Saturday, November 28, 2009

a medula da alma...

Antes de tudo a música, reza um belo verso de um filósofo português contemporâneo quase desconhecido e prestes a ser tão só descoberto nos alfarrabistas do Chiado. A música é um vicio solitário que atingindo a medula da alma tem-me amparado muito nos últimos dias, feito sonhar acordado enquanto não chega a decisão, permitindo reconquistar as palavras e as suas avenidas como se fossem aromas, tem ajudado a suportar o futuro adiado para além do limite admitido. No intolerável do tempo, a música tem desenhado clareiras iluminadas de expectativa. Escuto-a em silêncio, em atitude de humilde entrega e são meus versículos Brahms, Liszt, Mozart, Schubert, Schumann, entre tantos.

É de noite, meu amor, e a rádio transmite Mara Zampieri, o carácter incisivo e mordente de um timbre divino, em que se percorre o acumular das esperanças mais exageradas, se vislumbram os momentos de paz, no meio da tempestade, do armistício com o infortúnio, se adensa subitamente a luz e se alastra a ternura, para depois dar lugar à violência da angústia.

É de noite e a música é a minha companheira, o meu altar. A arte sagrada, como assevera a personagem do Compositor em Aridane auf Naxos de Richard Strauss.

São quase cinco da manhã, meu amor, e a rádio em noite de boa conjugação astral insiste em chorar lágrimas tão desesperadas como as minhas, em convidar uma partita de Bach, um improviso de Chopin, em confrontar-me com os grandes pianistas Brendel, Gould, Horowitz, Michelangeli, Pollini, Richter, e porque não deve existir misoginia na música – nem na vida – com Maria João Pires e Martha Argerich.

Só de noite, meu amor, tenho espaço para ouvir, de copo na mão, o Benedictus da Missa Solene de Beethoven, nas vozes singulares de Janowitz, Ludwig, Wunderlich, Berry; ou o Libera me do Requiem de Verdi, obra em que a deusa Schwarzkopf me murmura sábios segredos.

É tão de noite e entre goles de café a escaldar continuo agasalhado numa rádio que transmite D’ amour sull’ ali rosee. Tudo o resto, amor, é tão mesquinho…
Luís Galego

Imagem aqui.

17 comments:

Minhas Impressões said...

Caro Luís,
A música, para mim, é como pontos equidistantes de uma fogueira que queima dolorosamente nossa alma e as mãos pequeninas de uma inocente criança a enxugar nossas lágrimas.
Belíssimo!
Grande beijo, Poeta

Ricardo Passos said...

Texto soberbo, caro Luís.
Atrever-me-ia a dizer, quem dera fosse sempre de noite; altura em que o branco da alma, assim como o luar, é invadido pela constelação da emoção e todos os sentidos se apuram, para sentir o despertar do brilho das mais longínquas estrelas.
Também eu não sei pintar sem música.
Abraço

AnaLee said...

Musica Luís, são sempre os seus textos, mesmo os mais doridos!

Nuno Guronsan said...

Fico sempre arrebatado com os sentimentos que a música provoca em mim. Mas ler os efeitos dessa bela arte em outrém também pode ser uma experiência muito boa, para além de mostrar aquilo que pode unir diferentes pessoas em diferentes momentos. Independentemente dos tipos de músicas que vamos ouvindo.

Bonito texto, Luis.
Abraço.

Violeta said...

E se não fosse a música as noites seriam mais frias, tristes e longas e os dias eternamente invernosos...
Boa semana.

Tongzhi said...

O conforto da música...

Paula Crespo said...

A música aquece a alma, sem qualquer sombra de dúvida. A minha dúvida é se essa alma angustiada é mesmo a tua, a própria, ou somente uma outra, virtual...
Bjs

Unknown said...

Música!!!!
Sim.Sempre música.
A que os compositores souberam (re)criar ou transpor para outros ouvidos...
a que nos diz sentimentos únicos...a que nos conforta...a que nos agride...a que, deliberada e ostensivamente,usamos para nos esconder...
sem ela...a inexistência total!!!!

Boas Músicas!!!!

Anonymous said...

Estremeço na medula da alma ao pensar em como a música pode ser companheira e altar.

A companheira faz companhia, alimenta uma fome de presença [cum-panis], apossa-se e aconchega no espaço usurpado pela solidão.

O altar serve ao sacrifício, à imolação, ao dom cruento.

Pobre música, depois de desflorada e usufruída, é vazada num rito sacrificial como despojo de um gozo na calada da noite. Sim, porque só de noite tem espaço para ouvir, de copo na mão, aquela que depois depõe sobre a ara incensada com murmúrios presumidamente sábios e secretos. Embebido em noitada assim, é claro que tudo o resto só podia ser mesmo mesquinho.

Vá lá saber-se por que há-de um homem como o senhor Luís Galego sussurrar ao amor como solitário melómano abafado numa rádio!

E pobre música, vitimada numa espécie de culto com carácter pretensamente incisivo e mordente de um timbre divino.

Anonymous said...

Perdão!
Devo-lhe, a si, senhor Luís Galego, um pedido de desculpa e de indulgente compreensão sobre algumas das minhas palavras, confessando-lhe que eu também muitas vezes sussurro ao amor como um solitário melómano… em desabafadas ternuras trauteadas de viva voz.

Uma voz, admito, que só um complacente carinho e uma indefectível paixão fazem que eu seja ouvido sem gemido nem fadiga. Bendita ouvinte nas minhas noites de copo na mão saborosas e graciosas.

MrTBear said...

Como sempre tenho de me demorar um pouco mais pro aqui para apreciar devidamente.
Abraço

MrTBear said...

Queria dizer... saborear as palavras

Luís Costa said...

Estimado Luís,

por aqui vou passando, raramente deixando comentários, mas sempre lendo-te com admiração. Excelente texto! E o título " Medula da alma " é simplesmente belo.

Um abraço:

Luís

Gabriela Rocha Martins said...

gosto deste estar aqui

LENDO e
( brincando com as palavras )


fechei a porta .é preferível nos dias que correm



.
um beijo

CarpeDiemaria said...

Quando não queremos entregar às palavras aquilo que nos vai na alma, que mais nos resta senão a música?
Diria mesmo que há algo de divino nesta forma de expressão artística!

com senso said...

Um regresso à blogosfera que saúdo com entusiasmo, pois prosas magnificas como estas não as encontramos todos os dias.
Aqui fala-se de solidão e de uma companhia especial, uma espécie de banda sonora de um determinado estado de alma!
A música tem o condão de nos alimentar o espírito e de paracer alimentar-se dos nossos sentimentos mais íntimos e profundos.
Isso mesmo aqui está belíssimamente colocado num texto brilhante e de uma densa leveza que nos faz apetecer mais e mais.
Um abraço e um Feliz Ano Novo

Ana Maria de Portugal Lopo de Carvalho said...

Lindo texto onde se pode sentir com transparência a transversalidade das artes nas múltiplas e sensíveis emoções criadas nos leitores...
Pura ARTE!

@n@m@ri@