“Não há nada no mundo mais cómico do que a infelicidade”.
É verdade. Não é todos os dias que se choca com um eléctrico, e não propriamente um streetcar named desire, mas não foi isso que impediu poucas horas depois assentar arraiais na sala estúdio do Dona Maria II para sentir Beckett e a sua perturbadora peça Beginning to End. O actor entra em cena com um passo cambaleante, enfarpelado como um mendigo. Doente surge na escuridão do palco, com roupas rasgadas e cheias de pó, com umas luzes fracas a carregar o dramatismo do relato. Observa a plateia com um sentimento amargurado no olhar. Informa-nos que está a morrer e mais dia, menos dia deixará de existir. Enquanto espera que chegue a sua última hora, este homem recorda momentos significativos do seu passado: as relações emaranhadas com o pai, que morreu cedo, a ligação afectuosa à mãe, com quem nunca se conseguiu entender, uma infância passada em grande efervescência interna, a maturidade decorrida sem amor (“Nunca amei ninguém acho eu, senão lembrava-me”), uma velhice vivida em solidão, sem ninguém que o distraia. No meio de um discurso delirante vai-nos contando histórias burlescas da sua vida como por exemplo a sua compulsão por chupar pedras. Algumas dessas histórias parecem testemunhar alguma saudade de pessoas que já partiram, mas são sobretudo crónicas de uma vida que está prestes a expirar. João Lagarto, em cena sozinho, num estrado vazio, tem uma actuação admirável, não abandonando por um instante a personagem que desempenha e oferece a respiração da morte em hora e meia de dramas, tensões e episódios hilariantes num equilíbrio apurado entre diferentes registos.
Apesar de tudo o texto do dramaturgo irlandês prendeu-me até ao último segundo e recordou-me que não obstante o meu carro novo e híbrido ter ficado algo danificado e a repousar numa oficina algures, que a minha vida não se assemelha aos dos sem abrigo de Dublin, embora nunca tenha conhecido nenhum. Também é certo, tal como o actor refere num texto a este propósito, que sempre tive a ideia que os mendigos de Beckett não são pedintes sociais, mas da alma – homens defronte do enigma da morte, ou melhor da constante presença do fim…
É verdade. Não é todos os dias que se choca com um eléctrico, e não propriamente um streetcar named desire, mas não foi isso que impediu poucas horas depois assentar arraiais na sala estúdio do Dona Maria II para sentir Beckett e a sua perturbadora peça Beginning to End. O actor entra em cena com um passo cambaleante, enfarpelado como um mendigo. Doente surge na escuridão do palco, com roupas rasgadas e cheias de pó, com umas luzes fracas a carregar o dramatismo do relato. Observa a plateia com um sentimento amargurado no olhar. Informa-nos que está a morrer e mais dia, menos dia deixará de existir. Enquanto espera que chegue a sua última hora, este homem recorda momentos significativos do seu passado: as relações emaranhadas com o pai, que morreu cedo, a ligação afectuosa à mãe, com quem nunca se conseguiu entender, uma infância passada em grande efervescência interna, a maturidade decorrida sem amor (“Nunca amei ninguém acho eu, senão lembrava-me”), uma velhice vivida em solidão, sem ninguém que o distraia. No meio de um discurso delirante vai-nos contando histórias burlescas da sua vida como por exemplo a sua compulsão por chupar pedras. Algumas dessas histórias parecem testemunhar alguma saudade de pessoas que já partiram, mas são sobretudo crónicas de uma vida que está prestes a expirar. João Lagarto, em cena sozinho, num estrado vazio, tem uma actuação admirável, não abandonando por um instante a personagem que desempenha e oferece a respiração da morte em hora e meia de dramas, tensões e episódios hilariantes num equilíbrio apurado entre diferentes registos.
Apesar de tudo o texto do dramaturgo irlandês prendeu-me até ao último segundo e recordou-me que não obstante o meu carro novo e híbrido ter ficado algo danificado e a repousar numa oficina algures, que a minha vida não se assemelha aos dos sem abrigo de Dublin, embora nunca tenha conhecido nenhum. Também é certo, tal como o actor refere num texto a este propósito, que sempre tive a ideia que os mendigos de Beckett não são pedintes sociais, mas da alma – homens defronte do enigma da morte, ou melhor da constante presença do fim…
18 comments:
Não ficaste ferido, espero (a não ser na carteira, claro). Se o meu carro tivesse um encontro imediato com um eléctrico, este passava-me a ferro.
Os monólogos são, provavelmente, os textos mais difíceis de interpretar. É preciso ter muita "estaleca" para estar sem rede durante 90m. num palco. E o texto tem de ser superior. Normalmente é intimista. Pessoal numa personagem. Do que dizes, sinto que o mendigo agarra e por isso vou ver se o vejo.
