Sunday, May 17, 2009

e amanhã nem sequer falaremos disto…

Photo: Murdo MacLeod

Fiquei hoje triste comigo e, contudo, o dia afigurava-se sob os melhores auspícios. Como me tem sucedido noutros momentos fui vitima da minha propensão por dar importância aos detalhes e anuir à minha inclinação teorizante e à essência inofensiva e sem artimanha do meu carácter. Chego às vezes a considerar, com inquietude, se a inocência não será a figura trovadoresca de imbecilidade. Mas o ingénuo é comummente recuperável porque pode ser restabelecido pela actuação terapêutica da vida, ao passo que o néscio é irreparável porque a idiotice é uma enfermidade congénita que se agrava com o andar do tempo. Seja o que for, não consegui ou não quis uma vez mais moldar-me a certas realidades.

Tal como Byron também um dia gostava de dizer ter sido o poeta da minha própria existência. Prefiro ser o actor e inventor da minha vida, ainda que a mesma se confunda com um monólogo, uma peça num só acto, sem intervalos, nem palco, sem assistência, temporada de cansaço e sacrifício, espectáculo sem aplausos. É verdade que ao descer o pano procuro, desesperadamente, uma alma a quem possa explicar o enredo, partilhar as peripécias da peça, as razões da mesma; mas face a certas encenações vejo-me carregando às costas uma solidão que se deita comigo à noite na cama, depois de uma ou duas sessões onde fui o único actor em palco interpretando uma peça de Beckett.

Mas que venha um cigarro, um whisky e uma música vadia que não abrindo as portas do paraíso, obstruem um pouco a passagem que dá para o inferno. E, porque, amanhã nem sequer falaremos disto…

19 comments:

João Roque said...

Quem escreveu isto? Tu ou eu?
Decerto tu, pois só tu lhe saberias dar o envolvimento de palavras que é teu timbre e que é inimitável.
Mas poderia ter sido eu, tal a forma como me reconheço naquilo que aqui dizes...
Abraço grande, grande...

Je Vois La Vie en Vert said...

Amanhã é outro dia...

Beijinhos da

Verdinha

Tongzhi said...

O texto é muito claro, sentido, verdadeiro...
Mas será que por no dia seguinte não falarmos disso, não vamos aprender nada com o dia anterior???
Parece-me um pouco determinista...

João said...

Mas ainda bem que aqui deixam os desabafos e Aqui estamos todos nesta roda da vida, sós mas ligando-nos pelas palavras e dessas os sentimentos angustiantes...

Sejamos tolos e busquemos a felicidade nestas simples partilhas... E os outros connosco!

Um grande Abraço!

Daniel C.da Silva said...

Olá

"Prefiro ser o actor e inventor da minha vida, ainda que a mesma se confunda com um monólogo, uma peça num só acto, sem intervalos, nem palco, sem assistência, temporada de cansaço e sacrifício, espectáculo sem aplausos. É verdade que ao descer o pano procuro, desesperadamente, uma alma a quem possa explicar o enredo, partilhar as peripécias da peça, as razões da mesma; mas face a certas encenações vejo-me carregando às costas uma solidão que se deita comigo à noite na cama, depois de uma ou duas sessões onde fui o único actor em palco interpretando uma peça".

Curvo-me porque conheço o sentimento.

Abraço

com senso said...

Um actor que é simultâneamente espectador de si mesmo, perante uma solidão vinda do absurdo da vida, num jogo teatral que se vai repetindo!
Este é um texto antológico! Magnifico!

Paula Crespo said...

Nem todos os dias são felizes, nem todos os momentos imbecis, nem todos nós ingénuos. Mas às vezes lá calha. Para compor esta manta de retalhos que cobre a nossa vida e nos dita o tempo.

Unknown said...

Antes triste que néscio.Teoria, filosofia, poesia numa bela narrativa construída de forma sóbria e sensível. Como sempre...

