Alzira sente-se amarga neste Portugal, que não está propriamente um esplendor, e está a reler o mundo do vaidoso e arrogante Lobo Antunes, aquele homem de olhos azuis que afirma não ser um senhor de idade que conservou o coração menino, mas sim um rapazinho cujo envelope se gastou. Na verdade, não tencionava lê-lo. Não pensava ler escritor nenhum – estava excessivamente cansada. Abrir um livro, ler uma página, entrar tão depressa na noite escura de outra pessoa – tudo isso eram pretextos para a deixar ficar no seu arquipélago de insónia e rasgamento interior. Não compreendia como havia uma legião que se aplaudia pelos seus êxitos e pequenos nadas, pelos seus interesses e até pela sua forma de amar, nem que fosse uma pedra. Parecia-lhe que todos os universos ficcionais ou semi-ficcionais tinham sido escritos por criaturas tão diferentes de si. Não importava o que descrevessem, os livros falavam de vidas cuja experiência não tinha qualquer analogia com a sua tristeza e o seu conhecimento do inferno, e por isso queria abandonar a sua apavorante memória de elefante e esquecê-los a todos. Uma vez que nada conseguia encontrar nesses livros que se parecesse com a sua ansiedade, sentia-se enfurecida tanto com os livros como consigo, porque se desfazia ao lê-los; com os livros, porque ignoravam a dor que estava a sentir, numa espécie de solidão assustada: a vida nos livros desconhecia que também ela anoitecia; consigo própria, porque tinha sido imprudente a ponto de se lançar naquela mágoa absurda. Tal como Blaise Cendrars, também era obrigada a concluir que todos os livros do mundo não valem uma noite de amor. No fundo, tudo o que queria era escapulir-se ao seu obtuso flagelo e dizer boas tardes a todas as coisas.
Mas para ser sincera tinham sido os livros a adubarem-lhe a existência, o seu meio de transporte; foram os brilhantes Proust, Kafka, Faulkner, Greene, Updike, Conrad, Camilo, Eça que a corrigiram; quando lia ia à procura da tal “petite musique”, de que falava Céline, essa musiquinha que é a verdadeira assinatura de um livro, e então ia repetindo para si mesma que, se ansiava sair daquele auto dos danados, daquela situação esquizofrenizante teria de continuar a ler. Mas os livros eram naus longínquas face ao seu sofrimento. Era por isso que insistia a dizer a si própria: «Os livros são autênticos manuais de inquisidores» Sempre que os livros a importunavam, encontrava uma razão para abandoná-los, mas a escrita é uma espécie de droga dura.
Mulher de pouco choro permanecia assim pendurada num trapézio agitado de emoções quando começou a reler algumas crónicas – a rebentarem de ternura – de Lobo Antunes. Mas não as lia com a expectativa de que a pudessem poupar, nem as encarava sequer como bóias para se aguentar à superfície ou sérios substitutos das doses diárias de Vodka e Valium 10, que necessitava para dormir acordada. Uma editora francesa estava a preparar uma conferência sobre confissões antonianas e pediram-lhe para apresentar algo sobre este psiquiatra das letras que julga que ninguém escreve como ele. Tinha que ser, no passado sensibilizara-se com a prosa escarpada do escritor e a sua complexa arquitectura verbal e apanhava os romances dele como quem apanha uma doença. Pensava em Lobo Antunes como, por paradoxal que pareça, em Tchekov, autores de obras nas quais aparentemente não se passa nada…E nelas passa-se tudo. Então encara o escritor novamente e, pela primeira vez desde que a melancolia descera sobre si. Escutou uma voz a dizer que o infortúnio a que ela chamava a ordem natural das coisas não era tão grande nem tão mau como pensava. Isto não foi dito em nenhuma frase em particular; as obras falavam de outras coisas – de tangos de maridos infiéis, fados, boleros e salsa, sempre carregados de lirismo, relações falhadas, pequenas misérias, separações, inexistência de portos para ancorar, guerras em África, da inexorabilidade do tempo e da caducidade das coisas, tratados das paixões da alma, fados alexandrinos, regressos de caravelas, exortações a crocodilos, investigações sobre mortes [de sentimentos], explicações sobre pássaros, escritas nos cus de judas ou em Babilónia –; as expressões dirigiam-se ao seu tormento, e esta percepção animou-a. O problema não era a infelicidade em si, mas a forma como ela a entendia, o modo como percebera que tinha perdido determinada inocência. O enigma não era o facto de se sentir miserável, mas sim de o sentir de forma peculiar. Voltar a um trapeiro como Lobo Antunes neste período de desventura foi como dar uma pirueta na sua vida, embora soubesse que as páginas que lia não tinham sido escritas com esse propósito, ou sequer como conforto para mulheres a braços com uma depressão, cuja cura talvez só aconteça com um sorriso de um indivíduo especial que com elas se cruze num entardecer à beira mar.
