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Friday, December 26, 2008

perdido(s) na noite escura...

(imagem retirada da net)
Chegou no correio um Homem na Escuridão. Um homem que revolve o mundo na sua cabeça enquanto se debate com mais uma insónia, com mais uma noite em branco. A filha e a neta estão a dormir nos seus quartos, sozinhas também elas, Miriam, a sua única filha, que tem quarenta e sete anos e que tem dormido sozinha nos últimos cinco anos, a Katya, filha única de Miriam, que tem vinte e três anos e que costumava dormir com um jovem chamado Titus Small, mas Titus está morto agora, e Katya dorme sozinha com o seu coração desmoronado. Luz radiosa, depois escuridão. O sol que se derrama de todos os cantos do céu, seguido pela escuridão da noite, as estrelas silenciosas, o vento que se agita nos ramos. Tal é a rotina. O homem que chega na escuridão a minha casa vive na mesma casa há mais de um ano, desde que lhe deram alta do hospital. Miriam insistiu com ele para que viesse para ali, e, de início, eram só os dois, para além de uma enfermeira que zelava por ele durante o dia, enquanto Miriam estava a trabalhar. Até que, passados uns meses, o mundo desabou sobre Katya, e ela abandonou a escola de cinema em Nova Iorque e foi viver para a casa da mãe em Vermont. Os pais dele chamaram-lhe Titus porque esse era o nome do filho de Rembrandt, o menino que aparece nos quadros do pintor, a criança de cabelos dourados com um chapéu vermelho, o aluno que sonha acordado enquanto se esforça por estudar as suas lições, o menino que se transformou num adolescente destroçado pela doença e que morreu com vinte e poucos anos, tal e qual como o Titus de Katya. É um nome fatídico, um nome que deveria ser banido da circulação para todo o sempre. Pensa muitas vezes na morte de Titus, na história horrenda dessa morte, nas imagens dessa morte, na sua neta, uma jovem devastada, reduzida a pouco mais que nada, por essa morte, mas, para já, não quer ir por esse caminho, não pode ir por esse caminho, tem de mantê-lo tão longe de si quanto possível.

A noite ainda é uma criança e enquanto para aqui estou deitado na cama perscrutando a noite e a escrita de Paul Auster, descobrindo August Brill, um crítico literário de 72 anos, um homem para quem a escuridão é tão negra que nem consegue ver o tecto, ponho-me a pensar acerca das afinidades da minha vida com as histórias que vou lendo ou inventando. Fantasiar é o que eu faço quando o sono se recusa a vir. Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias. Podem não ser nada de especial, mas, enquanto estou dentro delas, comporto-me como o homem que chegou a minha casa envolto em sombras e assim tal como ele consigo impedir que o pensamento navegue por assuntos que prefiro esquecer…

Sunday, October 12, 2008

entre a besta e o homem...


(MAILER, Norman. The Naked and the Dead. New York: Rinehart & Company, 1948. Original black cloth, original dust jacket.)

Os livros são a minha riqueza e a minha ruína, o meu vício, o meu património. Os livros interrompem, importunam, reivindicam, ainda que estejam escondidos nas trevas da estante. E eu pago e venero-os, tenho receio que lhes aconteça alguma coisa. Tenho um seguro sobre o recheio da casa por causa dos livros. Como se alguém estivesse interessado em roubá-los. O receio que um cataclismo danifique pérolas singulares de Tolstoy, Camus, Proust, Montaigne, Stendhal, Joyce, Henry James, T. S. Eliot, Virgínia Woolf, Duras, Yourcenar, Fernanda Botelho, Fiama Hasse Pais Brandão, Miguel Torga ou Lobo Antunes ou mesmo os grandes senhores da dramaturgia, da poesia, da short story, paperbacks e hardcovers avulsos, os clássicos do costume, a reflexão inteligente, livros a que volto, provoca-me uma sensação angustiante. Há livros a rebentar de ternura que se lêem num ápice e são interessantes nessa medida: o diálogo silencioso com o texto a que nos obriga é compulsivo. Depois há obras que solicitam tempo e podem ser superiores precisamente por causa dessa medida: pelo quanto de energia nos exigem, e por tudo o que nela se adquire e se conquista. Tudo isto para dizer que Os Nus e os Mortos (The Naked and the Dead), de Norman Mailer, é agora o meu livro de cabeceira, uma obra que exige tempo. Já o sabia, mesmo antes de me oferecerem. Sabia também que o tempo que este livro requer a um leitor inquieto não se mede em horas de leitura – mede-se em espírito crítico. Escreveu José Cardoso Pires acerca deste livro que “ [estamos perante um fresco de violência, é certo, um fresco da carne violentada, mas onde domina sobretudo o tormento da alma, a razão da consciência]”. Baseado na própria experiência de serviço militar do autor, nas Filipinas, durante a Segunda Guerra Mundial, Os Nus e os Mortos é um retrato perturbador da situação do homem comum quando em combate. Publicado num período em que os Estados Unidos ainda se ensopavam na glória da vitória aliada, alterou em muito a percepção popular da guerra. Dizem alguns especialistas insuspeitos que talvez seja este o melhor romance de guerra alguma vez publicado. Digo eu e ainda não o terminei que é um livro com o qual tenho conversado e que não se confunde com um documentário, uma reportagem, um ensaio sobre guerra. É, sim, com rigor literário, “um conflito entre a besta e o homem que interroga o futuro”. E daqui ergo a taça à boa literatura…

Friday, September 26, 2008

a apoplexia da bandida...

Hoje a propósito do lançamento do livro da Maria Quintans e do João Concha tive a oportunidade de dizer as seguintes palavras que aqui reproduzo:

Eu sou tão só um viciado das palavras escritas e embrulhadas da Maria Quintans. Eu sei que canta bem, porque já a ouvi. O que eu desconhecia é que escrevia desta maneira.

A internet tem destas coisas e a blogosfera também nos surpreende pela positiva. Foi no seu blogue que li uma escrita intimista que não cabe na limitação de amarras formais. Não vou falar sobre os seus textos e a sua tertúlia poética, porque pessoas credenciadas já o fizeram, apenas ressaltar a recorrência de temas do amor carnal, do desejo e do silêncio – usuais representativos do sincretismo entre o físico e o transcendente, como ainda sublinhar a importância do corpo que em Quintans não é um amontoado de impulsos nervosos, e sim a porta por onde é externada a inspiração. Uma linguagem caracterizada por um sensualismo muitas vezes erótico e palavras honestas sem pudor.

São assim os pontos de vista de Maria Quintans: incomuns e fortes, como assim parece ser também a sua personalidade. Na escritora e na mulher o que se sobressai é um sentimento de intensa liberdade, que alça a sua condição criativa acima de tudo e de todos.

O Bandida é um dos melhores blogues de cariz literário, uma espécie de cabaret da palavra (com a boémia de braço dado e um cigarro nos lábios ao canto do sorriso e servido de whisky sem gelo, música, fumo, noites perdidas, amantes, amores interditos, aqui ou ali uma lágrima, ternura, tristeza, cansaços e fracassos, excessos e poetas, e Léo Ferré como mestre-de-cerimónias).

Uma menção também para as ilustrações do João Concha, que são belíssimas e que confortam na exacta medida as palavras complexas e estonteantes da loba escritora que diz usar um turbante de mágoa.

É ela que refere que as palavras são fêmeas
É ela que desabafa a necessidade de alugar um sonho
Foi ela que escreveu num post
“um dia hei-de miar à lua. ou então não digo nada.”

Bonito o que escreve….perturbador o que se sente.

Obrigado, Maria
Bem-haja João Concha.

Sunday, September 07, 2008

a perda da inocência...

