Saturday, November 21, 2009

o perfume da Rua das Pretas...

Ao início da tarde desliguei o telemóvel para respirar melodia com um programa refinado e intemporal: Novembro é uma árvore frondosa para usufruir a área musical, não me perguntem porquê. Mergulho em Jessye Norman, John Cage, Dvorák, Vicente Celestino Heckel Tavares, Hans Joachim Koellreutter. No silêncio diurno, a luz fraca, encontrei-me envolto nas trevas do exílio onde o medo impera e embalo a própria dor. Senti deslizar por baixo das minhas pernas a única presença possível, o fantasma de uma casa onde chove sem parar há tantos anos. Era o Elliot com a sua linda cauda, a sua ternura enigmática, transportando o seu íntimo pudor e a sua linhagem mística de felino, e não pude expulsar o arrepio de estar tão só acompanhado por um velho gato e com sonhos que não conto a ninguém.

Quando bateram as oito na igreja, havia uma estrela no céu, realidades deslumbrantes da noite, um barco projectou um adeus solitário, senti na garganta o estrangular de todos os amores que podiam ter permanecido e não sobreviveram e tremi ao sentir como eu era inocente. Não aguentei. Agarrei no telemóvel com o coração a estremecer até à raiz do braço, marquei o número muito lentamente. Olá, disse-lhe com a voz trémula: Desculpa-me, uma vez mais. Ela, serena, voz doce, sem disfarce: Não se preocupe, estava à espera do seu telefonema. Avisei-a: Quero que esperes vestida e que assim fiques enquanto estivermos juntos. Ela deu uma gargalhada espontânea mas na sua voz dançava um desafio. Como quiser, disse, mas meu corpo arderá para si no lusco-fusco, como todos os homens gostam. Eu sei, disse-lhe: Eu desejo apenas uma mulher com quem beber e morrer, segurando a minha mão, e nisso demorar os frágeis instantes a que um cliente tem direito.
- Com certeza – disse –, então não demore, não se perca pelas ruas frias.
Luís Galego

Imagem retirada aqui.

10 comments:

Anonymous said...

Muito belo este texto, será o começo de um futuro romance de sua autoria?
Oxalá..
Um abraço
Lucy

Minhas Impressões said...

Realmente, muitas vezes o que queremos é tão somente uma mão que nos segure e um bom par de olhos a descobrirem nossas profundezas mais íntimas, as quais, nem mesmo nós, senhores delas, as conhecemos.
Mais são raras as pessoas que façam tais ofertas destas tão desejadas mãos e destes tão sonhados olhos...
Absolutamente triste!
Grande beijo, Poeta

AnaLee said...

Poesia envolta em suspense...

Violeta said...

E para quando um livro teu?
bjs

BlueVelvet said...

Que beleza de texto.
E veio mexer com os meus fantasmas.
Morrer sozinho!
E como deve ser triste ter que pagar a alguém para nos dar a mão nesse momento que é o mais solitário na vida de um ser humano. Esse, e nascer!
Vim também dizer-te para ires lá a casa. Sei que não usas prémios, mas pelo menos unzinho que escolhi só para os blogs especiais, podias trazer.
Beijinhos Luis

Virgínia do Carmo said...

Eu penso que pegar na mão de alguém é talvez o mais sublime gesto de ternura... Talvez porque nas mãos moram as linhas da vida... talvez porque com elas limpamos lágrimas... talvez porque através da sua pele se atravessam silêncios que terminam na alma...

Gostei muito do texto.

Pedro Gamboa said...

Eu sei que é tão dificil...
Espero tantas noites, sempre o mesmo ritual, abro um bom vinho sirvo dois copos destranco a porta se sento-me.
Fico então assim à espera que alguém irrompa pela minha sala dentro sentando-se à minha frente bebendo aquele agradável vinho dizendo-me que posso piscar os olhos demoradamente que ela vai continuar ali...

Sylvia Beirute said...

gostei deste misto de prosa e poesia:)

S.

Anonymous said...

Ao ler - «quando bateram as oito na Igreja» - ocorreu-me que fossem umas "beatas" a incomodar o celibatário inquilino daquele divinal lugar. Depois, li que o personagem não se aguentou, agarrou no telemóvel e marcou o número lentamente. Duvidei por uns brevíssimos instantes se teria sido para uma daquelas oito que bateram na Igreja, falando-lhe com a voz trémula.

Apressadamente desfiz tão atabalhoado pensamento, pois tal afronta não era crível à minha piedosa sensibilidade, e passo a explicar porquê. É que, segundo o meu sacrossanto entender, «quando bateram as oito na Igreja» só podia ser por religiosas razões, porventura para acender oito velas ao santíssimo e nunca para colocarem os seus corpos a arder no lusco-fusco, como todos os homens gostam. Aliás, tenhamos alguma sensatez e reflictamos sobre o que significaria, do ponto de vista da fenomenologia das religiões, uma tal visão para o olhar do venerável inquilino.

Veja-me bem, senhor Luís Galego, quanto um leitor descuidado pode incorrer em falso ao interpretar com desleixo o seu «perfume da Rua das Pretas...». Por isso, penitenciei-me relendo vezes sem conta, até à náusea, a sua história.

Agora, recomposto do meu sentimento de culpa, permito-me sorrir sobre a fantasia de que, «quando bateram as oito na Igreja», fossem mesmo elas, serenas, vozes doces, sem disfarce!

Nos tempos que correm…!

Gabriela Rocha Martins said...

por portas travessas acabei por entrar .sentei.me e mui lenta mente fui degustando as palavras que estavam sobre a mesa .tomei.as como minhas e após uma leitura atenta ,voltei a colocá.las na mesma posição e lugar .amanhã voltarei para revisitá.las .talvez um pouco mais acima .não interessa .sei ,apenas ,que gostei de encontrá.las

muito

posso deixar a porta aberta para ser mai fácil o regresso?
obrigada



.
um beijo