Ana Paula Sena said...

Um texto sentido e cativante.

Por vezes, é preciso manter a pose e amanhã nem falar disso... :)

Eu ainda não consegui perder a ingenuidade, com todas as consequências que acarreta.

Obrigada, Luís!

tchi said...

Extraordinariamente sério este acto.

Espero a próxima sessão.

Beijinhos.

Violeta said...

Ficava aqui a ler-te todo o tempo. Aguardo o dia em que verei um livro nas bancas "Crónicas de um infinito pessoal.."
Escreves mesmo bem!

lusibero said...

A nossa solidão é a nossa companhia...E,às vezes, é melhor estar só, LUÍS. Actores e inventores da nossa vinda , isso sim!, entendo que o somos na medida em que somos nós quem toma as decisões!Ninguém decide por nós ,excepto o grande Senhor. Aceito conselhos ou outras visões dos problemas, numa atitude de humildade que pode levar à interajuda.Nós somos seres vulneráveis,Luís, Em crianças, não sabemos que a coisa tem esse nome...Só sabemos que acordamos para ir ao quarto dos pais ,à procura de alívio...Mas ao crescer,aceitamos, inevitavelmente, a vulnerabilidade.E chegamos à conclusão de que ESTAR VIVO É SER VULNERÁVEL!
BEIJITO DE LUSIBERO

Daniel C.da Silva said...

Apesar de já ter feito um respeitoso comentário porque "onde há dor o chão é sagrado" no dizer de Oscar Wilde, e por eu mesmo sofrer esse torvelinho de sentimentos (e muito amiúde), queria só realçar o comentário que leio da amiga Lusibero que, de facto, resume tudo:

"ESTAR VIVO É SER VULNERÁVEL".

É mesmo isso. Numa frase simples está dita toda a verdade.

Abraço

Maria Faia said...

"(...)não abrindo as portas do paraíso, obstruem um pouco a passagem que dá para o inferno."
Será que obstruem?!
Cá para mim, não obstruem coisa nenhuma porque o inferno é o palco em que todos os actores deste grande espectáculo vivencial representam e encenam vidas presentes que se queriam passadas...

Beijo amigo,

Maria Faia

firmina12 said...

Caro Luísa,
quando há monólogo não há solidão. é como termos um espelho, por companhia

lusibero said...

Luís, que é feito de si? Tenho saudades dos seus contactos...
Abfaço de lusibero

Anonymous said...

Amanhã já é hoje! Ainda vale falar disto? Dado que não tenho um cigarro nem um whisky e menos ainda uma música vadia; considerando a essência inofensiva e sem artimanha do teu carácter; convicto de que a inocência não se confunde com imbecilidade, … pensei que ainda poderíamos falar disto.

Sento-me no lugar daquela alma capaz de escutar a tua explicação do enredo, a tua partilha das peripécias da peça e as razões da mesma… No pressuposto de servir a aliviar-te a carga de uma solidão que não tem de se deitar contigo à noite na cama, mas pode simbolicamente estender-se no divã à luz do dia.

Aí mesmo, descontraído, és poeta da tua própria existência, onde os detalhes são importantes e a teorização pode clarificar as tuas próprias resistências a moldares-te a certas realidades, sem deixares de ser o actor e inventor da tua vida.

Prometo-te um aplauso – justamente merecido – que abre portas para o paraíso, superado o inferno de cansaço e sacrifício!

Mar Arável said...

Como disse um dia

sobe o pano

cai o pano

o tempo passa

Abraço

Anonymous said...

"Chego às vezes a considerar, com inquietude, se a inocência não será a figura trovadoresca de imbecilidade" - também eu. E ainda não fui restabelecida "pela actuação terapêutica da vida".

Mas cá vai "um cigarro, um whisky e uma música vadia que não abrindo as portas do paraíso, obstruem um pouco a passagem que dá para o inferno."

E amanhã será outro dia.