantares de amigo, medievas formas do sentir!!!!!
"BRIGADOS"!!!!!!!

UM EXCELENTE FIM DE SEMANA!!!!!

Anonymous said...

Luís,

De Natália e em homenagem a Natália:

Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

**
Para ti, um abraço enorme e saudoso
Mel

Kalinka said...

OLÁ LUÍS
num túnel escuro é onde me sinto hoje...e nos dias anteriores.
Preciso muito de me animar, tenho necessidade de ser Feliz.

Muito obrigado pelas tuas visitas sempre agradáveis ao meu kalinka.
No meu mais recente post, estas são as palavras: Destaquei algumas palavras com a letra I - estão em letra maiuscula e a negrito; em breve voltarei ao alfabeto e a próxima letra é mesmo essa - a letra I de IRRITADA é como estou, INCONFORMADA.

Faz precisamente hoje 15 dias que também fui ao teatro e fiz um post sobre isso. Hoje, vejo que estiveste aqui bem perto de mim - Palmela.

Beijitos.
Bom domingo.

Jasmim said...

Olá
Vim só dizer até breve.
obrigada e muita inspiração para os seus sempre interessantes post.
Não sendo muito dada a atrbuições de prémios nos blogues, faço uma excepção e deixo-lhe a distinção "blog da cultura" - da que eu gosto, claro...
:)

para si uma das minahs baladas preferidas:

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer
José Afonso

Lúcia Laborda said...

Oie amigo! Esses seus posts, heim? Sempre despertando um desejo enorme de poder participar, mas infelizmente a distancia, não permite. Sempre bom saber do mundo que apenas, passa em nossa cabeça.
Bom domingo!
Beijos

Outonodesconhecido said...

"Tédio das curiosidades" que profundo.
Continuo a adorar a sua maneira de escrever.

Oliver Pickwick said...

Olá, Luís! Excelente a sua descrição desse Vale dos Barris, me senti como se estivesse lá.
Lamento não conhecer e, sobretudo, não poder assistir A Cotovia, me pareceu uma história muito interessante.
Abraços, e tenha a melhor das semanas!

jorge vicente said...

A Natália Correia era uma grande poetisa. E esta peça deve ter sido magnífica.

Sabe sempre bem ler os teus textos, poéticos e bastante visuais. Dá vontade de entrar dentro deles.

Um abraço
Jorge Vicente

Momentos said...

Espero que o aterrar tenha sido proveitoso.

Obrigado pela visita.

Natália é uma velha paixão.

João Roque said...

Há duas facetas a considerar neste texto.
A primeira é a existência de uma companhia de teatro como "O Bando".
Só João Brites e a sua concepção de teatro não convencional assentaria arraiais ali naquele desterro perto de Palmela; e que bem nos acolhem quando chegamos, fazem-nos sentir uma visita priveligiada; pelo menos assim sucedeu comigo, quando lá fui, já umas 3 vezes. Mas a grande criação de "O Bando" foi uma peça vivida em dois comboios numa linha desactivada ali em Alcântara, há uns anos atrás: simplesmente genial!
A outra faceta, é tão genial, que não me alargo mais, pois já roubei muito espaço: é a grande Natália Correia!!!!
Abraço e boa semana, Luís.


Deixei-te um desafio no meu blog...

Red Light Special said...

E andam por aí esses subnutridos de barriga inchada de nada!!!!
E nós com teatros aqui tão perto, plenos de menus ricos de alimento para a alma!
beijos e boa semana para ti!

rui said...

Olá Luís

A grande Natália!
Escrita cativante que me prendeu do princípio ao fim.

Abraço

pin gente said...

lembrei-me, para ela, de uma bela canção que conheço na voz de ney matogrosso. "exagerado... eu sou mesmo exagerado, adoro o amor inventado!"
abraço
luísa

Alexandre said...

Ainda no domingo passei pelo Bando mas foi de dia - andei a fotografar os moinhos sobranceiros ao teatro como faço muitas vezes já que aquela zona é um paraíso!

Um abraço!!!

C Valente said...

Na ceia de Natal ergo a minha taça começando por agradecer as vossas carinhosas palavras, de a amizade e compreensão e estimulo, que me tem proporcionado ao longo deste tempo.
Há meia noite ao brindar aos presentes , faço um brinde a todos os meus amigos e amigas deste mundo virtual com votos de saúde e paz.
Saudações amigas C Valente