(imagem retirada da net)
Ia acumulando no porta-luvas moedas de cinquenta cêntimos, um euro, dois euros. Em vez de abrir a carteira e tirar uns dinheiros, uma maçada, passou a recorrer ao dito acervo nos sinais vermelhos. Há anos que tem a sensação que os semáforos de Lisboa estão sempre vermelhos, na maioria das vezes, desnecessariamente. Isso leva-o a crer que não há qualquer sistema de sincronização dos semáforos, ou melhor, que os seus ciclos são aleatórios, sem compromisso algum com os fluxos do tráfego, grande estimulador de engarrafamentos desnecessários, além de excessivamente incomodativo para os condutores, que já sofrem bastante com os engarrafamentos da cidade. Mas o que é que sucede nos sinais vermelhos? O aparecimento em cena de um elenco de pedintes, deficientes, mutilados, sem-abrigo, toxicodependentes e doentes mentais que fazem uso desses semáforos de longo tempo, como se reunidos num requiem algo pesado.
É de manhã, aproxima-se uma romena (ou seria cigana?), de uns onze anos, com uma criança aconchegada nos braços, de dois ou três anos, a dormitar. A romena estendia a mão aos automobilistas. Semáforo fechado, carro parado, a pequena a correr com a trouxa e gotas de suor. Esquiva miúda, sem infância, que correndo e mendigando envelhece. Deu umas moedas.
A seguir, aproxima-se cambaleando um pobre de olhos vidrados a pedir, nem jovem, nem velho. Passos de dor, arrasta as duas pernas que dobram para dentro e com tremuras pelo corpo todo. Para além disso um cardápio de doenças, barba por fazer, triste boca dolorida e cara de quem arranca cabeças só à força de braços. Estende as mãos sangrentas de assassino para os carros, benze-se todo e depois, como ninguém abre a janela, roga pragas por ninguém o auxiliar.
Depois surge uma adolescente grávida, mulher incriada, morena e espigada, imensos olhos, que enfia a mão e o atrevimento pela janela dentro. E outros dois meninos desamparados, que umas vezes vendem lenços de papel, outras vezes também angustias fundas. E o indiano que bebe o vento e o frio, vende botões de rosa enrolados em celofane, que ninguém aprecia.
A seguir entra em cena uma personagem perturbadora, a louca da Marquês de Tomar, a velha senhora, dilacerada, olheiras vermelhas e cabelos desgrenhados, rosto cavado de dor, tão sofrido, enrugado, trágico perfil. Não parece que está a pedir, e só quando se lhe observa os pés se dá conta dos sapatos rotos e tortos e do vestido esfarrapado. Ela nem sempre estende a mão. Conta uma história passada no Parque Mayer, era chefe de quadro num dos teatros e teve a seus pés um empresário da época, lembrando a abandonada gata do famigerado Cats, inspirado na obra de T.S. Elliot. Antes do sinal virar, desfia um rosário de memórias entrelaçadas da guerra dos bastidores do teatro musical de há muito. É atenta e bem-educada: “Muito obrigada, cavalheiro!”. Às vezes chora. Sombra de uma vida. Nunca descobriu donde vinha e como parava ali, o sinal mudava e os carros apitavam como doidos, mais loucos do que ela, que talvez não o seja. Alcoólica? Demente? Impressiona por causa da dignidade, da tristeza, de uma vida amarrotada que pode ser a nossa, se fizermos uma ultrapassagem mal calculada e esbarrarmos com um destino infeliz.
A cada solavanco, o monte de moedas voa. Num raio de dois ou três quilómetros nas ruas de Lisboa, faça chuva ou faça sol, frio ou calor, é impossível ignorá-los. O bando dos desgraçados, nos seus dia-a-dia de miséria, com doenças ou não, são os espantalhos que ninguém vê, homens ou mulheres, todos de mão estendida e olhos prisioneiros, no sinal, ao dobrar da esquina, ao fundo da janela, à porta da igreja, colados às vidraças dos cafés, à saída do metro. A eles se juntou a horda dos arrumadores que tomam conta dos espaços livres e substituem os parquímetros avariados.
Transpira das mãos ao cismar em tal realidade. Os pedintes, os andrajosos, a Dona Rosa, ceguinha, descoberta na Rua Augusta pelos circuitos da "World Music", obrigada a regressar à rua para cantar fado enquanto chuvisca, um homem com um angioma no rosto que estende o chapéu às esmolas. Tumores cor de ameixa dilatam todo o rosto, excepto um olho de ar selvagem voltado para o mundo que não o quer ver, e um rapazinho que toca acordeão, enquanto o seu pequeno cão circula com uma minúscula caixa em busca de ofertas. Uma realidade estranha, uma existência que embaça, fora de tempo. Os pretos e os de Leste da construção civil são um constrangimento. Afluxo a Lisboa de muitas e desvairadas gentes Os pobres são uma vergonha e um embaraço. Cravam a consciência com um alfinete que fere em cheio nas épocas festivas, quando a sua injustiça parece deslocada e a assombrar a grandiloquência da fartura. Bárbaro o espectáculo. A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Não gosta de os ver, fazem-no sentir abatido, nó na garganta, doentio tremor. Fazer como se nada disso nos atingisse e sacudir do capote a água da canalha também não é solução. Mas eles vão continuar lá, apesar da solidariedade, da caridade, da compaixão. Continuam lá, apesar do marketing das campanhas eleitorais, dos palcos políticos, da União Europeia e da cidadania, das mensagens de Natal dos Cardeais, e todas essas coisas que tivemos pouco e que se está a desmoronar: o Estado-Social.
