(Frida Kahlo)
em memória recente de “C”
A vida é curta e o cancro demasiado longo. A morte das pessoas que seguimos amputa-nos. Quando, no Instituto, todos os dias, a doença leva homens, mulheres e miúdos, velhos e novos, eu fixo os olhos de Thiago, pálpebras roxas, quase pretas, colega, enfermeiro, quase menino, e pergunto-lhe impotente e desalentada: “e o meu sofrimento? como o disfarço?”. No meu coração, amor e confiança resistem mas a dor torna-se uma ferida aberta. Em nome de quê a menina de cinco anos morre de leucemia? A que propósito o arqueólogo cheio de projectos e de sorrisos falece fazendo estremecer uma mãe idosa e uma relação interdita? Ás vezes estou tão desfeita, que me doiem as veias, esfarrapa-se-me a epiderme, sinto um vinco na alma... O Thiago é brasileiro, comporta-se como um príncipe perante situações cruéis e é dono de uma fé inabalável. Embaraçada, como se estivesse exposta nua numa rua concorrida, confronto-o com o autismo de Deus. Assegura que Ele está muito absorvido, num Todo tão imenso, que por vezes desampara pessoas para quem é a única entidade a quem podem pedir colo; mas recorda-me amíude C. S. Lewis: " A dor é o altifalante que Deus utilizou para despertar um mundo de surdos!” e, também, que os seus desígnios tem profundezas que simples mortais não atingem. Talvez porque precisemos de um detonador qualquer, frequentemente, numa salinha, espécie de toca segura, uma pequena equipa clínica junta-se para lembrar os que vão a caminho de um céu. Ninguém morre sem deixar um sulco, um risco, uma sombra. Acerca de cada um deles conta-se uma biografia, uma historieta, um feito de coragem extraordinário, uma lição de vida e dignidade. Surge a nostalgia, pela imbecilidade de perdas irreparáveis. A dor é muitas vezes banhada com o poder de lágrimas e de ais, e o ânimo recomposto num abraço que nos torna cúmplices. Uma das enfermeiras, a que mais insiste em mascarar as cicatrizes privadas, com um autoritarismo que lhe não é estrutural, lê entusiasta excertos de Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Lídia Jorge. Palavras escritas que de tão intensas, devolvem afabilidade e ternura. Embora artesã dos cuidados de saúde o sangue-frio teima em morar na outra margem e nunca vou aceitar o espectáculo do sofrimento, porque não fomos feitos para a morte, fomos feitos para a vida e para a alegria. A única certeza que tenho é que para a vida não ser um absurdo é forçoso consumar uma paixão, é necessário amar e ser fortemente correspondido, é viver um Monte dos Vendavais ou um Doutor Jivago, é ter em atenção a matéria de que os outros são feitos. Claro, os outros, sempre os outros, que nós somos invencíveis. Salvo quando após termos vivido com gente igual a nós as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mais sensíveis das suas existências, colocamos o lençol branco por cima de um corpo, cujo espírito voou como um papagaio de papel colhido por uma corrente ascendente. O sofrimento, Querido Thiago, o meu...como o iludo?