The Line of Beauty. Vi a mini-série da BBC quando estreou em Portugal. Li o livro de Alan Hollinghurst quando chegou às nossas livrarias. Revi hoje a série em DVD. Impossível não recordar Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. Uma surpreendente viagem ao interior do sofisticado mundo da elite inglesa que agrega emoção, drama e crítica. Trabalho extraordinariamente adaptado do romance que ganhou o Booker Prize em 2004, o mais valorizado prémio literário na Grã-Bretanha. Uma história passada nos hedonistas anos 80 e que atinge um conjunto de indivíduos bem estabelecidos na vida. A Linha de Beleza decorre entre duas eleições de Thatcher, época de conflito e mudança, num mundo voraz que é o dos yuppies dos anos 80. Vivem-se impetuosos tempos onde a ganância é canonizada. A vida de um jovem que se altera quando aceita passar uma temporada em casa de um seu colega, objecto da sua paixão, pertencente a uma família politicamente poderosa em Kensington Gardens. Nick Guest, esteta genuíno, é movido por algo bem diferente mas perfilha e é perfilhado pela excêntrica casta de Toby, com quem embarca nos vícios da década: poder, sexo e cocaína; e a sua estadia na casa de Notting Hill parece prolongar-se indefinidamente. São tempos inebriantes ajustados ao ritmo vertiginoso das festas e das viagens e à amoral sensação de nada ser vedado. Tudo parece possível; a decadência nunca fora tão excitante. Mas esta interminável busca da auto-satisfação tem um custo elevado, e Nick apercebe-se tardiamente desse facto.

Emocionalmente denso, desarmantemente burlesco. O mote é reiterado nas letras britânicas, a ilusão da ascensão social e a perda da inocência. Abordado em estilo complexo, com profusão de pormenores e diálogos bem arquitectados, o livro/a série remetem para uma tradição literária rica, para nomes como E. M. Forster, Somerset Maugham ou o muito citado Henry James, autor que é manifestamente uma paixão da personagem principal. O livro não fica aquém do que compuseram estes soberanos da literatura, está apinhado de sátira e de vida, de desassossego e de charme, também de uma violenta franqueza. O objecto da avidez social é entrelaçado com temas, como a arte, a arrogância, a escala de valores, a morte, o ideal da beleza.

A Linha da Beleza exibe a impiedade do amor. Apontamentos de promiscuidade a par dos passeios pelos solares requintados, onde as suas personagens divagam sobre literatura, música, pintura ou teatro. O que se dissimula é desvendado em todo o seu horror. A história converge numa catástrofe, que pressentimos desde o início. O destino é inevitável e o amor, bem como e o sucesso, não passa de fantasia. Um testemunho forte, consistente e polémico. Um livro, uma série, um depoimento que ficam na (minha) memória…

Tuesday, July 29, 2008

o livro como uma viagem…


But I who have criss-crossed the globe
being, as it were, doubly cognizant,
remain at heart a deluded peasant
whom my sufferings have not ennobled.

—From “Julga-me a gente toda por perdido”

“Collected Lyric Poems of Luís de Camões” acaba de ser publicada nos Estados Unidos, numa tradução do académico Landeg White. A obra tem carimbo da reconhecida Princeton University Press, que assinalou tratar-se da primeira colectânea em inglês da poesia lírica desta figura cimeira da língua e da literatura portuguesas. Para a editora, a lírica de Camões é bastante para o poeta ser colocado entre os grandes, mesmo se nunca tivesse escrito “Os Lusíadas”: “Luís de Camões é célebre em todo o mundo como o autor da grande épica do Renascimento, 'Os Lusíadas', mas a sua enorme e igualmente grande obra de poesia lírica é praticamente ignorada fora do seu país”; "Camões foi o primeiro grande artista europeu a atravessar o hemisfério sul e a sua poesia é marcada por quase duas décadas passadas no norte e leste de África, Golfo Pérsico, Índia e Macau. Desde uma elegia em Marrocos a um hino escrito no Cabo Guardafui na ponta norte da Somália, até aos primeiros poemas modernos de amor a uma mulher não europeia, essa lírica reflecte os encontros de Camões com lugares e povos radicalmente desconhecidos", lê-se ainda. A antologia está organizada de acordo com as viagens do poeta renascentista, “o que permite a leitura do livro como uma viagem”. A nota refere Richard Howard, editor da série Lockert Library of Poetry in Translation, como tendo afirmado que a antologia agora publicada é "a treasure! This book makes available for the first time in English a unique body of Renaissance poetry and a great classic of Western literature”.

Li a brilhante introdução de Landeg White aqui. E só posso acrescentar que venero a pena do Príncipe dos Poetas e o que escreve e sofre. Em Camões arrebata-me a ideia que passa de que o amor só vale a pena quando é complexo, e contraditório…

Wednesday, July 02, 2008

confissões do trapeiro...

“Vou contar-te uma coisa: quando tinha 23 anos tinha terminado a universidade, estudei medicina, e puseram-me numa unidade de pediatria de crianças que estavam a morrer, de doenças terminais. Enamorei-me de um menino de quatro anos doente de cancro que se chamava José Francisco, que era muito bonito, tinha uma alegria de viver incrível mas morreu. Quando num hospital morre um adulto, vêm dois homens com uma maca e levam-no para a morgue coberto com um lençol. Mas este menino era apenas uma criança, veio um homem com um lençol e carregou-o debaixo do braço. Eu estava na porta da enfermaria num corredor grande e vi o homem a levar o menino, e um dos seus pés saiu do lençol e ia balançando. Pensei: "escrevo para este pé". Ainda hoje penso que escrevo para aquele pé” *

Lá fui eu a correr até ao Atrium Saldanha, palco para a apresentação da obra Entrevistas com António Lobo Antunes - 1979-2007 - confissões do trapeiro. Até pode acontecer que este psiquiatra que não queria ser médico seja um homem complicado, irascível, vaidoso, blasé, enfant-terrible, pouco dado à confidência, obsessivo, ter uma escrita densa, exigir esforço de leitura (na esteira de James Joyce ou de Faulkner), mas não consigo ficar indiferente à diversidade linguística do autor de Tratado das Paixões da Alma, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde, Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo, Eu Hei-de Amar uma Pedra, Ontem Não te Vi em Babilónia, O Meu Nome É Legião (adopta sempre títulos belíssimos). Mas o livro que mais me sensibilizou foi O Manual dos Inquisidores. Li-o enroscado num sofá e sofri com tudo aquilo. Não me peçam para explicar os seus livros, porque é algo que não consigo, seria insolência da minha parte, até porque nem sei mesmo se os alcanço no seu todo. Só sei que estou atento a tudo o que lhe sai da pena e a outras escritas que se debruçam acerca deste escritor incontornável do romance contemporâneo. Logo, esta colecção de “conversas” (53)**, editada pela Almedina, não podia deixar-me apático. Através das entrevistas compiladas por uma professora de Literatura Portuguesa encontra-se a evolução do romancista no seu posicionamento em relação à vida, à religião, à literatura, à critica... Na introdução que escreveu, "Dos trapos e do trapeiro" - sendo os trapos o romance e o trapeiro o romancista -, a docente da Universidade de Coimbra acentua que "de um modo ou de outro, os textos apresentados se traduzem em lugar privilegiado de onde se pode observar e conhecer o outro lado da imagem do escritor". Ao ouvir falar do romancista (pelas bocas de Carlos Reis, autor do prefácio, e de Ana Paula Arnaut, autora da compilação) fico com a sensação de que estaria ali noite fora…

“Fazem-me falta uns 200 anos, porque sentes que tens dentro de ti muitos livros e não vais ter tempo de fazê-los. Isso faz-me sentir indignação, por exemplo, provoca-me indignação que Schubert tivesse morrido com 29 anos, ou que Mozart aos 36. Nunca sabes quando será o dia, se será muito tarde, ou mais cedo. Tudo é tão rápido, tudo se passa com tanta rapidez. A gente diz que depois dos trinta o tempo passa muito rápido, mas isso é porque os adultos têm sempre a mesma vida, saem de casa e todos os dias é o mesmo, por isso a impressão de que tudo passa com mais rapidez”*

*citações da edição on-line de La Jornada/Ericka Montaño Garfias [não contempladas na presente obra] 26 Novembro 2006 [traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

**Rodrigues da Silva, José Jorge Letria, Clara Ferreira Alves, Baptista-Bastos, Inês Pedrosa, Miguel Sousa Tavares, Francisco José Viegas, Alexandra Lucas Coelho e Adelino Gomes são alguns dos entrevistadores de António Lobo Antunes entre 1979 e 2007.

