Sunday, May 24, 2009

the end of the affair...

'Gurudev' Rabindranath Tagore, (1861-1941) Man and Woman, National Gallery of Modern Art, New Delhi

Os barcos começaram a regressar à língua de areia da praia; o vendedor de gelados e línguas da sogra veio ao bar cavaquear com a empregada, como duas comadres de aldeia que comentam enredos de novelas de chular neurónios embaciados, mas enérgicas como se habitassem numa partitura de Gershwin. Levámos o nefasto domingo que nem cascos naufragados a arrastar-nos por bares matreiros, com música ambiente de comover porteiras e clubes de fãs de Tony Carreira, crucificados em cadeiras desconfortáveis, assistindo à encadeação de um dia grávido de chuva, cinzento, carregado, penoso, vendo as gaivotas e escutando a ventosidade dos pinheiros. Só no Woody Allen ou no Almodôvar suporto isto. Em solidão, observo a minha vida em câmara lenta e penso que é melhor acabarmos. Sinto-me como um cão vadio que uiva de noite, afectado pelo micróbio da desmotivação. Vou sair de casa. Naquele instante trouxe à memória tudo o que há meses arquitectava dizer porque descobri que já não gostava dela à séria, que fazia parte do passado o magnetismo dos seus olhos azuis e a raça puríssima dos seus traços, que talvez já não me fizesse falta, que sabia como aguentar-me à tona sem ela. Ela já não soa propriamente a Bach, a uma melodia que me faça voar e sentir. Sei que a descoberta do amor é um privilégio que os Deuses concedem a alguns. Pensava ser um dos eleitos. Enganei-me. Daqui a nada vamos regressar a casa – que é tão só um conjunto de legos dispersos, silenciosos – no carro, sem falar (o que há para dizer agora? nem sequer do The End of the Affair, de Graham Greene, por sinal o livro que dissecamos em conjunto naquele Clube de Leitura da Culturgest, quando nos conhecemos; ou da carta de Lytton Strachey que me custou um salário de assistente de história da cultura e das mentalidades na Faculdade de Letras de Lisboa num leilão em Hungerford e que lhe enviei em express mail, porque sabia que amava o poeta), tão longe um do outro que se por acaso nos tocássemos isso não significaria absolutamente nada.

Enquanto aguardava o elevador, abandonado com a mala, ela ficou à porta, como se eu fosse uma testemunha de Jeová ou a assistente do Circulo dos Leitores, apresentando um vago sorriso, de mão no puxador, com as crianças a espreitarem por detrás com overdoses de curiosidade estampadas nos rostos. Para onde é que o pai vai? Perguntou a Teresinha e todo o sangue se me gelou num corpo enrugado por dentro.
Luís Galego

11 comments:

João Roque said...

É terrível quando de vez em quando se chega a um beco sem saída...
Abraço.

Violeta said...

"Sei que a descoberta do amor é um privilégio que os Deuses concedem a alguns"
E felizes os que são amados.
Como sempre adorei o texto, encanta-me a tua forma de escrever.

Lana said...

Olá Luis,
embora não escreva no meu blog há mais de 4 meses visito este teu com muito gosto.
e concordo com o bloguista anterior, quando se chega a um beco sem saida é terrivel e, por isso aconselho sempre a ouvir o silêncio interior, esperar e só depois agir...
A profundidade, a cultura e o gosto que aqui estão depositados são imensos.
muito obrigado pela partilha.
mais uma vez, um sorriso mto luminoso e até breve.
Lana

Daniel C.da Silva said...

Outro texto (que presumo ficcionado)mas onde a tua vertente literária está sempre consubstanciada numa maneira muito bonita de escrever.

"Só no Woody Allen ou no Almodôvar suporto isto. Em solidão, observo a minha vida em câmara lenta e penso que é melhor acabarmos."

ou

"Sei que a descoberta do amor é um privilégio que os Deuses concedem a alguns. Pensava ser um dos eleitos. Enganei-me."

São apenas duas passagens bem descritas daquilo onde a imaginação nos leva tornando a escrita ainda mais atraente.

Abraço

com senso said...

De cada vez que aqui passo, fico sempre dividido sobre se o que me prende a estes textos é o cativante interesse do seu conteúdo, ou se são o brilho e beleza do seu estilo.
No caso concreto desta magnifica prosa, vêm-me à memória Eugénio de Andrade: "... dentro de ti, já não nada que me peça água..." e Vinicius: "Que o amor seja infinito enquanto dure".
É muito triste perceber que, algo que já foi muito belo, se tornou apenas objecto de arquivo nas nossas memórias.
É magnifico, por outro lado, encontrar textos tão luminosos sobre momentos tão sombrios, com os quais, infelizmente, todos nós, um dia, nos podemos confrontar!
Um abraço.

Vulcano Lover said...

que bons estes relatos teus, caro... embora não te diga nada, leio-os todos e gosto sempre imenso.

Maria Ribeiro said...

Ficcionado ou não, o teu texto,Luís, retrata milhões de situações comuns. Revejo uma parte da minha vida nessa solidão de agonia e estertor de sentimentos, que de amor se transformaram, no meu caso, em ódio, eu que não odeio ninguém!Mas quando o advogado me mandou sair de ao pé "dele", levei comigo o Tó e a Susana!Eram meus,acima de todos, que os gerei no ventre e os pari,com dores de amor e lágrimas. Depois disso,sim!-comecei a ouvir vozes de um mundo grandioso e gravei na minha história trechos de BEETHOVEN, de BACH, de VERDI...
Beijo de lusibero

Maria Ribeiro said...
This comment has been removed by a blog administrator.
lusibero said...

Luís:só agora reparei que o comentário que fiz ao seu texto pode ser interpretado como estando a dar razão à tal "Ela"...Peço perdão por isso, se o feri!Mas como homem inteligente que é, sei que entendeu que apenas me referi à situação específica do meu caso pessoal de divórcio ,que nada tem a ver com uma ficção,que ,por acaso, retrata situações reais.
Beijo de lusibero

O Puma said...

A vida é um ciclo de marés

vivas

Na verdade tudo se move

até as pedras

São said...

Uma feliz descoberta a desta escrita!

Na barra lateral, pessoas que também admiro : João Perry, Diogo Infante, Maria João Luís, Luís Miguel Cintra...faltam , por exemplo, João Mota Emília Correia.

Saudações.