Luís Galego
A vida é curta e o cancro demasiado longo. A morte das pessoas que seguimos amputa-nos. Quando, no Instituto, todos os dias, a doença leva homens, mulheres e miúdos, velhos e novos, eu fixo os olhos de Thiago, pálpebras roxas, quase pretas, colega, enfermeiro, quase menino, e pergunto-lhe impotente e desalentada: “e o meu sofrimento? como o disfarço?”. No meu coração, amor e confiança resistem mas a dor torna-se uma ferida aberta. Em nome de quê a menina de cinco anos morre de leucemia? A que propósito o arqueólogo cheio de projectos e de sorrisos falece fazendo estremecer uma mãe idosa e uma relação interdita? Ás vezes estou tão desfeita, que me doiem as veias, esfarrapa-se-me a epiderme, sinto um vinco na alma... O Thiago é brasileiro, comporta-se como um príncipe perante situações cruéis e é dono de uma fé inabalável. Embaraçada, como se estivesse exposta nua numa rua concorrida, confronto-o com o autismo de Deus. Assegura que Ele está muito absorvido, num Todo tão imenso, que por vezes desampara pessoas para quem é a única entidade a quem podem pedir colo; mas recorda-me amíude C. S. Lewis: " A dor é o altifalante que Deus utilizou para despertar um mundo de surdos!” e, também, que os seus desígnios tem profundezas que simples mortais não atingem. Talvez porque precisemos de um detonador qualquer, frequentemente, numa salinha, espécie de toca segura, uma pequena equipa clínica junta-se para lembrar os que vão a caminho de um céu. Ninguém morre sem deixar um sulco, um risco, uma sombra. Acerca de cada um deles conta-se uma biografia, uma historieta, um feito de coragem extraordinário, uma lição de vida e dignidade. Surge a nostalgia, pela imbecilidade de perdas irreparáveis. A dor é muitas vezes banhada com o poder de lágrimas e de ais, e o ânimo recomposto num abraço que nos torna cúmplices. Uma das enfermeiras, a que mais insiste em mascarar as cicatrizes privadas, com um autoritarismo que lhe não é estrutural, lê entusiasta excertos de Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Lídia Jorge. Palavras escritas que de tão intensas, devolvem afabilidade e ternura. Embora artesã dos cuidados de saúde o sangue-frio teima em morar na outra margem e nunca vou aceitar o espectáculo do sofrimento, porque não fomos feitos para a morte, fomos feitos para a vida e para a alegria. A única certeza que tenho é que para a vida não ser um absurdo é forçoso consumar uma paixão, é necessário amar e ser fortemente correspondido, é viver um Monte dos Vendavais ou um Doutor Jivago, é ter em atenção a matéria de que os outros são feitos. Claro, os outros, sempre os outros, que nós somos invencíveis. Salvo quando após termos vivido com gente igual a nós as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mais sensíveis das suas existências, colocamos o lençol branco por cima de um corpo, cujo espírito voou como um papagaio de papel colhido por uma corrente ascendente. O sofrimento, Querido Thiago, o meu...como o iludo?
Luís Galego
17 comments:
Não sei o que dizer. Não tenho palavras.
Apenas o meu abraço.
(e saio devagarinho...)
Há coisas que simplesmente não iludimos.
"Embaraçada, como se estivesse exposta nua numa rua concorrida, confronto-o com o autismo de Deus. Assegura que Ele está muito absorvido, num Todo tão imenso, que por vezes desampara pessoas para quem é a única entidade a quem podem pedir colo"
Deus não é autista....
Autistas somos nós que não chegamos à sua total compreensão.
Deus não é um mágico, não é curandeiro nem fada,
Deus não é matéria....
Deus não é um senhor de barbas omnipotente...mas é omnipresente
Também não lhe sei dizer o que é Deus...
Mas sei que nada tem que ver com doenças e curas da forma como queremos...
Sei que anda por aí onde o consigo sentir..
Não sei defini-lo e não o responsabilizo por nada embora o sinta um ser responsável....
Ser... se se pode chamar a Deus apenas - SER.
Não lhe sei dizer o que é Deus mas sei que ele existe...e "A única certeza que tenho é que para a vida não ser um absurdo é forçoso consumar uma paixão"....
Obrigada pelo seu excelente texto.
É lindinho... momentos que a dor nos deixa sem palavras... Por certo que ninguém pode chorar as nossas lágrimas, nem sorrir nossos sorrisos, mas pode nos acolher e ajudar a vivenciar o luto.
Boa páscoa e bom fim de semana! Beijos
Luís:não se esqueça que tenho uma mensagem especial para si,no Lusibero do dia4 ,deste mês.
Vou meditar sobre este novo texto e depois, pronunciar-me-ei.Beijo amigo. com votos de uma Páscoa feliz.
LUSIBERO
Bem hajas por esta reflexão...
Como nos custa entender "o Algo" que nos domina.
Abraço!
Como escrevi noutro sítio, pelo desaparecimento de Catatau apesar de o não ter conhecido, e tal como a Hora de Noa que em Sexta Feira Santa se celebra, como dizia Oscar Wilde, "Onde ha dor o chao é sagrado".
Santa Páscoa.
Daniel
Estimado Amigo Luis,
Embargam-se-me as palavras na garganta e as memórias de há 24 anos atrás, era eu uma menina que, não querendo acreditar na morte, via partir o Ser que me deu vida, num sono de sofrimento e dor feito.
Mas a morte faz parte da vida. Essa licção eu aprendi!