Thursday, June 26, 2008

Pessoa com queda de mulher por dentro…

(imagem retirada da net)

Pessoa é o poeta que se desmultiplica na figura de prodigiosos heterónimos e semi-heterónimos, dando feição a uma complexidade de pensamentos, saberes e apreensões. Nunca será demais recordar que a palavra pessoa contém em si o simbolismo do desdobramento imaginário e que é das máscaras de teatro dos actores clássicos que nasce a palavra persona, origem etimológica de pessoa. A questão humana dos heterónimos, tanto ou mais que a questão estritamente literária, tem empolgado as atenções. Mas o que de certo sabemos é que a genialidade de Fernando Pessoa é desproporcionadamente grande para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterónimo mais atormentado, Álvaro de Campos: "Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora." O escritor passou a sua vida a experimentar máscaras, a disfarçar-se com a pele dos que observava e a ocultar-se assim aos olhos de todos (ver, entre muitos e muitos outros, o texto A heteronímia, incluído no site da Casa Fernando Pessoa). De tantas peles que vestiu, usou por uma vez a de uma rapariga, Maria José: uma deficiente de 19 anos agrilhoada no seu corpo e inibida de atrair o amor; uma mulher que ao ver passar o mundo da sua janela também ela sonha ser outra, ser como os demais, como ela imagina que são os outros. Em seu nome Pessoa escreveu uma carta:

Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou toda a chorar.

("Carta da Corcunda para o Serralheiro", Revista Egoísta, Junho 2008)

Na semana que Lisboa debate o feminismo e a sua história, não deixa de ser oportuno comemorar uma mulher que viveu dentro do poeta Pessoa…

Wednesday, June 18, 2008

livros, disse ela…

(imagem retirada da net)

Foi um mágico final de tarde passado no número 16 da Rua Coelho da Rocha. Persuadido por aquela voz inconfundível da rádio e do pequeno ecrã, acostumei-me a aceder à intimidade do seu universo e dos seus entrevistados. Mas desta vez foi a própria, regressada da bela Sicília, a contar aquilo que vem promovendo o seu eterno namoro com a leitura, os livros que foram e continuam a ser preciosos para a sua existência, as obras que a marcaram e que ainda a fazem estremecer. Maria Joao Seixas (MJS), mulher que integra a Ordem daqueles que habitam as palavras, foi a desafiada de Os Livros que não Esqueci (2.ª edição a que assisto), na Casa Fernando Pessoa. Quando escuto alguém que estimo falar dos livros que marcaram a sua vida sinto-me convidado a entrar inesperadamente na sua torre de marfim e aí encontrar preciosidades que também me pertencem. Algumas das obras que foram aludidas por esta descendente de Sherazade são peças belíssimas: As Mil e Uma Noites (cereja em cima bolo); Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Odisseia, de Homero; Antígona, de Sófocles; A Apologia de Sócrates, de Platão; Os Cadernos de Malte Laurids Bridge, de Rilke; A Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar; As Palmeiras Bravas, de W. Faulkner; O Poema Contínuo, de Herberto Hélder; Genji Monogatari, de 紫 式部. Quase noite e ainda viajava na lírica de Camões, na poesia do gaúcho Mário Quintana, nas comarcas literárias de Clarice Lispector e Yourcenar e já na última estação o bilhete é validado pelo Isto de Pessoa…

Nesta rota de livros e afectos, Maria João disse ainda com enorme sensibilidade Carlos Drummond de Andrade:

Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro

Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro

O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto

Ela me beijava o membro

Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte

Morte e primavera em rama
disputavam-se na água clara
água que dobrava a sede

Ela me beijava o membro

Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido

Somente a rosda crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama

Ela a me beijar o membro

Dos beijos era o mais casto


Interessante seria que a MJS, ela própria, se aventurasse pelos territórios da ficção.


Bem sei que o tempo não é elástico e que a pilha de romances e afins que chegam às minhas livrarias preferidas (incluindo as virtuais) já me olha de soslaio. Destaco algumas das obras inscritas na minha lista de espera: Pais e Filhos, do russo Turgueniev [já na mesinha de cabeceira], Praça de Londres, de Lídia Jorge, Venenos de Deus, Remédios do Diabo, de Mia Couto, Night Train to Lisbon, de Pascal Mercier ou tão diferentes como a biografia da Hillary Clinton, a A Patagónia, do viajante Bruce Chatwin, a escrita pungente de Etty Hillesum - letters from Westerbork, a prosa do poeta Alexandre O’ Neill, em Já Cá Não Está Quem Falou ou mesmo icons of Jazz, de Dave Gelly. Mas não perdem por esperar. E, que venham mais e mais para me inquietar o espírito…).

Tuesday, June 10, 2008

tão só um dia...

Um filme.
Un homme perdu. "O filme encontra a sua origem na minha relação particular com o meu país, o Líbano. Eu vivo em França e depois de uns anos e com o tempo, tive a impressão de perder a visão do país de onde eu venho, como um barco que desaparece no horizonte. Como se a minha vida não fosse nem aqui, nem lá. É esta a razão pela qual eu quero contar a história de dois homens e não de um só. (...) Acabam por ser a frente e o verso de um só. Um árabe e um ocidental que se perdem, desaparecem, reaparecem... e que finalmente se esquecem de onde vêm" (Danielle Arbid.). Um fotógrafo francês palmilha a terra em busca de experiências extremas. Na Jordânia, o seu caminho cruza-se com o de um homem misterioso, em fuga há anos, não se sabe do quê. O fotógrafo vai tentar desenterrar a sua história e persiste em viajar com ele, num périplo pelo Oriente que atravessa a Síria, a Jordânia e o Líbano, um universo recheado de riscos e interdições. Em Un Homme Perdu a realizadora dá robustez ao anseio de fuga, usando-se para esse efeito do retrato dos dois viajantes. Rejeitando o facilitismo do bilhete-postal turístico, esta longa-metragem oferece a oportunidade de mergulhar na atmosfera estranha de uma cidade desconhecida, cheia de fronteiras suspeitas, armadilhas e de bizarros refúgios. É explorado esse desejo de liberdade e a violência que lhe está subjacente. Crónica de duas personagens – uma amizade particular de dois esfolados vivos que se alimentam um do outro, como os vampiros – que procuram um lugar no mundo, mas que guardam dentro de si uma revolta brutal, não negociável…

Um livro.
Miguel Esteves Cardoso (MEC) numa crónica em que disserta sobre o primeiro amor parece suspirar ao escrever que “(…) o primeiro amor fica com a metade mais selvagem e inocente de nós”. Já Padre António Vieira sustentava “Questão curiosa nesta Filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo? Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogénito do coração, o morgado dos afectos, a flor do desejo, e as primícias da vontade. Contudo, eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor. É verdade que o primeiro amor é o primogénito do coração; porém a vontade sempre livre não tem os seus bens vinculados. Seja o primeiro, mas não por isso o maior” (ver Padre António Vieira, in "Sermões”). A última edição da Time Out/Lisboa questionava se existem assuntos intemporais? O amor é um desses temas e, felizmente, há quem saiba compor sobre ele de forma singular. Alguns artesãos da escrita dão cartas nessa empreitada. Essa é a virtude da obra de um dos mais perspicazes autores russos. Refiro-me a Ivan Turguénev, escritor de primeira água, e àquele que foi um dos últimos livros que escreveu: O Primeiro Amor. Turguénev viveu um dos mais afamados casos de amor da época com a cantora de ópera de nacionalidade espanhola Pauline Garcia Viardot. O relacionamento entre ambos prolongou-se até à velhice, com o consentimento e a cumplicidade do marido da solista. Turguénev descreve em O Primeiro Amor, a descoberta afectiva de um mancebo de 16 anos. Novela com pouco mais de cem páginas, contada na primeira pessoa, dá a dimensão tão trágica quanto feliz de uma iniciação. “Foi no Verão de 1833, tinha eu dezasseis anos”, começa a contar Vladímir Petróvitch naquele que é uma exposição dirigida a um grupo de amigos. O autor, neste belo livro, vem comprovar que não há cânones no que ao (primeiro) amor diz respeito. Se fosse possível ser gerido, ser pressentido, ser agendado, ser reflectido, não seria primeiro. A única fórmula é: não pensar, não resistir, não desconfiar. Voltando a MEC também comungo da opinião que o primeiro amor não se esquece. Parece impossível porque foi. Não deu nada do que se quis. Não levou a parte nenhuma. O primeiro amor deveria ser o primeiro e esquecer-se, mas toda a gente sabe, durante o primeiro amor ou depois, que é sempre o último…

Um dia
Um único dia abre-me as portas para outros mundos, permite-me transitar por atalhos diversos, perder-me no labiríntico de um enredo formado por palavras e imagens. Quando termino o livro ou saio da sala de cinema fico diferente. Quando leio a última página ou quando as luzes da sala se acendem sinto que me apetece andarilhar novamente pelas páginas e revisitar as imagens para descobrir novos caminhos, diferentes sentidos, outras experiências ou repetir toda aquela agitação de sentimentos e lutas interiores entre o lógico e o ilógico e tudo o que circula pelo meio. Através da leitura, das imagens e dos sons descubro que existe um mundo que se cria e recria. Este é o poder da arte, o poder de falar da natureza humana, de forma exemplar e inextinguível. Mergulhar nas artes é como o círculo de Ana Hatherly, muito oportunamente citado por Ana Catarina M. Ferreira (in Ulisses, o texto magnificamente infinito: A odisseia de editar um texto proteico):

“(...)