Como compreender tudo isto? O que faz com que a leitura de um sujeito – pouco dado à confidência, mas que confessa que se comove até às lágrimas quando ouve Mozart – tenha sido como tomar uma poção mágica? Talvez tenha sido iluminada pela ideia de que é preferível não acreditar excessivamente na vida. E isto nada tem a ver com teoria, visto que as palavras escritas de Lobo Antunes deixam bem claro que a única esperança consiste em mantermo-nos iguais a nós mesmos, em agarrarmo-nos aos nossos hábitos, à nossa indisciplina, sem limites, nem reservas. Há, na escrita, no estilo blasé, no ar melífluo de Lobo Antunes, a alusão de que a maior imbecilidade é renunciarmos às nossas paixões, e o remate sério do seu pensamento é que a morte será sempre e irremediavelmente uma puta e, a uma puta, não se pode dar confiança.
Felizmente regressou aos mundos fascinantes de Lobo Antunes e à sinfonia que é o seu edifício literário e agora interpreta-o de outra forma; observa que ele desafia qualquer simplificação. Afinal o que ela mais preza nas crenças daquele português, meio-brasileiro, meio-alemão não é só a perspectiva de que viver é como escrever sem corrigir, mas meramente a vontade de estar; e ela ali está, dentro daquela labiríntica fruição do acto de ler, para abraçar a sua raiva, a sua agonia, a sua sordidez e mesquinhice e partilhar estes estados de alma com ele, de uma forma divertida. É assim que a literatura alivia, convidando a explodir com a mesma violência do escritor que se ama.
Luís Galego
Mas para ser sincera tinham sido os livros a adubarem-lhe a existência, o seu meio de transporte; foram os brilhantes Proust, Kafka, Faulkner, Greene, Updike, Conrad, Camilo, Eça que a corrigiram; quando lia ia à procura da tal “petite musique”, de que falava Céline, essa musiquinha que é a verdadeira assinatura de um livro, e então ia repetindo para si mesma que, se ansiava sair daquele auto dos danados, daquela situação esquizofrenizante teria de continuar a ler. Mas os livros eram naus longínquas face ao seu sofrimento. Era por isso que insistia a dizer a si própria: «Os livros são autênticos manuais de inquisidores» Sempre que os livros a importunavam, encontrava uma razão para abandoná-los, mas a escrita é uma espécie de droga dura.