E, aprendi também, com a dura e crua vida, que não morre quem amo, porquanto sempre viverá na minha alma, dando-me alento para seguir viagem, sofrer as injustiças provocadas por terrenos seres pequeninos de sentimentos, afagar a beleza dos dias de sol e das noites de luar, acariciar as alegrias que o viver me proporciona.
A dor transforma-se em alento e coragem, afago e esperança!
Um abraço amigo para ti,
Maria Faia
Luís:por motivos que explico no texto ,publicado, hoje, em "LUSIBERO", respondi já ao teu artigo.BOA E SANTA PÁSCOA
Caro Luís,
A dor do sentir trespassa o que de mais sagrado possa existir em nós. Só assim nos apercebemos da dimensão do sofrimento.
Nem sempre essa dor é física. E, se a sentimos, é porque algo de nós foi intrinsecamente partilhado.
"Iludir" o sofrimento?Talvez no único momento em que perdermos a humanidade...
Um belo e vivo texto!
A dor como amputação...
Infinito Pessoal: no preciso momento em que cliquei "publish..." foi-se abaixo a internet e perdeu-se o texto que te mandei, Luís.Por esse motivo, e para ir "salvando", respondo-te aqui.
Tudo o que nos vence, nos amputa, amigo.
Amputa-nos a ditadura, que nos rouba projectos pessoais de Liberdade;amputam-nos a dor e a doença ,que Deus permite que nos corte ,aos bocados, quando sofremos sem saber que mal fizémos...Amputam-nos aquelas imagens de terror e fome , de sofrimento e mágoa, das pobres crianças indefesas, no meio dos circos político-militares...Amputa-nos a morte dos amigos, dos filhos ,dos seres queridos, enfim.
Não sei se C.s.Lewis tem razão...terá a sua razão!Mas ,essa imagem de Deus a ver o sofrimento deste ser que Ele próprio criou ,à sua imagem e semelhança(como dizem!), com altifalantes, parece-me apocalíptica,desarmoniosa, angustiante.
É no sofrimento humano que eu questiono a Sua existência; mas é também no sofrimento humano que, se calhar, eu tenho forças para gritar:"OH, meu DEUS, ajuda-me!"
Vejo, com este teu texto, quanto te feriu a morte do CATATAU. Sofremos ,nós, também, com essa tua dor. Mas a vida continua, LUÍS.
Às vezes, penso que Deus todos os dias "sopra"...Nesse "sopro", acontecem vidas e mortes, nascimentos e desaparecimentos.Quem se cruzar com esse "sopro", sofre, inevitavelmente,as consequências do seu estar "ali", "naquele preciso momento".
Insondáveis mistérios!
"Fomos feitos para a vida e para a alegria"-Palavras tuas ou de qualquer um de nós, transformado em narrador omnisciente?
A verdade é que rimos, choramos, emudecemos, mudamos a aparência...e todo o jogo histriónico, no final de contas, nos revela e nos desvenda, aos olhos de quem nos rodeia, meu amigo!
Publicada por Maria Ribeiro em 16:57
http://lusibero.blogspot.com/
"Ninguém morre sem deixar um sulco, um risco, uma sombra." e "porque não fomos feitos para a morte, fomos feitos para a vida e para a alegria", depois todas as reflexões em torno destas duas realidades fazem deste texto um peça de primeira água no campo dos sentimentos e das contradições da vida. Lindo!
Fabuloso o texto, como sempre Luís.
Parabéns e obrigado pela partilha.
White
A vida impõem-se tão inevitável como a própria morte...naquelas alturas de dor em que desejamos, com tanta intensidade, livrarnos do sofrimento e em que a morte aparece como a alternativa mais dignificadora...
O João enviou um mail...duas horas antes de se suicidar...
Deus?? não há deus que recomponha àquela família...
Igualo na minha dor essa menina de 5 anos, o Thiago de que falas, o nosso querido arqueólogo, a minha irmã e tantas outras pessoas anónimas e de todas as idae como referes neste texto com a tua inonfundível marca de qualidade literária. Por vezes penso onde Ele está?
Abraço-te nessa dor comum, Luís.
...Assegura que Ele está muito absorvido, num Todo tão imenso, que por vezes desampara pessoas para quem é a única entidade a quem podem pedir colo...
Dizer que um texto é brilhante quando trata deste tema, não me parece apropriado.
Por isso deixo-te um imenso e amigo abraço, muito apertadinho
Terrivelmente belo. Um texto brilhante !
iv
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