Nele se inclui todo o mistério

E toda a sapiência é o que está feito,

Perfeito e determinado,

É o que principia

No que está acabado.”

É verdade que alguns dos meus dias me transportam para Ulisses, obra-prima da literatura. Catalogações desta natureza são feitas acerca de várias obras, mas a realidade é que o livro de Joyce marcou de forma indelével o mundo das letras, tornando-se numa das “catedrais da arte literária moderna e influenciando a produção escrita de muitos escritores desde então” (Ana Catarina M. Ferreira). Num desses dias abalroei na sala 2 do King onde consenti que Danielle Arbid me contasse a história de um homem perdido; li aos bochechos o livro do russo Turguénev (enquanto esperava que a sessão começasse; no carro, enquanto L. conduzia e em casa ao som de Katia Kabanova de Léos Janacek, pela London Philharmonic Orchestra). No átrio do cinema cruzo-me com V. (com quem não falava, seguramente, há mais de oito anos), agora recuperada de queda quase fatal relata-me o dia que apressada para um lançamento de Lobo Antunes no S. Luiz se estraçalhou toda, tombando de umas escadas, numa cena digna de um filme de Wes Craven. Venceu, felizmente, embora com a consciência que as bibliotecárias também se abatem. Mas esse dia apinhado de neologismos, palavras-valises, doutas citações, ironias e trocadilhos ainda me levou ao hospital (autentico teatro operático, onde não faltam tenores, contratenores, sopranos, misérias e lágrimas; onde nem sequer escasseiam Toscas cantando angustiadas a sua “Vissi d’arte”, ou Otellos nos seus “Niun mi tema”, vendo as suas Desdemona mortas......por suas mãos!) para visitar R., mãe de uma amiga íntima; acenar à pressa a farmacêutica RM. que de tanto ansiar um filho, aguarda agora hospitalizada a vinda de dois; cortar o cabelo no TM Coiffure (com o Agnaldo [?] a relatar-me a sua vida, quase, intima); ir ao Arranjos Express buscar o fato do J. para o seu baile de finalistas, sim, a despedida do 9 ano; telefonar à mãe para fazer a diagnose diária das indiscrições do círculo familiar; receber telefonemas e msns. Marcar coisas para dia seguinte; pensar no CV da LC., para que possa ser avaliada de acordo com as suas capacidades e não conforme jogos de bastidores, indecentes e cruéis, que alastram na coisa pública. Um dia, um livro, um filme e não sou eu o ser humano defeituoso e idiossincrático Mr. Bloom. Mas é por isso que eu aprecio James Joyce, por que qualquer simples mortal se torna um herói homérico, não em luta contra monstros, deuses e sereias hipnóticas, mas na eterna luta pela vida, na trivialidade do dia-a-dia. Que pode ser resumido nos oitenta mundos percorridos em um único dia, como Mr. Bloom, descrito magistralmente pelo escritor irlandês, que tanto aprecio…

Tuesday, May 06, 2008

Index librorum prohibitorum...

Uma jovem numerária, nua na penumbra do seu quarto, chicoteia-se repetidamente com violência e, no mesmo momento, um grupo de banqueiros, nos seus elegantes fatos escuros às riscas, reúne-se à volta de um túmulo, numa cripta subterrânea, para soldar com a oração o seu pacto indissolúvel. Noutra parte do mundo, um rapaz que fez a mesma opção de vida aperta em torno da sua coxa um cilício de metal cujas pontas lhe furam a carne e, no mesmo instante, numa cerimónia com chefes de Estado e de governo, ministros e intelectuais, industriais e financeiros entre os presentes, um polémico sacerdote espanhol, de nome Josemaría Escrivá de Balaguer, é feito santo.
Trinta minutos antes de entrar na sala de cinema dou com um livro - numa das estantes da Livraria Assírio & Alvim II, localizada na cave do edifício do King - que parece acrescentar algo mais ao que penso saber sobre uma das mais poderosas e controversas organizações da Igreja de hoje. O livro, Opus Dei Secreta (Campo das Letras), o autor, Ferruccio Pinotti. Folheio atentamente o documento de pendor jornalístico que relata as histórias dos numerários e das numerárias (os aristocratas da inteligência), membros da Obra, que abandonaram a Organização. O recrutamento, a coacção psicológica – particularmente em relação aos jovens e às mulheres –, o uso do cilício e do látego, o entusiasmo pelas práticas de flagelação e de mortificação da carne, o corte com a família, a sexofobia, a gestão do dinheiro e as fontes financeiras. Viagem de Itália a Espanha, da Inglaterra à Alemanha, dos Estados Unidos à América do Sul. Pena que a investigação não tenha velejado por terras lusas. O autor revela como se vive dentro da Obra de Deus, a organização cujo objectivo capital é a santificação do trabalho, manter o mundo santo e levar a ética cristã, valores cristãos e a paixão cristã para esse trabalho. Ainda que com todo este enquadramento sociológico resisti e não o comprei. O sábado exigia-me outras escolhas. Acabou, dois dias mais tarde, por me vir parar às mãos. O Amor faz destas coisas. Li-o de uma assentada, embora com saltos em alguns capítulos a que voltarei oportunamente. Apetece-me, desde já, convocar as últimas páginas em que o autor divulga a lista dos livros cuja leitura está interdita aos numerários da Obra.

Embora o Vaticano tenha abolido o Index corria o ano de 1966, por vontade de Paulo VI, o monsenhor Escrivã de Balaguer não levou o acontecimento a sério mantendo a censura no seu grande condomínio. Deixo aqui uma relação minúscula a partir da que foi publicada, onde curiosamente também comparece o nosso Nobel:
MÁRIO VARGAS LlLOSA – Os Cadernos de Dom Gioberto; STENDHAL – O Vermelho e o Negro e a Cartuxa de Parma; MARCEL PROUST – Em Busca do Tempo Perdido; PABLO NERUDA – Cem Sonetos de Amor; ORIANA FALACCI – Carta a Uma Criança Que Nunca Nasceu; ALBERT CAMUS – O Mito de Sísifo; CARLES BAUDELAIRE – As Flores do Mal; HONORÉ DE BALSAC – O Lírio no Vale; ANTONIN ARTAUD – O Teatro e o seu Duplo; PEDRO ALMODÔVAR - Patty Diphusa e Outros Textos; WOODY ALLEN - Sem Penas; ISABEL ALLENDE - A Casa dos Espíritos; JORGE AMADO - Capitães da Areia e Tieta do Agreste; SIMONE DE BEAUVOIR – A Força da Idade e o Segundo Sexo; BERTOLT BRECHT - Mãe Coragem e os Seus Filhos e A Alma Boa de Sezuan; ALBERT CAMUS - O Homem Revoltado; UMBERTO ECO - O Pêndulo de Foucault e o Nome da Rosa; GABRIEL GARCIA MARQUEZ – O Outono do Patriarca; MILAN KUNDERA – A Insustentável Leveza do Ser; PHILIP ROTH – A Orgia de Praga; JOSÉ SARAMAGO - Manual de Pintura e Caligrafia e O Evangelho Segundo Jesus Cristo; JEAN-PAUL SARTRE - A Náusea; FERNANDO SAVATER - Ética para um Filho; MIGUEL DE UNAMUNO - Do Sentimento Trágico da Vida; MARIO VARGAS LLOSA - A Orgia Perpétua; MAX WEBER – Ensaios Sobre a Sociologia da Religião; MARGUERITE YOURCENAR – Aléxis; EMILE ZOLA - A Besta Humana; HENRY MILLER – Trópicos…
Quem, como eu, já leu sofregamente estes escritores, consumindo avidamente página atrás de página de escritas brilhantes, que se acautele: o juízo final há-de chegar e sem contemplações!