Mulher de pouco choro permanecia assim pendurada num trapézio agitado de emoções quando começou a reler algumas crónicas – a rebentarem de ternura – de Lobo Antunes. Mas não as lia com a expectativa de que a pudessem poupar, nem as encarava sequer como bóias para se aguentar à superfície ou sérios substitutos das doses diárias de Vodka e Valium 10, que necessitava para dormir acordada. Uma editora francesa estava a preparar uma conferência sobre confissões antonianas e pediram-lhe para apresentar algo sobre este psiquiatra das letras que julga que ninguém escreve como ele. Tinha que ser, no passado sensibilizara-se com a prosa escarpada do escritor e a sua complexa arquitectura verbal e apanhava os romances dele como quem apanha uma doença. Pensava em Lobo Antunes como, por paradoxal que pareça, em Tchekov, autores de obras nas quais aparentemente não se passa nada…E nelas passa-se tudo. Então encara o escritor novamente e, pela primeira vez desde que a melancolia descera sobre si. Escutou uma voz a dizer que o infortúnio a que ela chamava a ordem natural das coisas não era tão grande nem tão mau como pensava. Isto não foi dito em nenhuma frase em particular; as obras falavam de outras coisas – de tangos de maridos infiéis, fados, boleros e salsa, sempre carregados de lirismo, relações falhadas, pequenas misérias, separações, inexistência de portos para ancorar, guerras em África, da inexorabilidade do tempo e da caducidade das coisas, tratados das paixões da alma, fados alexandrinos, regressos de caravelas, exortações a crocodilos, investigações sobre mortes [de sentimentos], explicações sobre pássaros, escritas nos cus de judas ou em Babilónia –; as expressões dirigiam-se ao seu tormento, e esta percepção animou-a. O problema não era a infelicidade em si, mas a forma como ela a entendia, o modo como percebera que tinha perdido determinada inocência. O enigma não era o facto de se sentir miserável, mas sim de o sentir de forma peculiar. Voltar a um trapeiro como Lobo Antunes neste período de desventura foi como dar uma pirueta na sua vida, embora soubesse que as páginas que lia não tinham sido escritas com esse propósito, ou sequer como conforto para mulheres a braços com uma depressão, cuja cura talvez só aconteça com um sorriso de um indivíduo especial que com elas se cruze num entardecer à beira mar.
Como compreender tudo isto? O que faz com que a leitura de um sujeito – pouco dado à confidência, mas que confessa que se comove até às lágrimas quando ouve Mozart – tenha sido como tomar uma poção mágica? Talvez tenha sido iluminada pela ideia de que é preferível não acreditar excessivamente na vida. E isto nada tem a ver com teoria, visto que as palavras escritas de Lobo Antunes deixam bem claro que a única esperança consiste em mantermo-nos iguais a nós mesmos, em agarrarmo-nos aos nossos hábitos, à nossa indisciplina, sem limites, nem reservas. Há, na escrita, no estilo blasé, no ar melífluo de Lobo Antunes, a alusão de que a maior imbecilidade é renunciarmos às nossas paixões, e o remate sério do seu pensamento é que a morte será sempre e irremediavelmente uma puta e, a uma puta, não se pode dar confiança.
Felizmente regressou aos mundos fascinantes de Lobo Antunes e à sinfonia que é o seu edifício literário e agora interpreta-o de outra forma; observa que ele desafia qualquer simplificação. Afinal o que ela mais preza nas crenças daquele português, meio-brasileiro, meio-alemão não é só a perspectiva de que viver é como escrever sem corrigir, mas meramente a vontade de estar; e ela ali está, dentro daquela labiríntica fruição do acto de ler, para abraçar a sua raiva, a sua agonia, a sua sordidez e mesquinhice e partilhar estes estados de alma com ele, de uma forma divertida. É assim que a literatura alivia, convidando a explodir com a mesma violência do escritor que se ama.
Luís Galego
16 comments:
Lindas palavras sobre os Livros!
Bela homenagem a um grande Senhor das Letras :)
Adorei este post, porque adoro ler e gosto muito de ALA!
Belo texto sobre algo que me acontece frequentemente; pegar num livro, ler umas linhas e deixar a mente fluir...
"Abrir um livro, ler uma página, entrar tão depressa na noite escura de outra pessoa – tudo isso eram pretextos para a deixar ficar no seu arquipélago de insónia e rasgamento interior."
Destaco! Todo o texto é de uma riqueza extraordinária.
Que leria se tudo ardesse? Ela? Eu? Todas as *__bonecas __* deste mundo de palavras?
Talvez, definitivamente, a vida perdesse qualquer sentido...
Porque?... O Infinito deu a resposta. Brilhantemente!
"Há, na escrita, no estilo blasé, no ar melífluo de Lobo Antunes, a alusão de que a maior imbecilidade é renunciarmos às nossas paixões, e o remate sério do seu pensamento é que a morte será sempre e irremediavelmente uma puta e, a uma puta, não se pode dar confiança."
