Nestes dias meteorologicamente imprevisíveis com que os Deuses devastam e enchem as nossas existências, os sentidos ficam enigmáticos como se comemorassem o dia das depressões sincopadas. Acendemos um cigarro, para que o calor do lume nos reconforte. Mesmo dentro do quarto fechado, escutamos o jogo de relâmpagos, o mar de folhas quando o sono sob o rumor da chuva se desfaz e olhamos líricos através da janela embaciada. Quando ouvimos a água bater nos vidros, sentimos o som de violinos por todos os lados mas também o canto alucinado do vento. O tempo contorcionista cobre o céu que se enche de lágrimas, dói de tanta perfeição e até pode ser que o vendaval um qualquer dia venha no lusco-fusco repousar em nossas casas. O tempo é assim, uma história pungente aumentada. É um poema que se oferece à nossa frente. Mas tudo dura pouco. De rompante, o sol reaparece, limpa-nos as olheiras e resta apenas o peso das pingos sobre a sabedoria melancólica das árvores e da acácia que ainda se atreve a trazer ao cimo a folhagem. Tudo em breve desaparecerá e fica em nós a morder-nos um segredo.
Chego à janela e persigo com o olhar a mulher que passa na avenida como um pássaro esquivo. Tem porte altivo, nos seus cabelos parece habitar uma tempestade e nos quadris dançar um desafio, com qualquer coisa de orquídea brava. Solidão é o único luto que põe, sem nenhum motivo de pranto. Compra todos os dias o jornal. É esse o pretexto para sair de casa e correr a avenida, o seu palácio sem porta. Aquele trajecto até ao quiosque encanta-a mais do que as frequentes idas a Bruxelas do seu senhorio. Passa tanta vez naquela estrada, naquele caminho onde ilude o universo. O percurso que o senhorio faz obriga-o a correr a uma velocidade que lhe destroça a viagem, enfrentando um vazio que lhe dá guarida profissional. Ao contrário, a inquilina faz aqueles passeios diários como quem ousa um novo passo de dança. A avenida arrebata-a como se entrasse no paraíso sem ter que achar a portaria. Sente o mundo pulsar na pele e quebrar o vidro do dia. Descobre sempre cristais. Olha o céu, o chão e a cor daquela velha avenida de Lisboa. Põe tanto azul naquele trilho que todos os sinais, todas as presenças, todas as ausências lhe contam uma história e ganham um sentido.
A chuva passa. A mulher continua a caminhar para casa. Antes de entrar, vê o vizinho das águas-furtadas sair com uma ruiva quase incriada. Beijam-se, morrendo na boca um do outro, beijos que apetece roubar, enrolados numa paisagem silenciosa em cúmplice harmonia. A mulher reparou e aqueles frágeis momentos foram sobrenaturais, o sinal de também ela ter existido carnalmente. Sobe os degraus mas a vida parece-lhe mais leve que a sua própria sombra. Despede-se da avenida como de um cavaleiro branco, príncipe secreto da aventura. Acha que o mundo se confunde com uma plataforma instável, mas ao pensar isso abre-se-lhe o sorriso de quem crê na simplicidade das coisas…
Luís Galego
Ver imagem aqui (Fear and Faith, John Lautermilch)
Chego à janela e persigo com o olhar a mulher que passa na avenida como um pássaro esquivo. Tem porte altivo, nos seus cabelos parece habitar uma tempestade e nos quadris dançar um desafio, com qualquer coisa de orquídea brava. Solidão é o único luto que põe, sem nenhum motivo de pranto. Compra todos os dias o jornal. É esse o pretexto para sair de casa e correr a avenida, o seu palácio sem porta. Aquele trajecto até ao quiosque encanta-a mais do que as frequentes idas a Bruxelas do seu senhorio. Passa tanta vez naquela estrada, naquele caminho onde ilude o universo. O percurso que o senhorio faz obriga-o a correr a uma velocidade que lhe destroça a viagem, enfrentando um vazio que lhe dá guarida profissional. Ao contrário, a inquilina faz aqueles passeios diários como quem ousa um novo passo de dança. A avenida arrebata-a como se entrasse no paraíso sem ter que achar a portaria. Sente o mundo pulsar na pele e quebrar o vidro do dia. Descobre sempre cristais. Olha o céu, o chão e a cor daquela velha avenida de Lisboa. Põe tanto azul naquele trilho que todos os sinais, todas as presenças, todas as ausências lhe contam uma história e ganham um sentido.
A chuva passa. A mulher continua a caminhar para casa. Antes de entrar, vê o vizinho das águas-furtadas sair com uma ruiva quase incriada. Beijam-se, morrendo na boca um do outro, beijos que apetece roubar, enrolados numa paisagem silenciosa em cúmplice harmonia. A mulher reparou e aqueles frágeis momentos foram sobrenaturais, o sinal de também ela ter existido carnalmente. Sobe os degraus mas a vida parece-lhe mais leve que a sua própria sombra. Despede-se da avenida como de um cavaleiro branco, príncipe secreto da aventura. Acha que o mundo se confunde com uma plataforma instável, mas ao pensar isso abre-se-lhe o sorriso de quem crê na simplicidade das coisas…
Luís Galego
Ver imagem aqui (Fear and Faith, John Lautermilch)
20 comments:
ADOREI Luís!!!
Com que simplicidade as coisas são narradas, para bem se compreenderem e nos encherem as almas, os sentimentos!...