Tuesday, February 05, 2008

a filosofia segundo Woody Allen...

a AF que me brindou com este livro…

Se Deus existe, espero que Ele tenha uma boa desculpa.

Já tinha desfolhado O Que Sócrates Diria a Woody Allen, que decompõe as conexões entre as questões universais da filosofia com o cinema - partindo justamente da obra do cineasta. Agora – em vésperas de período carnavalesco - foi-me oferecido A Filosofia Segundo Woody Allen. Ensaístas e filósofos profissionais grudaram-se na filmografia do realizador e extraíram-lhe os ensinamentos para uma contextualização filosófica. Desde o início da sua carreira que o cineasta revela um peculiar interesse em examinar os grandes enigmas da vida sob o ponto de vista filosófico (amor, incomunicabilidade, morte, religião, sexo, vida). A sua veia filosófica é a de um existencialista descrente, anatematizado pelas obsessões terrenas, interrogações e receios, empregando o humor como instrumento cirúrgico para expurgar o seu espírito martirizado e repleto de neuroses comportamentais. Nos seus filmes perpassa sempre uma busca incessante pelo sentido da vida num mundo que é defectivo e carrasco. O derrotismo é propagandista e irreversível, como o de um Schopenhauer, mas no seu espírito pessimista aloja muita da sua robustez criativa. O optimismo nos filmes de Woody Allen é momentâneo, fugaz como um punhado de areia. Lembro Hannah And Her Sisters em que a personagem interpretada por Woddy a dada altura obcecada pela ideia de ter uma doença maligna recorre ao clínico que lhe afiança de que de nada padece. Sai do consultório animado porque afinal até é saudável. De repente pára e o seu entusiasmo esvaece e regressa ao estado de espírito depressivo. Aflito discorre: "mas porque raio estou tranquilo? vou morrer na mesma!". Os seus filmes para além de conterem uma dose considerável de hipocondria, de uma crença de que padece de uma doença grave, dos medos irracionais da morte, às obsessões com sintomas ou defeitos físicos irrelevantes, preocupação e auto-observação constante do corpo, o assunto mais comentado é o sentido da vida onde habitam abundantes citações filosóficas, carradas de alusões a escritores, filósofos, pensadores, poetas. Outros realizadores filósofos existem mas este cineasta, escritor e actor desenvolveu uma identidade singular, uma sensibilidade que diz tanto às mentes experimentadas como ao cidadão comum. É esta característica - para além da sua linguagem trágico-cómica e do seu talento - que faz de Woody Allen um dos génios do nosso tempo. E dessa forma instiga o espectador a uma auto-reflexão. Porque os problemas existenciais de Allen são, quer queira quer não, os mesmos que os meus, vulgar terráqueo que um dia vou expirar sem ter entendido porque razão passei por este planeta.

Woody Allen e as quinze grandes mentes que se reuniram para ensinar lições filosóficas vitais sugeridas pela obra cinematográfica do génio acompanharam-me, aos bochechos, neste fim-de-semana alargado, por terras de Zambujeira do Mar. Dias de Sol de Inverno. Uma praia deserta. Um mar transparente e revolto. Boa(s) companhia(s) …

Thursday, January 24, 2008

as benovolentes...

En fait, j'aurais tout aussi bien pu ne pas écrire. Après tout, ce n'est pas une obligation. Depuis la guerre, je suis resté un homme discret ; grâce à Dieu, je n'ai jamais eu besoin, comme certains de mes anciens collègues, d'écrire mes Mémoires à fin de justification, car je n'ai rien à justifier, ni dans un but lucratif, car je gagne assez bien ma vie comme ça. Je ne regrette rien : j'ai fait mon travail, voilà tout ; quant à mes histoires de famille, que je raconterai peut-être aussi, elles ne concernent que moi ; et pour le reste, vers la fin, j'ai sans doute forcé la limite, mais là je n'étais plus tout à fait moi-même, je vacillais, le monde entier basculait, je ne fus pas le seul à perdre la tête, reconnaissez-le. Malgré mes travers, et ils ont été nombreux, je suis resté de ceux qui pensent que les seules choses indispensables à la vie humaine sont l'air, le manger, le boire et l'excrétion, et la recherche de la vérité. Le reste est facultatif.
Excerto

As Benevolentes, andança de um ser arrastado pelo seu trajecto e pela História. Memórias de um ex-oficial nazi, alemão de origens francesas que participa em momentos nauseabundos da história mundial: a execução dos judeus, as contendas na frente de Estalinegrado, a organização dos campos de concentração, até ao desmoronamento da Alemanha. Uma confissão sem remorso das crueldades praticadas provoca uma reflexão acerca dos motivos que levam o homem a causar desgraça. Este romance vai pedir emprestado o título à mitologia grega – as Erínias, deusas perseguidoras, vingadoras e secretas, igualmente conhecidas por Eumênides ou Benevolentes. Temos como “paciente” o antigo oficial das SS, agora reformado da indústria têxtil, e deparamos com o seu périplo pelos cenários onde decorreu o mais sangrento conflito da História, a Segunda Guerra Mundial, e o Holocausto em particular. A minúcia de detalhes - desde os nomes de acidentes geográficos às patentes da hierarquia nazi -, e as passagens de contextualização denunciam a profundidade da investigação empreendida por Jonathan Littell. De ascendência polaca e judaica, natural de Nova Iorque mas com cidadania francesa e residência em Barcelona dedicou anos à investigação e meses à redacção desta obra que gerou um dos mais insignes personagens literários dos últimos tempos, Maximilien Aue.

Foi prenda de Natal. O caso literário do final do ano passado e inicio deste. E é simples perceber porquê. São as considerações de natureza subjectiva em tudo quanto tenha que ver com o modo como o oficial observa os contemporâneos e reflecte a Solução Final. A questão do grau de culpa do povo alemão tem contributos decisivos. Um entretenimento dos soldados era fotografar as execuções e mandar essas imagens à família. Não há um único personagem, das dezenas que povoam as páginas (pelo menos nas 400 e tal que já li) que não seja absolutamente abjecto e moralmente hediondo. Aue troca impressões com todos, do mais desapiedado ao mais requintado nazi, em conversas inteligentíssimas. As pausas metafísicas do oficial contrapõem as cenas potentíssimas, expressionistas na sua habilidade de avocação do pavor, da barbárie em que ele se associa e lhe provocam vómitos. Não por arrependimento, mas por escalavrarem a sua sensibilidade estética. Aue reclama que a crueldade intrínseca ao Homem não pode ser extirpada pela Cultura. E esta será a moral deste romance impressionante. Vou a meio das 900 páginas de mancha tipográfica compacta, praticamente sem parágrafos, quase sem respiração. Leio-o como um pesadelo. Infelizmente é um livro extraordinário pelo que vive nele de real. Mas respirar é urgente…

Wednesday, January 09, 2008

quem és tu, Simone?

É sempre agradável celebrar os aniversários das pessoas que nos ajudaram a viver…
Kristeva

Cem anos após o nascimento de Simone de Beauvoir - autoridade do feminismo, da literatura e do pensamento -, alude-se mais acerca da companheira de Sartre e da peculiar ligação deste par do que da filósofa. Tendo atravessado a história do século passado, Simone de Beauvoir pretendia ser o Castor de guerre, segundo a expressão de Danièle Sallenave, e elegeu um propósito, impulsionada pela urgência de fazer prevalecer a liberdade. Nunca teve, porém, lê-se em La Force des Choses a aspiração de transformar a condição feminina - o que, em parte, conseguiu -, porque considerava que esta derivava do "futuro do trabalho no mundo". Fez parte de um grupo de filósofos-escritores associados ao existencialismo, um movimento que teria uma enorme influência na cultura europeia do século XX. Se foi existencialista, foi-o ao seu modo: "Não foi porque ela escolheu Sartre que ela se tornou Simone de Beauvoir, foi por se ter tornado Simone de Beauvoir que ela escolheu Sartre", frisa Sylvie le Bon de Beauvoir.