Saudações e parabéns pelo excelente trabalho
*___bonecadetrapos___*
Sutileza e finesse ao escrever sobre tão conceituado escritor. Para os que já o conhecem provoca uma releitura mais apurada e para os que ainda não o leram, vontade de conhecê-lo. Eu, particularmente, já conheço pelo menos três dos mencionados nessa crônica e crítica literária.Não sei se já percebeste,e se não,digo-te agora com todas as letras:GOSTO MUITO do que escreves, sempre.Estou sempre por aqui, lendo teus textos, mesmo que nem sempre deixe um comentário.Às vezes
estou sem espaço na mente para escrever,da mesma forma que, às vezes não disponho de espaço para ler. E gosto muito de ler.Costumo dizer que a leitura, os livros, são, talvez,(quem sabe?), meus melhores amigos. Um bom fim-de-semana!
Não esqueci o seu texto, Luís...Apercebi-me dele,minutos depois da publicação. Mas... preciso de aprofundar o conteúdo; sobretudo, preciso de analisar a ficção, que, para mim tem o seu quê de autodiegético...Voltarei...
olá, tenho andado no infinito
De cada vez que leio um texto seu sinto-me um bocadinho mais rica.
E tenho sempre vontade de me levantar e aplaudir!!!
De cada vez que leio um texto seu sinto-me um bocadinho mais rica.
E tenho sempre vontade de me levantar e aplaudir!!!
Volto ao tema, Luís:
....A "Alzira" pode permanecer para além de todas as suas dúvidas...Mas permanece só, "arde" em utopias e não é nos livros de um qualquer autor que ela encontra resposta.
Como diz o próprio Lobo Antunes, se numa puta não se confia, a verdade é que a Vida, em si, é, também ela!uma puta...Ela não existe, porque só se É...no momento em que se Está! Parece-me que a "Alzira" Está sempre, mas não consegue encontrar o momento da sua presença na vida.
...
Se ela arder com todas as suas dúvidas, os seus temores, as suas ínfimas certezas, é indiferente ao mais comum dos mortais! A vida é dela e ela pode arder nela a qualquer instante, a que se chama
tempo...
É claro que ao mergulhar num qualquer livro encontramos o mundo do autor, tantas vezes narrador! Ele convida-nos a bisbilhotar as suas realizações, os seus sonhos, quase nunca realizados...Tanto faz que seja ao som de Wagner, de Chopin ou da 9ª Sinfonia...OU até da "Abertura 1812 de Tschaikowsky ..Eu, o Ser, estou ali, desnuda, na expectativa de grandes realizações, através da atitude inquisitorial de um qualquer Lobo Antunes, de um Dostoiewsky, de um Proust, "à procura de um mundo perdido", que nunca encontrarei...
Revejo-me nas maravilhas e na dor do narrador, mas, Luís, o narrador sou EU!! Por isso, como a" Alzira," eu sei que vou "arder"...
Ao longo do "ardor", é possível que encontre a mão de todas as ajudas....e é provável que não encontre mais do que a minha mão vazia...
Falo-te, ao som do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, ouvindo "Jerusalém"...
Isto é viver, ardendo, Luís!
Nota uma coisa, Luís: acho que te deves esforçar por publicar essa riqueza interior, que te vai queimando...
Prezo-me de ser uma professora de Português! e de merecer esse título e o que disso adveio´:a minha sendsibilidade de mulher que entende um homem...A minha vontade de renascer a qualquer momento das cinzas que já queimei na Vida!
Pena não poder falar-te, mais à vontade, para discutir estes assuntos. Juro!
e o que seria de mim sem a literatura?
bjs
Valeu a pena passar por aqui. Abração.
Interessante visão da alma de uma Mulher "atormentada" (ou não) e de um autor apaixonado pela sua escrita.
Valeu a pena passar por cá!
Cordiais saudações e votos de semana feliz.
Maria Faia
Então,Luís? Mesmo que não concorde comigo...exprima-se!
LUSIBERO
Luis
Passa no meu blogue. E aceita o prémio. A ti, tinha de fazer o convite pessoalmente ;)
Abraço =)
Luis,
extraordinário este texto teu_________________
MUITO m u i t o bom *
Um abraço________________________
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