Como diz o Catatau os monólogos não são nada fáceis de interpretar, só mesmo para grandes actores como o João Lagarto, que também já tive a oportunidade de ver no teatro.
Os carros são o menos importante o que vale é não teres saido magoado.
Um abraço.
Um abraço
"Vão-se os anéis, fiquem os dedos", mas de qualquer forma um abraço solidário.
Os monólogos teatrais, se não se apoiarem numa interpretação poderosa, podem tornar-se cansativos, mesmo com um bom texto.
Parece que esta peça tem o suporte do texto (Samuel Beckett é por si oróprio, uma garantia) e uma interpretação, ao que dizem, superlativa, de João Lagarto, num "fato feito à sua medida". Deixa-me apenas recordar os mais notáveis monólogos que me lembro de ter visto: Jacinto Ramos, no "Diário de um louco" e Maria do Céu Guerra, arrebatadora na "Maria Parda" vicentino; vi em cinema o fabuloso "A voz humana" de Cocteau, por Anna Magnanni e quase emudeci...
Abraço.
Não quero comentar nada.
Quero apenas dizer-te que é muito bom ficar por aqui e ouvir a música da série Reviver o Passado em Brideshead.
Um abraço...peludo!
Esta semana, não choquei com um electríco mas rebentei um pneu com um ladil que se encontrava na estrada ! Nada disto me impediu de me divertir, tal como tu, a seguir a este episódio ! Obrigada por nos falar da peça de teatro.
Hoje sou um tentadora : gostas de chocolate ? Se a resposta é sim, se quiseres passar pelo meu cantinho, poderás saber um pouco mais sobre esta iguaria.
Bom fim de semana !
Beijinhos verdinhos com sabor a...chocolate
Para aplaudir de pé, sem dúvida.
Beijinho e bom fim-de-semana*
Olá amigo!
Vim aqui parar através da minha querida amiga que vê a vida verde e gostei muito do teu blog.
Se me for permitido, voltarei mais vezes para deixar um pouco da minha luz!
Beijinhos de Amor, Paz e Luz!
a pobreza (seguramente não de espírito) é tal, que a certeza da morte passa para segundo plano.
"o que é a morte perante esta minha vida?"
um abraço
luísa
Esta tua postagem de hoje deixa-nos a pensar. Pelo menos a mim... e, quando assim é, é bom sinal.
A frase com que abres a postagem tem-me saltado à mente muitas vezes quando olho para certas pessoas que conheço (será que conheço?!...) e fico com a firme sensação de que se trata de pessoas que nunca amaram a não ser a si próprios...
Pobres criaturas estas!
Não será preferível sofrer por amar do que ñunca ter amado?! Eu penso que sim, tenho a certeza que sim pois já amei e já sofri por amor...
Deixo-te um beijo amigo e fraterno.
Bom Fim de Semana,
Maria Faia
gosteu da descrição, vi o olhar perdido na vida, a que acabava...senti sim. sofialisboa
até hoje só me lembro de ir ao teatro duas vezes e a última foi há pouco tempo com a alice, a fininha. era uma chachada para rir e nem gostei. um dia destes tenho que ir ver coisa mais séria.
joão
Quando vais ao teatro "vamos contigo"...
Abra�o
P. S. A aldeia da minha foto fica junto ao rio Tejo, em Alpiar�a (Ribatejo).
Brilhante, como sempre, esse contraste entre um episódio "chato" do dia-a-dia e a profundidade de um texto, que o seduziu e o levou a reflexões sobre a vida e a relatividade das coisas.
Esse contraste que inteligentemente colocou neste post ajuda-nos a perspectivar melhor a dimensão das questões que a peça aborda.
Ainda bem que o texto e a interpretação estiveram à altura um do outro e das suas expectativas.
Quando assim é vale a pena ir ao Teatro.
Abraço
Querido Luis,
não ando em maré de filmes nem peças de teatro deste género, mas não tenho dúvidas, pelo que escreve(s)que devem ser excelentes.
Mas podes sempre levar a minha mãe:)))
Espero que não te tenhas magoado.
Beijinhos, boa semana e veludinhos azuis
Bem... Desde já, Parabéns pelo excelente Blog! É na verdade, blogs destes que necessitamos cada vez mais... A cultura é chave de uma pais desenvolvido, e é na arte que se entram as respostas :) Uma vez mais, Parabéns pelo blog :)
Continua :D
P.S: Pode ser que venha a precisar de vir por aqui fazer alguma pesquisa mais tarde trabalho :)
a verdade é que me perdi neste blog!gostei mesmo!tem a parte pessoal, a sua opinião, as suas ideias, gostos e as partes mais sérias...
sem palavras para descrever.
e agradeço-lhe o que me escreveu...na verdade sinto que ainda me falta muito para aprender, e creio que ler outros blogues como este...
obrigada!**s
e creio que ler outros blogues como este,me faça crescer sempre mais um bocadinho*
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