Beauvoir comentava que "as mulheres, mais do que os homens, têm necessidade de ter um céu sobre as suas cabeças”. O Segundo Sexo, escrito na óptica da moral existencialista, causou-lhe, contudo, a reprovação da maior parte dos intelectuais conservadores, homens e mulheres - católicos, protestantes, comunistas. Ingrid Galster rememora-o em Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Vendo uma mulher aludir à "sensibilidade vaginal", ao "espasmo clitoridiano" e ao "orgasmo masculino" muitos ficaram enfurecidos. Estavam em causa assuntos tão controversos como a independência da mulher, a maternidade, a educação, o parto sem dor, o aborto, o adultério, a frigidez, o divórcio, a prostituição, respondendo O Segundo Sexo às inquietações do momento com o aforismo: "Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres." A pensadora não só é a primeira a produzir uma crítica sistemática de Freud no âmbito da teoria feminista, como a advogar que a feminilidade tem proveniência em estruturas sociais, antecipando aquilo que viria a ser uma das questões fulcrais do feminismo: igualdade/diferença.

É grave não observar esta intelectual de primeira água como a propulsora de uma mudança antropológica que esteve na vanguarda do seu tempo…

Sunday, January 06, 2008

morte de um vagabundo militante …



O Luiz Pacheco é provavelmente o maior filho da puta, a pessoa mais corrosiva, mais intratável que há, mas eu gosto dele. Não sei porque mas gosto dele. O Luiz tem a capacidade de dizer o que pensa, de dizer mesmo tudo o que pensa, mesmo o que não poderia dizer (...)
In amnésia

A morte de Luiz Pacheco constitui um dano irreparável. Um sujeito que faz da mendicância um estilo de vida é único e irrepetível. O escritor maldito fez da crítica o modo de se encontrar na literatura. Não voltará a existir outro. O seu propósito literário foi indissociável da sua vida, razão por que é difícil perceber um sem que se alcance a outra. Um temperamento extravagante, que sempre que desobstruía a língua nunca se sabia o que ia expressar, mas sem dúvida um ser ímpar. Acabou por fundar a Contraponto, onde divulgou Raul Leal, Mário Cesariny, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira e José Cardoso Pires, entre outros.

Ganhando reputação como crítico irreverente denunciava a desonestidade intelectual e a censura imposta pelo Estado Novo. Com uma vida atribulada, sem meios de subsistência chegou a viver situações de miséria que ia superando à custa de esmolas, alojando-se em quartos arrendados e abrigos. Foi nesse tempo complicado da sua vida que se terá inspirado para escrever Comunidade, que muitos consideram ser a sua obra-prima. Tradição satírica descobrimos em muitas literaturas desde as cantigas de escárnio, mas Luiz Pacheco é distinto, a sua veia impertinente e canalha não se acomoda com nenhuma consanguinidade. O desapego e a audácia com que falava daquilo que em nós é mais íntimo, sem a caraça da personagem é digno de realce. Etiquetas como libertino ou abjeccionista escoltaram-no ao longo da sua prolífica carreira literária, mas nunca pareceu afligir-se com isso. Controverso, mordaz e directo, fez de uma vida de excessos e carências a expressão máxima da sua liberdade e a matéria-prima da sua escrita. Foi alcoólico, teve relações de circunstância com parceiros de ambos os sexos, perdeu de vista vários dos seus oito filhos, chegou a ser preso por se envolver com menores e viveu com dificuldades, fruto da sua condição quase enraizada de desempregado.

Mas Pacheco labutou, e muito. Além dos livros – uma parte significativa dos quais só se conseguem descobrir em alfarrabistas – existe um imenso número de textos dispersos que andam por aí, em bibliotecas e nos jornais. Alto, esguio e escanzelado, calvo, usando óculos com lentes grossas, vestindo roupas andrajosas e abaixo do seu tamanho, hipersensível ao álcool, hipocondríaco sempre de mão dada com a morte, descarado reincidente, é sem dúvida, um ardiloso personagem literário…

Wednesday, December 26, 2007

templo da solidão...

Foto Galeria

noutro mundo, noutra época. noutra lógica. noutra vida…

No grande portão que dá acesso ao mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, um letreiro diz: “Clausura”. É a Cartuxa de Évora, o único convento em Portugal onde os monges vivem verdadeiramente para o silêncio e a contemplação. A um fotógrafo e um repórter foi concedido o privilégio raro de entrar no templo da solidão. E desvendar parte do seu segredo.

O Natal tem destas coisas, recebi, entre outros, um livro precioso. Uma obra que estabelece bem a diferença entre os monges e nós: eles preferem a solidão e o silêncio. nós escolhemos a solidão e o ruído. O Segredo da Cartuxa retrata a Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli, único convento em Portugal da Ordem Cartusiana, fundada por São Bruno há mais de 900 anos. O livro retrata a vida do único mosteiro contemplativo masculino no país, no qual cada monge vive e trabalha sozinho na sua cela quase todo o tempo. Deslizam como bichos rente aos muros. Vêm em fila, das suas celas para a capela. Surgem seis de um lado, seis de outro do grande claustro, um após outro, em silêncio, cabeça baixa, capuz a cobrir a cabeça, todos na segunda metade da vida. Por uma vez não foi preciso ser monge para que outros homens entrassem no Convento, em Évora: o livro abriu as portas de um mundo de silêncio, clausura e despojamento. O recolhimento habitual do único mosteiro contemplativo masculino do país foi perturbado para os irmãos cartuxos abrirem as portas da sua casa e darem as boas-vindas a dois estranhos curiosos para desvendar os rituais e o sentido do seu modo de vida. Fruto de seis anos de visitas à Cartuxa, apesar dos repetidos «não» ouvidos da boca do padre Isidoro. Os autores não perceberam porque os deixaram entrar, recordando as várias vezes em que o prior tentou demovê-los de continuarem a pesquisar material para o livro. O barulho no convento é anormal, mas uma vez na vida não faz mal, referem os monges, compreendendo a curiosidade e reconhecendo que a vida de um monge pode ser desconhecida e incompreensível, especialmente para a gente que vive acostumada ao hedonismo. Para um leigo, parece haver nos monges um orgulho do seu silêncio. Um tem uma voz fanhosa, outro um sotaque anglo-saxónico, outro soa como uma gralha rouca, outro emite um som para dentro, outro marca apenas o final de cada frase, outro arrasta uma ladainha sonolenta, outro um sopro de coruja moribunda, mas o efeito final é de uma beleza misteriosa. “Oramos com a voz, com a mente e com o corpo”, esclarece o padre prior. Falam da sua escolha com serenidade, alegria e sem deslumbramento, como se estivessem completamente certos de que foi a correcta. Mas há uma diferença entre nós e os doze homens que habitam o convento: por muita fé que se tenha, é preciso uma dedicação total para se deixar o mundo «lá fora» e aceitar que se está num convento para toda a vida. A vida de um monge cartuxo é austera, pratica-se a solidão, a Cartuxa edifica pelo silêncio. Apesar de poder parecer uma boa maneira de fugir do mundo e da vida, é um modo de existência que não se recomenda aos ensimesmados. A introversão muito forte acaba por ser inimiga da solidão. Para ser monge é necessário um equilíbrio psicológico muito forte, para conseguir suportar a austeridade e o silêncio. Quando questionados sobre as saudades do que deixaram para trás, respondem que o coração reclama dos seus ao princípio, mas contrapõem que as saudades passam e a recompensa é a permanente alegria espiritual em que vivem. Oração, trabalho e descanso são os três eixos fundamentais. Vivem independentes e auto-suficientes procurando a sensação de viver como os antigos eremitas que estiveram na génese da ordem. Uma condição fundamental para viver assim é acreditar que Deus é o ser único, é o único que existe, os outros só vivem. A casa da ordem em Évora foi construída no fim do século XVI e dedicada à Virgem. Foi-lhe dado o nome de «Scala Coeli», a Escada do Céu. Em 1834, quando o regime liberal extinguiu as ordens religiosas, os monges foram expulsos e os seus bens nacionalizados. O convento passou a ser Hospício das Donzelas Pobres de Évora, foi escola de agricultura e foi comprado ao Estado pela família Eugénio de Almeida, que em 1960 acabou por o devolver à ordem. O edifício é hoje propriedade da Fundação Eugénio de Almeida, que assegura a sua conservação.

