Saturday, June 13, 2009

sou a expressão das minhas mãos...

(Threesome (1944), Felix Nussbaum [1904-1944])

Passei a tarde inquieto. Quando me pus embriagado a observá-lo, recompus-me um pouco. A sua mão morena esguia assenhoreou-se da dela e quando ela entontecida lhe rumorejou qualquer coisa ao ouvido toldou-se para ela com um rompante de comoção. Penso que nem sequer eram os olhos dela, tons de pedra rara, mas sim a voz, com aquele ardor febricitante e movediço, o que mais o atraía, porque inultrapassável pela ficção – aquela voz rouca era uma dádiva dos deuses.
Já se tinham esquecido que eu estava ali, mas Bárbara ergueu os olhos e pegou nas minhas mãos franzinas de madona florentina, beijando-as docemente; Henrique é que parecia ter-se esquecido agora completamente de mim. Olhei uma vez mais para eles e eles devolveram-me um olhar longínquo; desfrutavam de uma paixão desmesurada.
Então deslizei, devagarinho, do restaurante e desci a escadaria, debaixo de um sol ainda forte, deixando-os sozinhos lá dentro, pensando nos versos tristes de uma poetisa que outrora tanto desprezara: “Beija-mas bem!...Que fantasia louca/Guardar assim, fechados, nestas mãos/ Os beijos que sonhei prá minha boca”.
Luís Galego

12 comments:

João Roque said...

Fiquei curioso em saber quem é a poetisa...
Abraço.

Unknown said...

Tridimensional, este sentir!!!!

Um texto muito bem construído!!!!

É sempre um prazer ler o que se escreve por aqui!!!!

"brigados" pela partilha que nos é oferecida.

Maria Ribeiro said...

O narrador (omnisciente!) "deslizou"(...)deixando-os sozinhos no restaurante...com uma certa ,saudável, inveja, -quem sabe?-É que esse amor que ele presenciou com os olhos e com os sentidos, é, quanto a mim , a antítese do amor referido no teu anterior texto...Esse tem um momento certo para acontecer e se é verdade que AMAR é dar-se, integralmente,há que ser suficiente /humanamente sábio para reconhecer que as mãos que se apertam, com cumplicidade não são as de uma qualquer "Isabel"...
Estou a teu lado, meu maior Infinito Pessoal...
BEIJO DE LUSIBERO

AnaLee said...

Florbela Espanca, é claro.
O texto é, como sempre, uma dádiva.
Só me assombra uma pergunta: Como é que alguém cheio de sensibilidade artística pode "desprezar", ainda que apenas outrora, a poetisa Florbela Espanca?

Tongzhi said...

AMIGA

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.


Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho…
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho…

Beija-me bem! … Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prá minha boca! …

Violeta said...

Florbela Espanca pois claro!
há muito que não me lembrava deste poema.Como sempre, texto profundo e cheio de sensibilidade.

AnaLee said...

Não me parece que o infinito seja blogue "dado" a prémios; ainda assim arrisquei.
Não "ofendo" se não o for buscar... :)

Raí Pereira said...

Sensível sempre....obrigado pelas visitas meu caro Galego!!!!!
Beijão cara...

Paula Crespo said...

Este "voyerismo" inocente acaba por ter algo de sombrio: o sol fica nos outros, nos que detêm a paixão...;)
Adorei o poema (e o texto, claro!) :)

Penélope said...

Senhor Galego, tive a ousadia e curiosidade de conhecer seu blogger, pois possuo um com o nome muito parecido "Infinito Particular". Nele escrevo poemas, faço citações e algumas confissões pessoais sem preocupar-me com conceitos, preceitos ou preconceitos.
Achei suas escrituras de uma elegância ímpar... de um bom gosto extremo.
Passe para fazer uma visita pelas minhas páginas, românticas, porém muito realistas.
Abraço

Mar Arável said...

Um cristal de sensibilidades

o seu texto

Abraço meu amigo

Anonymous said...

A pintura deliciou-me! Não conhecia!