Madalena dança num trapézio sem rede mas ama o marido mais do que tudo no mundo. É isso que ela diz – a toda a gente, ao psiquiatra, até aos estranhos – e gosta de o afirmar. Esta convicção é acompanhada por uma inquietação muda e por uma fictícia compostura da voz. Pretende provar que ama o homem com quem vive mais do que nunca. Evita olhar frontalmente pois teme detectar a mais leve dúvida nos olhos do médico que a segue. Teme que o clínico consiga auscultar-lhe o espírito através das múltiplas camadas do seu semblante e que destape os diferentes rostos escondidos por trás das máscaras. Receia que a verdade salte, irreprimível, da sua face, porque quando se procura amordaçar a realidade para que não fuja pela palavra ela tende a escapar pelo olhar.
Madalena é magistrada e a barra do tribunal é para ela um rio que corre mais rápido. É uma mulher cautelosa e tem um enorme sentido de equilíbrio e do limite das coisas. Pensa antes de falar e é atenta, controlada, pulso firme. Parece fria e conservadora e não consegue rir-se de forma espontânea. Aguenta-se à beira do abismo sem cair. Contêm-se e não se atreve a ceder aos seus próprios desejos. Nem às necessidades do organismo – necessidades tais como recostar-se numa cadeira, ou fechar os olhos quando se sente cansada ou com sono. Tem a mente constrangida por regras, considerações, precauções e interrogações. Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície. Carrega às costas um pânico que se deita à noite com ela na cama. Ela sabe que o marido é feito de matéria diferente, uma sensibilidade estranha em carne viva, coração desgovernado, colérico quando contradito e tem que ser constantemente compreendido. São assim os homens, dizem-lhe.
A separação amputa-a, ainda que tenha vivido com ele as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mas a única alternativa é fugir. Faz a mala e escreve um bilhete, explicando que está doente, que vai ausentar-se por alguns dias, e que depois explica tudo. Por agora, a única coisa que pode fazer é sair e pedir colo ao universo.
Madalena segue no seu carro, conduzindo lentamente pela marginal e o mundo está sossegado. Não tem qualquer destino em mente e já nem o peso de um remorso, apenas um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Gosta de conduzir ao acaso, de viajar em direcção ao desconhecido, sem necessidade de etapas frenéticas. Desce a tarde lenta e as lágrimas correm-lhe pela cara, e não são de tristeza. Baixa o vidro da janela do condutor e o sol daquele primeiro dia de Outono brilha-lhe sobre as nódoas negras esculpidas no braço. Sente que pode recomeçar a viver.
Luís Galego
Madalena é magistrada e a barra do tribunal é para ela um rio que corre mais rápido. É uma mulher cautelosa e tem um enorme sentido de equilíbrio e do limite das coisas. Pensa antes de falar e é atenta, controlada, pulso firme. Parece fria e conservadora e não consegue rir-se de forma espontânea. Aguenta-se à beira do abismo sem cair. Contêm-se e não se atreve a ceder aos seus próprios desejos. Nem às necessidades do organismo – necessidades tais como recostar-se numa cadeira, ou fechar os olhos quando se sente cansada ou com sono. Tem a mente constrangida por regras, considerações, precauções e interrogações. Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície. Carrega às costas um pânico que se deita à noite com ela na cama. Ela sabe que o marido é feito de matéria diferente, uma sensibilidade estranha em carne viva, coração desgovernado, colérico quando contradito e tem que ser constantemente compreendido. São assim os homens, dizem-lhe.
A separação amputa-a, ainda que tenha vivido com ele as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mas a única alternativa é fugir. Faz a mala e escreve um bilhete, explicando que está doente, que vai ausentar-se por alguns dias, e que depois explica tudo. Por agora, a única coisa que pode fazer é sair e pedir colo ao universo.
Madalena segue no seu carro, conduzindo lentamente pela marginal e o mundo está sossegado. Não tem qualquer destino em mente e já nem o peso de um remorso, apenas um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Gosta de conduzir ao acaso, de viajar em direcção ao desconhecido, sem necessidade de etapas frenéticas. Desce a tarde lenta e as lágrimas correm-lhe pela cara, e não são de tristeza. Baixa o vidro da janela do condutor e o sol daquele primeiro dia de Outono brilha-lhe sobre as nódoas negras esculpidas no braço. Sente que pode recomeçar a viver.