Viver em clausura não significa que os monges não continuem a ter os olhos postos no mundo. Informam-se de modo a poderem animar as conversas. As notícias relacionadas com a igreja e «os cataclismos» são tópicos de especial interesse. A sua vida tem um plano traçado, dia a dia, para sempre. Mesmo depois do fim não deixarão o convento: no centro do claustro, dominado por ciprestes e laranjeiras, há um pequeno cemitério com oito cruzes negras. Austeras, como se quer no Convento da Cartuxa, tanto na vida como na morte.

Nem tudo é obvio, irrompe o segredo que alimenta algumas especulações surpreendentes, o que, revelou o padre Antão aos jornalistas, "incomodou um pouco a parte em que eles falam de coisas más a acontecer aqui dentro do convento", referindo-se à misteriosa mensagem que um dos irmãos tentou, a todo o custo, passar.

dia a dia, para sempre!!!

Também nesta linha há que referir o documentário de Philip Groning, que retrata a vida dos homens no Mosteiros de Grand Chartreuse nos Alpes: O Grande Silêncio

Links:
Cartuxa: Viagem à casa dos últimos homens que sabem escutar - Vídeo do jornal Público
Cartucha - informação da Rádio Renascença
Cartucha - informação RTP
Entrevista com Philip Gröning, realizador de O Grande Silêncio, antes do lançamento de O Segredo da Cartucha

Saturday, November 24, 2007

a mulher certa...

Uma tarde, numa elegante cafetaria de Budapeste, uma mulher relata a uma amiga como certo dia, por causa de um vulgar acidente, descobriu que o seu marido estava entregue de corpo e alma a uma paixão secreta que o consumia e como desde esse momento tentara, em vão, reconquistá-lo. Na mesma cidade, uma noite, o homem que foi seu marido confessa a um amigo como deixou a sua esposa pela mulher que desejava há anos, para depois de se casar com ela a perder para sempre.

De madrugada, numa pequena pensão romana, uma mulher conta ao seu amante como ela, de origem humilde, casou com um homem rico, e como o casamento sucumbiu ao ressentimento e à vingança. Como marionetas sem direito a exercerem a sua vontade, Marika, Péter e Judit narram a falência das suas relações com o realismo cruel de quem considera a felicidade uma ilusão inalcançável.

Sinopse

Três vozes, três sensibilidades distintas destapam uma história de paixão, enganos e impiedade. Neste romance defrontamo-nos com páginas íntimas e arrojadas, palavras sábias, palavras certas. A descrição do amor, da amizade, do ciúme, da solidão, do desejo e da morte alvejam directamente o centro da alma humana. Sentimentos que, sabemos bem, não se deixam enclausurar pelos caprichos do Tempo. A forma como doseia o levantar do pano é magistral. Até ao fim, há surpresas e revelações que nos deixam presos. A delicadeza de tudo, o discurso narrativo, singular e visceralmente autêntico. Não deixa de ser a tal literatura mainstream que todos aplaudimos e bem, como Guerra e Paz de Tolstoi ou Os Irmãos Karamazov de Dostoiévki. São aquelas pérolas universais, as prendas seguras, os best-sellers que subsistem à passagem do tempo e que continuam a desvanecer os indivíduos, a salvar almas que se poderiam consumir para sempre no inferno dos escritores fast-food. Isso não os diminui em nada, pelo contrário. Sándor Márai perturba. É sensível, corre o risco de ser algo melodramático, mas consegue não o ser com uma contenção e beleza que só está ao alcance de um punhado de eleitos.

Certo dia, acordei e senti que ela me fazia falta.
É a sensação mais aviltante. Sentir a falta de alguém. Olhas à tua volta e não compreendes. Estendes a mão, nesse gesto hesitante com que procuras um copo de água, um livro. Tudo na tua vida está em ordem, os objectos, as pessoas, as reuniões programadas, e não se alterou a tua relação com o mundo. Só que te falta qualquer coisa. Mudas as disposições dos móveis…mas não se trata disso. Não. Vais viajar. A cidade que há tanto gostavas de ver, recebe-te em todo o seu grave esplendor (…) Roçam sobre ti olhares de ternura, que observam a tua solidão, ou, numa serena superioridade, te seduzem, enviam mensagens, olhares femininos que soltam minúsculas centelhas. À noite, sobe música da margem do rio, ouvem-se canções na luz colorida de candeeiros, o vinho é doce e há pares que dançam. Nesses lugares embebidos de sons e luzes, há uma mesa que te espera e uma mulher de conversa agradável (…) se andares entre as gentes, por aqui e por ali, durante muito tempo, e se fores a certos lugares, no fim, hás-de encontrar quem te espera. Naturalmente, sabes muito bem que essa é uma esperança infantil. Só já confias, doravante, nos acasos infinitos do mundo (…).


Comovente. Como eu tenho espírito sonhador, galardoo os livros que me sensibilizam. E este é indubitavelmente um dos livros da minha existência…

Thursday, November 22, 2007

avec Prévert...


LE CANCRE

Il dit non avec la tête/mais il dit oui avec le coeur/il dit oui à ce qu’il aime/il dit non au professeur/il est debout/on le questionne/et tous les problèmes sont posés/soudain le fou rire le prend/et il efface tout/les chiffres et les mots/les dates et les noms/les phrases et les pièges/et malgré les menaces du maître/sous les huées des enfants prodiges/avec des craies de toutes les couleurs/sur le tableau noir du malheur/il dessine le visage du bonheur.

Hoje, ao final da tarde, no Institut Franco-Portugais, a editora Sextante apresentou o seu primeiro livro de poesia: uma edição bilingue de Paroles, de Jacques Prévert.

Le temps perdu
Devant la porte de l'usine
le travailleur soudain s'arrête
le beau temps l'a tiré par la veste
et comme il se retourne
et regarde le soleil
tout rouge tout rond
souriant dans son ciel de plomb
il cligne de l'œil
familièrement
Dis donc camarade Soleil
tu ne trouves pas
que c'est plutôt con
de donner une journée pareille
à un patron ?

Uma tertúlia oferecida por Eduarda Dionísio, Manuela Torres (tradutora) e pelo editor João Rodrigues. Jorge Silva Melo leu o poeta. Poeta que nasce em 1900 em Neuilly-sur-Seine num meio humilde. Passa a juventude em Paris, onde vai cumprindo diversos mesteres antes de se apegar aos artistas de vanguarda e de se relacionar com Marcel Duhamel, Yves Tanguy, Raymond Queneau, Georges Sadoul e muitos outros, que pertencem a um grupo surrealista dissidente, com a dose genuína de sarcasmo, absurdo e humor. Começa a escrever para o teatro no Grupo Outubro, faz poemas (é de 1945 a recolha de poemas Paroles), faz colagens, compõe canções, mais tarde interpretadas, entre outros, por Juliette Gréco, Yves Montand, Mouloudji, os Frères Jacques. Trabalha no cinema e é autor de inúmeros argumentos, nomeadamente para Marcel Carné (Drole de Drame, Quai des Brumes, Les Visiteurs du Soir, Les Enfants du Paradis), Jean Renoir (Le Crime de Monsieur Lange) ou para o seu irmão Pierre Prévert (L'affaire est dans le sac). Morre na aldeia de Omonville le Petit em 1977. Há momentos na vida, dizia Prévert, em que se deveria calar e deixar que o silêncio falasse ao coração, pois há emoções que as palavras não sabem traduzir. Subscrevo.

Ouvir as vozes de Juliette Greco e de Ann Buckley em Feuilles Mortes.

Sunday, November 18, 2007

reviver o passado em Lawrence's...


dedicado a João Carlos (dejanito.blogspot.com) e ao seu grande sonho…

EM SINTRA
As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.

