É sábado e o sol já descai, mais ténue, mais outoniço: sol de veludo. É nesta tarde de certa luz que tenho o prazer de me deliciar com um Bellini, na York House. Um hotel de charme, na Rua das Janelas Verdes. A discreta e graciosa fachada de um antigo Convento do século XVII surpreende pelo azul matisse das paredes que me acolhe e transporta pelas escadinhas em pedra, a um pátio rodeado de um verde exuberante. No interior deste antigo convento dos marianos, sou surpreendido com o acesso aos quartos que cria novas expectativas, a iluminação perfeita. Uma amável Senhora, ali a trabalhar há 22 anos, versada naquele lugar, desvenda a beleza do edifício: as linhas são contemporâneas, puras, intemporais para realçar os elementos de uma arquitectura setecentista. Um espaço que posso catalogar de museológico oferece o contraste entre a vida de uma cidade e a tranquilidade de um ambiente sofisticado. Consta que a York House recebeu ilustres como Bernardino Machado, José Régio, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Vieira da Silva, Marguerite Duras, Marcelo Mastroiani, Graham Green, John Le Carré. Diz-se que ali vários intelectuais conspiraram contra um regime retrógrado. Foi com aqueles fantasmas que me imaginei tomando o delicioso cocktail – mas mais emocionante do que estar abraçado por aquelas magníficas figuras, foi ter estado acompanhado de um doce sorriso, aliás, a companhia perfeita. Bem perto, tocavam os sinos da igreja de Santos-o-Velho, conferindo um colorido poético a uma tarde romântica, toda ela desenhada para amar.
Daquele enigmático e antigo Convento rumei para o cinema, o rádio do carro sintonizado na Antena 2, Maria Filomena Mónica dissertava sobre Cesário Verde. Vinha-me à memória O Sentimento de um Ocidental, o poema que inicia de forma nostálgica: Nas nossas ruas, ao anoitecer/Há tal soturnidade, há tal melancolia/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Entro no centro comercial e ainda arranjo tempo para adquirir uma série de livros por 1, 3 e 5 Euros (Comtesse de Ségur, Bernard Shaw, Boris Pasternak, Jorge Amado, Fernando Namora, Somerset Maugham e Axel Munthe) nos alfarrabistas que acampam todas as sextas-feiras e fins-de-semana nas Amoreiras. Livros que já foram meus, mas desaparecidos no tempo e em mudanças. Uma espécie de recherche de títulos há muito perdidos…
Finalmente, numa sala dita VIP, preparei-me para ver A Outra Margem. Ricardo, um travesti que perdeu o gosto pela vida depois da morte do companheiro. Confrontado com a alegria de viver de Vasco, o seu sobrinho, um adolescente com Síndrome de Down, que conhece quando regressa à cidade natal que abandonou há anos. É com um jovem actor do grupo Crinabel e portador de trissomia 21, que Ricardo vive as cenas mais comoventes, momentos em que recupera a alegria de viver, instantes peculiares que partilha com aquele belo ser humano. Realizado por Luís Filipe Rocha, A Outra Margem foi apresentado no Festival de Montreal onde os dois actores foram distinguidos ex-aequo com o prémio de melhor actor pelas suas interpretações comovedoras. Abordar estes conteúdos não é mais nem menos de que uma forma de expor a humana normalidade dos ''anormais', ao mesmo tempo que se confronta os ''normais'' com a sua própria ''anormalidade''. A Outra Margem é, ainda, uma lição de vida sobre a superação da morte e a capacidade que devemos ter para fazermos o luto de quem parte e continuar em frente. Um filme que fugindo dos clichés tira dos actores momentos de enorme sensibilidade. Uma preciosidade, digna de registo, é o facto de Vasco ser a única personagem que, durante todo o filme, atravessa a ponte sobre o rio Lima, em Amarante. Um acto simbólico, emocional, bem arquitectado pelo realizador, uma vez que as restantes personagens se mantêm sempre na margem da vida que avaliam de correcta. Uma excelente causa para relativizarmos os nossos pequenos infortúnios. Uma clarividente razão para verificarmos que entre o branco e o preto, outras tonalidades subsistem. Uma boa razão para ver cinema em português…
30 comments:
Bom dia Luís
Bem só posso dizer que ouvi o mesmo programa e que fiquei com vontade de comprar o livro - Ia a caminho da comunidade de leitores no Seixal.
Também quero ver esse filme.
Boa semana
Luís, as impressões que transmites são deliciosas: há uma serena fruição do tempo e do espaço e uma doçura contente com o magnífico dom de estar vivo. É uma escrita bem incarnada na Estação, na sua luz e no seu ritmo.
