Wednesday, July 02, 2008

confissões do trapeiro...

“Vou contar-te uma coisa: quando tinha 23 anos tinha terminado a universidade, estudei medicina, e puseram-me numa unidade de pediatria de crianças que estavam a morrer, de doenças terminais. Enamorei-me de um menino de quatro anos doente de cancro que se chamava José Francisco, que era muito bonito, tinha uma alegria de viver incrível mas morreu. Quando num hospital morre um adulto, vêm dois homens com uma maca e levam-no para a morgue coberto com um lençol. Mas este menino era apenas uma criança, veio um homem com um lençol e carregou-o debaixo do braço. Eu estava na porta da enfermaria num corredor grande e vi o homem a levar o menino, e um dos seus pés saiu do lençol e ia balançando. Pensei: "escrevo para este pé". Ainda hoje penso que escrevo para aquele pé” *

Lá fui eu a correr até ao Atrium Saldanha, palco para a apresentação da obra Entrevistas com António Lobo Antunes - 1979-2007 - confissões do trapeiro. Até pode acontecer que este psiquiatra que não queria ser médico seja um homem complicado, irascível, vaidoso, blasé, enfant-terrible, pouco dado à confidência, obsessivo, ter uma escrita densa, exigir esforço de leitura (na esteira de James Joyce ou de Faulkner), mas não consigo ficar indiferente à diversidade linguística do autor de Tratado das Paixões da Alma, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde, Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo, Eu Hei-de Amar uma Pedra, Ontem Não te Vi em Babilónia, O Meu Nome É Legião (adopta sempre títulos belíssimos). Mas o livro que mais me sensibilizou foi O Manual dos Inquisidores. Li-o enroscado num sofá e sofri com tudo aquilo. Não me peçam para explicar os seus livros, porque é algo que não consigo, seria insolência da minha parte, até porque nem sei mesmo se os alcanço no seu todo. Só sei que estou atento a tudo o que lhe sai da pena e a outras escritas que se debruçam acerca deste escritor incontornável do romance contemporâneo. Logo, esta colecção de “conversas” (53)**, editada pela Almedina, não podia deixar-me apático. Através das entrevistas compiladas por uma professora de Literatura Portuguesa encontra-se a evolução do romancista no seu posicionamento em relação à vida, à religião, à literatura, à critica... Na introdução que escreveu, "Dos trapos e do trapeiro" - sendo os trapos o romance e o trapeiro o romancista -, a docente da Universidade de Coimbra acentua que "de um modo ou de outro, os textos apresentados se traduzem em lugar privilegiado de onde se pode observar e conhecer o outro lado da imagem do escritor". Ao ouvir falar do romancista (pelas bocas de Carlos Reis, autor do prefácio, e de Ana Paula Arnaut, autora da compilação) fico com a sensação de que estaria ali noite fora…

“Fazem-me falta uns 200 anos, porque sentes que tens dentro de ti muitos livros e não vais ter tempo de fazê-los. Isso faz-me sentir indignação, por exemplo, provoca-me indignação que Schubert tivesse morrido com 29 anos, ou que Mozart aos 36. Nunca sabes quando será o dia, se será muito tarde, ou mais cedo. Tudo é tão rápido, tudo se passa com tanta rapidez. A gente diz que depois dos trinta o tempo passa muito rápido, mas isso é porque os adultos têm sempre a mesma vida, saem de casa e todos os dias é o mesmo, por isso a impressão de que tudo passa com mais rapidez”*

*citações da edição on-line de La Jornada/Ericka Montaño Garfias [não contempladas na presente obra] 26 Novembro 2006 [traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

**Rodrigues da Silva, José Jorge Letria, Clara Ferreira Alves, Baptista-Bastos, Inês Pedrosa, Miguel Sousa Tavares, Francisco José Viegas, Alexandra Lucas Coelho e Adelino Gomes são alguns dos entrevistadores de António Lobo Antunes entre 1979 e 2007.

24 comments:

Patti said...

óptima dica. Vai já de férias comigo.

paulo said...

gostei da empatia toda que colocaste nesta entrada, e eu que tenho livros de sobra para ler lá irei à procura de Lobo

m said...

Também gostei do "Livro de Crónicas". Belo post

beijinhos

Victor Oliveira Mateus said...

Bom trabalho em torno de Lobo Antunes. Apelativo. Bom gosto: "O Manual dos Inquisidores" é um grande livro, onde a ironia, a má-
goa de estar vivo e a incomunicabi-
lidade se misturam - Romeu e "as
suas caravelas", a secretária fas-
cinada "pelos dotes" dele, o raio
do cuco do relógio, etc. Foi bom
ter-me lembrado tudo isso!

Fernando Pinto said...

Gosto de almas como tu: almas que correm, esvoaçam, voam...

Abraço

MrTBear said...

Confesso que me custa ler António Lobo Antunes.
Mesmo as crónicas na revista.
Como dizes, acho muito denso, `s vezes com uma ironia que chega a tocar o cinismo, que não me cativa muito.
Abraço

Will said...