Luís Miguel Nava

Películas (1979)
In Poesia Completa 1979-1994

"(...) E por toda a parte o luminoso ar de Abril punha a doçura do seu veludo. Defronte ao hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges. - Tem o ar mais simpático - disse o maestro".
"Os Maias", Eça de Queirós

Por terras de Sintra me perdi, neste domingo arrefecido de Novembro. Matutando em Os Maias – «Episódios de uma Vida Romântica» e nas personagens do romance – Afonso, Carlos e Maria Eduarda e nas conversas, nos ambientes, nos hábitos de uma sociedade romântica destroçada, fico enternecido com as descrições que assentam tão bem na vila! As paisagens e os palácios cheios de mistério e fantasia! Senti no rosto o ar subtil das ramagens verdes e ouvi o murmúrio de águas correntes. Atraquei no Lawrence’s, no lugar em que Lord Byron foi um dos seus hóspedes famosos, durante um Verão onda consta ter escrito parte do poema «Childe Harold’s Pilgrimage», com algumas estrofes dedicadas a Sintra. O poeta romântico viu o Glorious Eden, num encantamento igualmente experimentado por Bulhão Pato, Camilo, Herculano, Oliveira Martins ou Ramalho Ortigão. O "variado labirinto de montes e vales" que inflamou o romantismo de Byron, e que Eça descreveu com a mesma paixão, através do olhar de uma personagem de Os Maias: "... E de ali olhava a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se vêem os cimos redondos, vestindo o declive da Serra como o musgo veste um muro.". Com este espírito me instalei por uns momentos no Lawrence's – onde tudo cheira a história e literatura – o mais antigo hotel da Península lbérica e uma das mais antigas hospedarias da Europa, que tem o privilégio de usufruir essa paisagem única, justamente considerada património da humanidade, e de partilhar sentimentos com alguns dos maiores vultos da cultura dos séculos XIX a XX. Passaram por ali rainhas e chefes de Estado. Ali se deleitou William Beckford. Ninguém pode ficar indiferente perante tal beleza, nem esconder a sensação que ela desperta. E, nesse espaço fascinante, ainda há oportunidade para fruir outros prazeres, designadamente os da boa mesa. Cabe convocar Júlio César Machado ("Machadinho", "Le Petit Machado", "Literato Janota" ou "Folhetimfex Maximus", como lhe apelidou Ramalho), quiçá o mais afamado folhetinista da Lisboa dos finais do século XIX, que confessava: "... Quando quero supor-me em Londres por alguns dias, vou simplesmente para o hotel Lawrence, em Sintra (...). Quando em qualquer terra houver seis hospedarias, e uma delas for inglesa, há-de ser esta onde mais se coma, onde se bebe melhor, onde haja um criado mais activo, a onde mais se conserva o respeito pelo comfortable!...".

O Lawrence´s já não tem pronúncia escocesa. Mas os personagens de Eça ainda se cruzam connosco nas escadas que dão acesso aos quartos deste hotel de charme, onde Byron continua a ter direito a uma suite. Fadado para o romance, o hotel recuperou a imagem e podemos ter uma reprodução de uma Sintra antiga. Enquanto bebia chá ou quando me perdi nos corredores, ou mesmo quando estive na Suite do famoso Lord, recuei no tempo e mexeriquei alegremente com escritores e poetas…

Monday, November 05, 2007

perfeitos milagres...

Hoje, fim de tarde. Livraria Pó dos Livros. Jacinto Lucas Pires lançou Perfeitos milagres. Um cruzamento de histórias que decorrem nos dias de hoje. “Trata-se de um romance a um escala maior, eu queria escrever sobre o meu tempo. Acho que há na nossa literatura e cultura, de uma forma geral, um excessivo pudor em falar da contemporaneidade”, explicou o escritor. «Eu, também enquanto leitor, gosto de ler e perceber a época em que estamos através dos livros», acrescentou. Neste romance cruza-se a história de uma estrela pop à escala planetária que tem de aprender a viver depois da tragédia pessoal que foi o suicídio da mulher, com a de um grupo de teatro que se torna quase um grupo terrorista e que quer mudar o mundo, e a de um jornalista português que quer escrever um livro para ficar na história. Lucas Pires começou a escrever o romance em Nova Iorque, ao abrigo de uma residência para escritores e daí esta ideia da estrela pop e o principiar a narrativa na cidade mais populosa dos Estados Unidos. A sessão de lançamento de Perfeitos milagres contou com a excelente voz de João Reis.

Pessoas existem de quem gostamos sem as conhecermos deveras, ao primeiro olhar, até. É o caso, Jacinto Lucas Pires, que com o seu ar de Messias e com a idade de Cristo, transmite pelo olhar, o que consegue compor pela escrita: sensibilidade e competência para narrar momentos de desespero. A ler estes milagres calmamente…

Saturday, October 27, 2007

a outra margem...

É sábado e o sol já descai, mais ténue, mais outoniço: sol de veludo. É nesta tarde de certa luz que tenho o prazer de me deliciar com um Bellini, na York House. Um hotel de charme, na Rua das Janelas Verdes. A discreta e graciosa fachada de um antigo Convento do século XVII surpreende pelo azul matisse das paredes que me acolhe e transporta pelas escadinhas em pedra, a um pátio rodeado de um verde exuberante. No interior deste antigo convento dos marianos, sou surpreendido com o acesso aos quartos que cria novas expectativas, a iluminação perfeita. Uma amável Senhora, ali a trabalhar há 22 anos, versada naquele lugar, desvenda a beleza do edifício: as linhas são contemporâneas, puras, intemporais para realçar os elementos de uma arquitectura setecentista. Um espaço que posso catalogar de museológico oferece o contraste entre a vida de uma cidade e a tranquilidade de um ambiente sofisticado. Consta que a York House recebeu ilustres como Bernardino Machado, José Régio, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Vieira da Silva, Marguerite Duras, Marcelo Mastroiani, Graham Green, John Le Carré. Diz-se que ali vários intelectuais conspiraram contra um regime retrógrado. Foi com aqueles fantasmas que me imaginei tomando o delicioso cocktail – mas mais emocionante do que estar abraçado por aquelas magníficas figuras, foi ter estado acompanhado de um doce sorriso, aliás, a companhia perfeita. Bem perto, tocavam os sinos da igreja de Santos-o-Velho, conferindo um colorido poético a uma tarde romântica, toda ela desenhada para amar.

Daquele enigmático e antigo Convento rumei para o cinema, o rádio do carro sintonizado na Antena 2, Maria Filomena Mónica dissertava sobre Cesário Verde. Vinha-me à memória O Sentimento de um Ocidental, o poema que inicia de forma nostálgica: Nas nossas ruas, ao anoitecer/Há tal soturnidade, há tal melancolia/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Entro no centro comercial e ainda arranjo tempo para adquirir uma série de livros por 1, 3 e 5 Euros (Comtesse de Ségur, Bernard Shaw, Boris Pasternak, Jorge Amado, Fernando Namora, Somerset Maugham e Axel Munthe) nos alfarrabistas que acampam todas as sextas-feiras e fins-de-semana nas Amoreiras. Livros que já foram meus, mas desaparecidos no tempo e em mudanças. Uma espécie de recherche de títulos há muito perdidos…


Finalmente, numa sala dita VIP, preparei-me para ver A Outra Margem. Ricardo, um travesti que perdeu o gosto pela vida depois da morte do companheiro. Confrontado com a alegria de viver de Vasco, o seu sobrinho, um adolescente com Síndrome de Down, que conhece quando regressa à cidade natal que abandonou há anos. É com um jovem actor do grupo Crinabel e portador de trissomia 21, que Ricardo vive as cenas mais comoventes, momentos em que recupera a alegria de viver, instantes peculiares que partilha com aquele belo ser humano. Realizado por Luís Filipe Rocha, A Outra Margem foi apresentado no Festival de Montreal onde os dois actores foram distinguidos ex-aequo com o prémio de melhor actor pelas suas interpretações comovedoras. Abordar estes conteúdos não é mais nem menos de que uma forma de expor a humana normalidade dos ''anormais', ao mesmo tempo que se confronta os ''normais'' com a sua própria ''anormalidade''. A Outra Margem é, ainda, uma lição de vida sobre a superação da morte e a capacidade que devemos ter para fazermos o luto de quem parte e continuar em frente. Um filme que fugindo dos clichés tira dos actores momentos de enorme sensibilidade. Uma preciosidade, digna de registo, é o facto de Vasco ser a única personagem que, durante todo o filme, atravessa a ponte sobre o rio Lima, em Amarante. Um acto simbólico, emocional, bem arquitectado pelo realizador, uma vez que as restantes personagens se mantêm sempre na margem da vida que avaliam de correcta. Uma excelente causa para relativizarmos os nossos pequenos infortúnios. Uma clarividente razão para verificarmos que entre o branco e o preto, outras tonalidades subsistem. Uma boa razão para ver cinema em português…



Ver trailer aqui.