Luís Galego
15 comments:
Wow. Powerful.Quantas de nós já tivemos na pele dela, mas sem coragem para partir ?
Uma realidade que, felizmente, não conheço de perto ( que eu saiba). Muito bem escrito, como sempre, tacteando todos os pontos sensíveis da situação.
Um abraço
Rosário Alves
Estes seus contos, tão bem escritos e explícitos a todas as camadas sociais, dão uma muito agradável sensação da sua grande( ENORME) sensibilidade Luís.
Nem sei bem o que dizer, sobre esta mulher que pensa ou não pensa, ou é inteligente ou o não é...mas muitas o passaram, sei, por experiência de profissão e sei como lhes fazem bem os meus conselhos, sem que me misture nos sentimentos do casal. Não podemos mostrar cumplicidade...mas dizer, afirmando que isto não é AMOR, mas sim e apenas acomodação!... Fez o que deveria, penso, e desejo que encontre alguem que a faça ser ela própria, sem refugios e sem conturbações na sua consciência.
Amar é bom demais, mas nem todos sabem o que é!!!...
Adorei uma vez mais lê-lo, e estarei sempre atenta a mais um conto, pois é um gosto enorme absorvê-lo!!!...
PARABÉNS Luís.
De onde te vem essa sensibilidade, questiono-me! Conheço poucos homens com essa capacidade de observação/atenção/compreensão do universo feminino.
Provavelmente, és um homem admirável??!!
mais um texto excelente. Um abraço
Fernanda Guadalupe
Só hoje dei-me conta que ainda não havia visitado o Portal da Literatura. Nem "me toquei",como
dizemos por aqui, que algo de muito bom me aguardava!Entrei aos poucos, lentamente, umbral por umbral, e a cada porta que abria, a
cada janela que descerrava, fui vislumbrando como que um algo de novo,mas de familiar também;um familiar para o qual não havia percebido antes.Deixei algumas portas por abrir, porque não conseguí descobrir(ainda)como abrí-las.Terei que voltar lá outras vezes. Desconfio que nem tudo me será sempre familiar mas tenho certeza que encontrarei algo que me será totalmente novo. Já percebí que há um longo caminho a ser percorrido,e muito, mas muito mesmo!, para aprender...
E la nave va...sempre buscando.
Um grande abraço
Fantástico!
Comovente!
Maravilhoso!
E, infelizmente, real!
Obrigada
Não estou bem certo, mas parece-me já ter encontrado noutros textos teus, descrições de outras Madalenas, que apenas vão completando a figura de uma só mulher; estarei enganado?
Gostei muito. Acontece muito, infelizmente, mesmo que sem violência física, não é só essa que amarfanha o ser... e tb ao contrário, ou seja da mulher sobre o homem o exercído de um poder esmagador da identidade... há muitas formas subtis de dominar.
Para o meu gosto, este texto é um dos melhores que ultimamente tens escrito. Muito bom!
Um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Pois essa será certamente a razão para correr a buscar colo ao universo.
A juiza vítima de violência doméstica e a fugir?
Deus do céu , que estamos entregues!!!
Quantas Madalenas, a pedir colo ao universo !!
Adoro a sua escrita.
bjs
E que grande é este circo onde inúmeros trapézios sem rede, de que falas, vão e vêm sem holofotes.
Aos poucos, o colo do universo vai tomando consciência que precisa de crescer para acolher quem salta, na escuridão, que é certamente mais luminosa que o conforto de uns braços desconfortáveis.
Mais um magnífico conto, que escarafuncha de forma brilhante as realidades desta sociedade.
Parabéns Luís
É um prazer renovado ler os teus textos. Obrigado Luís.
Está um texto muito elegante e astuto, mas nada na vida é assimtão simples, pois cada "short" tenha várias máscaras, várias falhas, um contexto vasto e tantas vêzes complexo...mesmo assim, cintila de fragmentos de uma crua realidade
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