O meu preferido também foi "O Manual dos Inquisidores": é impossível não nos embrenharmos nos cenários invocados e, sobretudo, não sentirmos com as personagens.

Goste-se ou não da escrita de L.A. é impossível ficar-lhe indiferente.

Anonymous said...

O curioso neste seu post é o J. Saramago com o olhar virado para o texto.
Logo o J. Saramago que tem um ódio de estimação ao A. L. Antunes.
- O que acha do A. L. Antunes poder vir a ganhar o Nobel?
- Seria o triunfo do ridículo.
Respondeu J Saramago

gritomudo

Leonor said...

O meu título preferido é o Boa tarde ás coisas aí em baixo...

Gosto bastante do Lobo Antunes, dos livros, das Crónicas e quando li a correspondência para a mulher descobri um outro ainda, pelo de humanidade. hoje não consegui ir, mas, naturalmente, vou comprar e deliciar-me a ler...

boa semana

João Roque said...

Pegando no comentário do "Gritomudo" (fabuloso o promenor do olhar), apetecia-me saber a opinião de Lobo Antunes sobre o Nobel de Saramago...sou suspeito, não gosto de Saramago (podem-me bater à vontade...).

João said...

Peço permissão e avanço: o vosso blog linka-se agora ao meu Novo: http://ophiuchus-threedecades.blogspot.com/ . Apareçam, eu estou por ali.

(as histórias deste homem, ai, ai...) Abraço

isabel mendes ferreira said...

um ser iluminado que tem tanto de doce e carente como de cáustico e volátil...

conversas adentro subimos sempre ao ritmo de um coração mordente.

sou suspeita.

:)


Bom dia....Aqui.

beijo com abraço.

Ka said...

Excelente dica para férias!

E tens razão, há autores que não nos atrevemos sequer a analisar pois seria arrgância da nossa parte. Apenas podemos dizer o que sentimos, que emoções nos despertam, que memórias avivam não é?

Obrigada pela partilha!

carpe diem said...

bom dia...

gostei do espaço... com bom gosto... voltarei...

Carpe Diem...

Anonymous said...

já conhecia ambas as citações, que gostei de reler, o pensamento do lobo antunes está à frente do seu tempo, penso que ele terá mais leitores mais tarde, talvez tantos quantos são os ouvintes de mozart agora. um grande beijinho.

Anonymous said...

Finalmente falas do meu escritor português vivo favorito. :)
Para mim, até um recado à mulher-a-dias escrito por ele era bom - de certeza.
E sim, ele devia já ter ganho o Nobel. Está muito acima de muitos.

Paulo Tomás Neves said...

Continuo apaixonado pelo "Fado Alexandrino", o primeiro que li do ALA, depois foram todos os outros. Se tivesse que ficar com a obra de apenas um escritor seria a deste.
Um abraço, Luís.

Anonymous said...

Bem eu não gosto muito do Lobo Antunes, com com o teu post fiquei a gostar um pouco mais...
bom fim de semana. Ando com pouca vontade de escrever emuitas actividades culturais.
bjs

sofialisboa said...

lidar com a morte quase diariamente mexe profundamente...sofia

Anonymous said...

Não serão provavelmente os livros mais indicados para férias, mas não resisto a deixar como sugestão uma autora cuja técnica narrativa segue o "método" Lobo Antunes, na sua fase menos "densa" - Dulce Maria Cardoso. Apesar de já ter publicado o primeiro livro há meia dúzia de anos, pelo qual recebeu o prémio "Acontece", descobri-a recentemente e li obsessivamente na última semana os seus dois livros "Campo de sangue" e "Os meus sentimentos". São livros muito fortes, principalmente este último, que nos despertam para a realidade da forma mais dolorosa, mas recomendo-te.

Lúcia Laborda said...

Oie lindo! Existem escritores, que fica impraticável interpretar, porque poderemos errar.
A morte é algo que apesar de sabermos, o mais certo da vida, não conseguimos acostumar com ela.
Bom fim de semana! Beijos

BlueVelvet said...

Fiz há tempos um post sobre Lobo Antunes.( 28 de Março 07) Ele pode ser isso tudo que diz, os livros de difícil leitura e pior, nem conseguimos descrevê-los ou descrever bem o que sentimos.
Mas é genial e depois da doença, escreve ainda melhor.
Ou sou eu que o entendo melhor, nem sei.
beijinhos amigo

Paula Crespo said...

Adoro particularmente as suas crónicas. Talvez por o formato ser necessariamente diferente do de um romance, mas nelas Lobo Antunes consegue uma exactidão nas suas "apreciações" muito forte, sem contudo perder a poesia que reveste a sua escrita. Divinas.
Algumas das citações aqui referidas já conhecia, possivelmente por virem noutras entrevistas dele.
Bjs

RC said...

O mestre.

Voltarei aqui.

Xi.