Emocionante a descrição das forças da natureza e das profundas sensações, outrora vivenciadas...
PARABÉNS Luís.
Obrigada por me ter feito sentir!!!
Beijo.
ctg reaprendi a gostar de maçãs.....................
Elas caem tão azuis da tua escrita k é impossível não kerer morder......
Priscila
AGORA SOU EU QUE DIGO............que belo poema!
Sorve-se de um só folêgo!
Onde se inspira Luís?
Comentar a sua escrita é tocar sempre de forma incerta o que por tão perfeito e belo, não deve ser tocado.
Não o farei por isso, releio e saio sob esse encantamento das palavras belas e perfeitamente encadeadas.
Há contudo um pensamento que me assalta : aonde apreendeu a decifrar assim as almas das mulheres?
Desde a que só, segue com o seu olhar, nessa Avenida, à inquilina para quem é azul a mesma Avenida ....
E eu que acreditava que nós mulheres tínhamos corpo, mas alma indecifrável às mentes do homens ....
Cumprimentos
Mais um momento de magia, onde as coisas simples e banais da vida são transformadas em momentos de subtil beleza, fazendo-nos esquecer o mau tempo que por vezes nos assola. E tudo se torna límpido e cristalino.
Um abraço
Caro amigo Luis,
Gostei imenso do teu texto tal com gostei da belíssima pintura desta senhora com o rosto cheio de rugas retratando a dureza da vida.
Beijinhos
Verdinha
Também compro o jornal nesta avenida :)
Tudo no sitio onde mora a sedução...até o baton vermelho que mordisca a boca do vizinho
D*
Muito Bom, Luis!!
São realmente as pequenas coisas da vida em que diariamente tantos de nós passam sem dar importancia, as mais Belas da nossa existencia...
Obrigada por teres partilhado!
Beijinho
Simplesmente: lindo.
Obrigada, Luís.
A magia de ao olhar pela vidraça ver nas pequenas coisas que sempre nos costumámos a ver, algo que está para além... A imaginação funde-se e transforma-se no nosso conhecimento.
Mais uma vez aqui, Luis Galego nos mostra como se sente e pressente o mundo com um único olhar, como com um voo da imaginação e a mestria no uso das palavras nos faz entrar num paraíso cosntruído a partir do quotidiano, que de simples passa a arrebatador.
Mais uma vez magnifico!!!!
Lembrei-me de quando tinha o privilégio de ouvir a sinfonia da
chuva sobre os telhados a ninar-me
para dormir um sono gostoso e aconchegante; lembrei-me do medo
dos trovões e relâmpagos a riscar
os céus e a trespassar portas e janelas;lembrei-me de Beethoven e
de sua "Pastoral". Acendí um cigarro e continuei acompanhando
aquela senhora em seu trajeto em busca de algo novo e surpreendente
como aquele beijo ardente. E de repente começou a chover por aqui.O vento invadiu-me pela janela, arrastando folhas de papel, lápis e sonhos. Dei-me conta de que estava, mais uma vez,
diante de um de teus maravilhosos
textos, que sempre me transportam
para "além da Taprobana"!
Um grande abraço
A complexidade do simples
com palavras belas que nos
transportam como um rio
que ainda corre para o mar
Abraço amigo
Mais um belíssimo texto do Luís que renova sempre o prazer da leitura. Ou como a partir da simplicidade extrema das situações se constrói um universo poético e reflectivo sobre a complexidade dos seres e sobre a magia da vida e do tempo. Uma escrita como um diamante. Grande abraço.
Também a minha alma molhada e "meteorologicamente" instável encontra um porto de abrigo no infinito pessoal.
A compre diária do jornal adquiriu um novo sentido.
Obrigada pelas belíssimas palavras.
Um abraço.
Ilustre Luís
O portal da literatura já está. Para quando o livro?
Já é tempo.
Um abraço
Ilustre Luís
O portal da literatura já está. Para quando o livro?
Já é tempo.
Um abraço
Luís, é muito por ai. Pelo detalhe, pelo que, submerso no visível subjaz maior ao teu olhar.
É muito por ai, que vou e venho, entre a chuva e um qualquer avião que teima em não chegar, e que, por aqui me detenho actualizando a leitura antes que uma qualquer nuvem de meteorologia duvidosa me embacie o olhar e seja incapaz de ler quem tanto aprecio.
Tu, Luís, tens o dom maior de detalhar o detalhe, de ir à raiz do verbo e à raiz do ser, que dignificas, com os teus textos.
Declarar-me tua fã??? Luís, não carecemos disso. Conheço o teu trabalho desde (ou quase) que chegaste à blogoesfera. Tenho esse enorme privilégio. E conheço e reconheço como, em cada texto, te revelas mais "analista social". Apetece-me brincar...
"o algodão não engana"!!!
É isso, meu brother, o algodão do tempo revela-te um escritor de enormíssimo talento. Para quando o livro??? ...
Vou imprimir e ler de novo. E coleccionar os textos. Um dia assinas e pronto!!!Resolvido. Edição "Mel de Carvalho". :) Posso???
Beijo fraterno da Mel
Bem-hajas.
Obrigada Luis, pela fluidez da sua escrita, pelas imagens que nos transmite...Que dizer-lhe mais? Você escreve duma forma arrebatadora!!! Obrigada bjs Eugénia Bettencourt
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