As sociedades modernas excluem os fracos, os néscios, os inúteis, os doentes, os indefesos, os sem biografia. A sociedade actual esquece-se dos que precisam de rede para que não caem no fosso. A sociedade chama-lhe o preço do progresso, o custo da crise financeira mundial que ninguém prognosticara.
Manhã alta, desce a Calçada Marquês de Tancos, vê as belas árvores que há por ali, árvores que parecem sobreviver ao desprezo dos homens, já menos gente nas ruas, mas encontra ainda um rapaz que vendia a CAIS. Não está mal vestido nem pede esmola. Troca a revista por uma moeda, que é o preço de um galão. Muitos bons espíritos não se convencem com a bondade da iniciativa, “para não sustentar vícios”.
Nunca mais conseguiu guardar um punhado de cêntimos no porta-luvas. Até por causa disso mesmo, a vida (essa coisa à margem da sensibilidade). Eles, os dispensáveis que não são fantasmas, nem vestígios, nem ecos, continuam lá desprezados rondando os semáforos…
É de manhã, aproxima-se uma romena (ou seria cigana?), de uns onze anos, com uma criança aconchegada nos braços, de dois ou três anos, a dormitar. A romena estendia a mão aos automobilistas. Semáforo fechado, carro parado, a pequena a correr com a trouxa e gotas de suor. Esquiva miúda, sem infância, que correndo e mendigando envelhece. Deu umas moedas.
A seguir, aproxima-se cambaleando um pobre de olhos vidrados a pedir, nem jovem, nem velho. Passos de dor, arrasta as duas pernas que dobram para dentro e com tremuras pelo corpo todo. Para além disso um cardápio de doenças, barba por fazer, triste boca dolorida e cara de quem arranca cabeças só à força de braços. Estende as mãos sangrentas de assassino para os carros, benze-se todo e depois, como ninguém abre a janela, roga pragas por ninguém o auxiliar.
Depois surge uma adolescente grávida, mulher incriada, morena e espigada, imensos olhos, que enfia a mão e o atrevimento pela janela dentro. E outros dois meninos desamparados, que umas vezes vendem lenços de papel, outras vezes também angustias fundas. E o indiano que bebe o vento e o frio, vende botões de rosa enrolados em celofane, que ninguém aprecia.
A seguir entra em cena uma personagem perturbadora, a louca da Marquês de Tomar, a velha senhora, dilacerada, olheiras vermelhas e cabelos desgrenhados, rosto cavado de dor, tão sofrido, enrugado, trágico perfil. Não parece que está a pedir, e só quando se lhe observa os pés se dá conta dos sapatos rotos e tortos e do vestido esfarrapado. Ela nem sempre estende a mão. Conta uma história passada no Parque Mayer, era chefe de quadro num dos teatros e teve a seus pés um empresário da época, lembrando a abandonada gata do famigerado Cats, inspirado na obra de T.S. Elliot. Antes do sinal virar, desfia um rosário de memórias entrelaçadas da guerra dos bastidores do teatro musical de há muito. É atenta e bem-educada: “Muito obrigada, cavalheiro!”. Às vezes chora. Sombra de uma vida. Nunca descobriu donde vinha e como parava ali, o sinal mudava e os carros apitavam como doidos, mais loucos do que ela, que talvez não o seja. Alcoólica? Demente? Impressiona por causa da dignidade, da tristeza, de uma vida amarrotada que pode ser a nossa, se fizermos uma ultrapassagem mal calculada e esbarrarmos com um destino infeliz.
A cada solavanco, o monte de moedas voa. Num raio de dois ou três quilómetros nas ruas de Lisboa, faça chuva ou faça sol, frio ou calor, é impossível ignorá-los. O bando dos desgraçados, nos seus dia-a-dia de miséria, com doenças ou não, são os espantalhos que ninguém vê, homens ou mulheres, todos de mão estendida e olhos prisioneiros, no sinal, ao dobrar da esquina, ao fundo da janela, à porta da igreja, colados às vidraças dos cafés, à saída do metro. A eles se juntou a horda dos arrumadores que tomam conta dos espaços livres e substituem os parquímetros avariados.