Gosto muito de vir cá todos os dias, comentando ou permanecendo num silêncio discreto.
Eu (que sem querer eliminei o teu recente comentário na moderação lá do meu PALAVROSSAVRVS REX) é que posso e devo dizer o quão em boa hora passo todos os dias por aqui.
Abraço
joshua
Conheço bem a Y H0use onde já fui algumas vezes,depois de visitar o museu, sempre em fins de tarde, tomar uma bebida e por vezes jantar. é verdade que nos esquecemos que estamos na cidade, Já me passou pela cabeça cometer a "criancice" de lá passar dois ou três dias (não o vou fazer).
O filme, actualmente vou tão pouco ao cinema, mas já pensei que gostaria de ver.
Olá, Luís! É sempre óptimo passar por aqui e partilhar a sua capacidade de apreciar e sentir a vida, até nas coisas mais simples. Sinceramente, creio ser sinal de grande sabedoria.
Parece-me que teve um magnífico dia de sábado já outonal! :):)
Estarei atenta em relação a todas estas suas referências que me pareceram do melhor...
Um bom domingo também!
(e obrigada pela simpatia)
Entre o branco e o preto outras
realidades
e cores
Agradeço as suas sempre amáveis
palavras quando escrevo as minhas
abraço amigo
Este filme é um dos que tenho na minha lista. Vou vê-lo, mas numa sala onde não seja permitido comer pipocas.
o bellini tem um óptimo aspecto!
a igreja é muito bonita.
de cesário verde, gostei dos bancos de namorar.
e o filme, acho que deveria ver.
obrigada por tanta e tão boa informação
um abraço
luísa
(rectifiquei os "erros" no meu post, se quiseres voltar a ler..
Excelente roteiro de palavras (com cor) até à outra margem.
Beijinho e boa semana Luís*
Beijo domingueiro
Na York House é agradável beber até um chá, mais lá para as tardes frias....
O filme hei-de ver um dia destes, prometi-me na semana passada...
Obrigada pelas excelentes dicas.
Boa semana
Beijinho
Começou bem este Post: com um Bellini. Comecei a bebê-los em Nova Iorque, e cá nunca encontrei um sítio onde haja.
Fiquei a saber.
Também não sabia que havia essa feirinha de livros nas Amoreiras.
É certo que sempre que aqui venho aprendo alguma coisa.
Quanto ao filme, acredito que seja muito bonito e comovedor, mas deve ser também muito triste, e por estes dias tenho que evitar as tristezas possíveis.
De qualquer forma, ainda sabendo que a vida é assim, tenho muita dificuldade em aceitar que depois da morte se faz o luto, e a vida continua.
E se o luto dura toda a vida.
E se é certo que a vida continua, continua da mesma forma?
Que pena você só aqui vir uma vez por semana.
Os seus posts fazem-me falta.
Nunca convido ninguém para passar pelo meu blog, mas gostava de saber a sua opinião sobre o que hoje lá escrevi àcerca da Paula Rego.
Um beijinho e volte depressa
Olá Amigo,
Não há dúvida que você tem o condão de nos encantar com as suas narrativas. Esta do dia de Sábado, introduziu-me nesse espaço e, sem estar presente, presenciei todos os passos, senti a sua felicidade e vivenciei a experiência humanista da "Outra Margem"...
Histórias de vida que nos ensinam a viver cada dia como uma dádiva...
Um abraço para si e uma Semana Feliz,
Maria Faia
Caro Luìs,
Que bom poder passar aqui e (re)encontrar coisas de que também gosto...
dos livros , dos autores, das tardes de Lisboa...
Quanto ao filme, pela brilhante descrição mercece, decerto, ser visto!!!!
"BRigados" por (mais) este post!!!!
BOM RESTO DE DOMINGO!!!
Luís
Conheço o Tomás desde que nasceu. Acompanhei as primeiras angústias dos pais e as alegrias sempre que o seu "menino diferente" fazia uma nova gracinha.
Este menino teve o que de melhor havia nesta cidade mas, principalmente, um amor infinito dos pais e irmãs.
Um dia, conheceram o Francisco Brás, director do grupo de teatro da CRINABEL e o Francisco, que faz maravilhas com os seus meninos descobriu o imenso talento do Tomás.
É um verdadeiro caso de sucesso e a prova de que as diferenças se tornam igualdades quando o amor ultrapassa tudo.
Obrigada pela sensibilidade com que abordas estas questões.
Um abraço.