Transpira das mãos ao cismar em tal realidade. Os pedintes, os andrajosos, a Dona Rosa, ceguinha, descoberta na Rua Augusta pelos circuitos da "World Music", obrigada a regressar à rua para cantar fado enquanto chuvisca, um homem com um angioma no rosto que estende o chapéu às esmolas. Tumores cor de ameixa dilatam todo o rosto, excepto um olho de ar selvagem voltado para o mundo que não o quer ver, e um rapazinho que toca acordeão, enquanto o seu pequeno cão circula com uma minúscula caixa em busca de ofertas. Uma realidade estranha, uma existência que embaça, fora de tempo. Os pretos e os de Leste da construção civil são um constrangimento. Afluxo a Lisboa de muitas e desvairadas gentes Os pobres são uma vergonha e um embaraço. Cravam a consciência com um alfinete que fere em cheio nas épocas festivas, quando a sua injustiça parece deslocada e a assombrar a grandiloquência da fartura. Bárbaro o espectáculo. A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Não gosta de os ver, fazem-no sentir abatido, nó na garganta, doentio tremor. Fazer como se nada disso nos atingisse e sacudir do capote a água da canalha também não é solução. Mas eles vão continuar lá, apesar da solidariedade, da caridade, da compaixão. Continuam lá, apesar do marketing das campanhas eleitorais, dos palcos políticos, da União Europeia e da cidadania, das mensagens de Natal dos Cardeais, e todas essas coisas que tivemos pouco e que se está a desmoronar: o Estado-Social.
As sociedades modernas excluem os fracos, os néscios, os inúteis, os doentes, os indefesos, os sem biografia. A sociedade actual esquece-se dos que precisam de rede para que não caem no fosso. A sociedade chama-lhe o preço do progresso, o custo da crise financeira mundial que ninguém prognosticara.
Manhã alta, desce a Calçada Marquês de Tancos, vê as belas árvores que há por ali, árvores que parecem sobreviver ao desprezo dos homens, já menos gente nas ruas, mas encontra ainda um rapaz que vendia a CAIS. Não está mal vestido nem pede esmola. Troca a revista por uma moeda, que é o preço de um galão. Muitos bons espíritos não se convencem com a bondade da iniciativa, “para não sustentar vícios”.
Nunca mais conseguiu guardar um punhado de cêntimos no porta-luvas. Até por causa disso mesmo, a vida (essa coisa à margem da sensibilidade). Eles, os dispensáveis que não são fantasmas, nem vestígios, nem ecos, continuam lá desprezados rondando os semáforos…
13 comments:
A realidade...
Nesta época festiva
Boas Festas
Aquele grande Abraço...
JustMe
caro luís,
assim, com a maior simplicidade desejamos duplamente um MUITO FELIZ NATAL.
boas festas.
Um duplo abraço de estima*
Quando estou parada nos semáforos já me ocorreu tudo o que sente e escreveu. Faço parte da associação afid-diferença (integração de pessoas com deficiência) e tenho-me dedicado a uma amiga muito especial, mais velha que eu. É fácil ter uma amiga, difícil é cultivá-la. Esta amizade passa por dar carinho, apoios vários e levá-la comigo no Natal e afins...Todos
Não sei como comentar...
Um enorme arrepio me percorre o corpo...
Deixo um abraço
"Isto" é uma das mais belas mensagens de Natal que já li...
Aqui não há feéricas iluminações, nem corrida ao consumismo, nem mesmo uma simples árvore ou presépio. Há apenas a triste realidade dos que não têm Natal e se é comum dizer que o Natal é quando o homem quiser, será também normal pensar que há aqueles para quem nunca é Natal...
Boas Festas!!!
É preciso combater as causas e não deixar que a indiferença se instale.
Cabe a cada um de nós não ser cego e para quem quiser dar um passo mais além: REAPN.
Um Abraço e Feliz Natal, Luís.
Que bom ver que o brilho da escrita está presente na festa das luzes!
Feliz N@t@l!
Acontece que..
Quando é Natal, esquecemos muitas coisas importantes, embrenhados que estamos nas vidas.
Também acontece que, nos lembramos de algumas coisas importantes, apenas no NATAL.
Acontece e é pena....
FELIZ NATAL
Abraço
E esses vivem como fantasmas mesmo sem o serem. E viva o Natal de todos os dias...
Muito apropriado o teu post.
Boas festas.
Um Abraço e Feliz Natal
GRITOMUDO
Poema de Natal
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes
Caro Luís,
tenho estado um pouco "longe"...mas não demasiado!
Hoje, ao aqui voltar, deparo com mais um belo texto que não me deixa indiferente!
A realidade exposta. A vida na sua intensidade!
Agradeço esta partilha!
Sentido, com Duende, lindo e profundo...incisivo e doce ao mesmo tempo...Que nunca nos falte a coragem e a força para dar espaço à indignação perante a injustiça social ou outra qualquer injustiça.
Parabens pelo descrição da realidade que nos incomoda e com a qual não sabemos lidar sem nos magoarmos por dentro...
Muito bem 'dito'.
"...a vida (essa coisa à margem da sensibilidade)."
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