"...entre o branco e o preto, outras tonalidades subsistem."
Vou guardar. São tantas as vezes em que sem nos lembrarmos das cores intermédias, vamos a pontos extremos...
*
York House e, logo depois, um dissertar Cesário... :) isso é um brinde especial.
Perfeita conjugação, porque a York é um paradisíaco recanto escondido.
Lugar quase mágico.
Aconchegante nas noites frias, belissimo sob as árvores nos quentes estios.
Um lugar de que muito gosto.
um convite ao cinema. passando pelo york house, melhor seria.
gostei da cadencia.
Oie Luis! Ler-te é envolver-me nas história, nos encantos...Belo Post!
Que sua semana seja de realizações!
Beijos
Embora soubesse que não ia encontrar novo post, apeteceu-me dar aqui um saltinho.
Há sempre coisas novas a descobrir por aqui.
E descobri.
Meu Deus, esta música.
Já cá estava e não ouvi?
De repente dei por mim a dançar outra vez.
Tanta vez que dancei e vi dançar isto.
Acho que era quase um bébé quando vi a Rosella Hightower dançar isto no S. Carlos.
Nunca esqueci o movimento dos braços delas quais asas de cisne morrendo.
Tantos sonhos naquela cabecinha...onde estão?
Que beleza!
Valeu a pena vir aqui.
Como sempre.
Um beijinho
E viste a expo. dos tapetes orientais que está no MNAA?...
York House... sublimes os jantar ao ar livre nas noites quentes de verão (sobretudo quando é a São a servir/acolher)...
No Inverno, não tanto...
Uma sugestão muito boa, obrigado.
não sei os ingredientes... mas gostava pelo menos de provar esse bellini
gostei muito de toda a descrição.
abraço
Fim de semana sublime!
A York House é um lugar que exorta à paz. E com a companhia perfeita, então...
Emocionei-me com o relato do filme. Estive com uma criança autista, neste fim de semana. Ela seria a personagem perfeita, num filme desse género. Muito expressiva. Meiga, espertissima.
Obrigada Luís, pela partilha.
Luis. Lembrei de um filme que vi, faz algum tempo, e a memória traidora me impede de trazer aqui título e nome do ator principal, mas sei que era francês e tinha um queridíssimo ator com síndrome de down. E também me fizeste lembrar de uma montagem teatral que vi, na minha cidade, com um grupo do Rio chamado Teatro Sol, em que todos os atores eram portadores da SD. Um dos mais lindos trabalhos que já vi na vida.
bj daqui do sul do Brasil
ps: que foto linda essa que você botou sobre seu perfil.
Olá Luís
Atrasado, mas cheguei a tempo de te dizer que mais uma vez, ler um post teu é ler um catálogo de coisas boas que a maior parte das vezes são tão fáceis de fazer e que não fazemos.
E tu, ao dar-lhes essa envolvência muito pessoal das palavras que usas, mais nos levas a querer seguir-te o exemplo.
Há quanto tempo oiço falar da York House? Pois é tempo de "agir" e aceitar a sugestão do belinni, e para melhor coincidência, esperar pela companhia certa (talvez na primavera...), ouvir rádio no carro, o único sítio onde eu o fazia e que deixei de fazer. e que bom era de vez em quando; relembrar sempre Cesário Verde; saber, e isso é óptimo que há essa "feirinha" de livros nas Amoreiras; e finalmente o filme, que será imperdível, até porque anseio ver o Filipe Duarte finalmente a fazer valer os seus dotes de actor, e o outro intérprete, que já sei me irá comover imenso.
Mas a vida é isso, e as comoções fazem parte dela e nós até gostamos...
Forte abraço.
O filme,tenho mesmo que ver. Gostei da tua dissertação que nos leva pelas voltas de Lisboa e da cultura. Outonalmente. **
Luís
um bonito texto leio aqui.
della
É excelente apreciar a vida lenta e saborosamente através da tua escrita. Ainda não vi o filme, mas quero ver.
Um luxo de post com cores de outono e sabor a felicidade.
beijos
Também já vi "A outra margem" e gostei bastante. É um filme equilibrado - o que não é tarefa fácil, dado o tema, pois poderia cair na lamechice habitual. Bem interpretado e bem realizado, é uma prova de que vale a pena ver cinema em português e de que nem tudo são espinhos: também há rosas que merecem ser apreciadas...
Beijos
"o sol já descai, mais ténue, mais outoniço: sol de veludo."
Lindo ...
E ... que delicioso programa para um sábado outonal !
Vou seguir-lhe os passos ...
Abraço
isabel
Post a Comment