Saturday, May 29, 2010

mulheres...


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Ao cair da noite calada e quieta como um grande segredo, tocou o telemóvel que esquecera na biblioteca. Margarida atendeu. Ao tempo que suspeitava, sabia que eu adoecera febril daquela excessiva espera. Tratava-me com íntimo pudor como a um enfermo terminal, pronta a quaisquer esforços. Certo que quando a situação a atingiu forte sentiu um terror vago: resistiu até ao fim, mesmo percebendo que o tédio escorria de um para o outro e que o seu amor resultara inútil. Mariana já se tornara a minha âncora maior, o último peixe vermelho de um lago, duma sensibilidade tal que me deixava sem respiração.
Atendeu o telemóvel, ignoro o que perguntou. Ouvi a voz titubear, e percebi que era o momento. Gestos indecisos, um sorriso do tamanho do medo, entregou-me o telefone, colocando-o à minha frente, e ausentou-se.
- Olá! – disse numa voz doce, a voz de Mariana, mas falava com uma certa enfatuação, como quem já desprezou o sotaque, como se já não recitasse um poema açucarado.
Disse-me onde estava e deu-me um endereço junto à Cinemateca.... Desliguei, subi ao quarto, amontoei uma série de coisas numa mala, desci as escadas, e sem um abraço nem o sabor de um beijo mergulhei num vendaval de pensamentos, enquanto, pela derradeira vez, pisava o chão da minha casa.

**
Cinco da manhã. Chove tanto, tanto. Estendido na mais estreita cama senti frio no coração, a alma suja de restos e a consciência de que não encontro a mulher com que sonhei. Nem em Lisboa nem no Rio de Janeiro. Nem nos sítios mais impronunciáveis. Existem mulheres, e, em todas elas, um fragmentozinho da fêmea ideal, uma carícia de espuma, um violino que gostamos de tocar, um levíssimo toque de mistério, mas em nenhuma se reúne tudo o que se espera e dela aguardamos. Nenhuma mulher agrega em si tudo isso, nem existe a única, a perfeita, a imensa, essa figura singular que nos traz bem-aventurança e nos canta até adormecermos. Existe sim a melodia do corpo feminino e muitas outras coisas que não posso compreender.... Senti-me como um turista solitário, num inter-regional que pára em todas as estações, mas sem esperança em chegar ao destino do sonho que é o verbo amar.

A noite desaba sobre as minhas lágrimas que sinto perdidas como fios de cabelo. Um cigarro, outro cigarro vai acalmar seguramente …

***

Mafalda, cabelos, mãos, sal e pele, ternos lábios, rosto de Klimt, overdose de beleza. – Então na próxima quarta-feira, certo, Mafalda? Espero que tenhas gostado. Às sete e um quarto, se estiveres de acordo…a essa hora cá estarei …aqui, no hotel azul-cobalto, onde ninguém nos possa falar ou reconhecer.

Luís Galego

Ver imagem aqui.

15 comments:

Maria Julia said...

Como o entendo, Luís!...

Encontrar a globalidade que gostamos, em alguém é utópico, mas sempre esperançosos...

E assim... não se vive, como narra nesta estória "Mulheres", não se vive! Vivem-se momentos, que nos deixam grandes vazios e enormes frustrações.

De uma forma tão bela e simples, descreve aqui o que as pessoas inteligentes sentem...

"Bem aventurados" os "pobres de espírito"...

Obrigada p'lo prazer de o ler.

Maria Julia.

Unknown said...

O ideal não existe porque não passa de uma construção do nosso imaginário.Por isso, acho que não nos decepcionamos com as pessoas, mas sim com a imagem que construímos sobre elas. Adorei. Mais um bonito momento Luís.

MARIA said...

:)
Belo texto, como sempre, irrepreensível do ponto de vista da arte literária.
As mulheres estão sempre no tubo de ensaio para quem não obstante já descoberta a electricidade, pretende alcançar a Luz que alimenta a vida na Terra...
Saiba que penso precisamente o mesmo dos homens. Contudo, não o saberia com esta beleza e arte, colocá-lo em palavras.
Excelente texto, muito obrigado pela partilha.

AnaLee said...

Não sei, não sei se desta vez concordo...
Mas gosto, como sempre.
E gosto de acreditar que existe o ideal...

Anonymous said...

Luís: trazes-me c/ palavras
feitiço e magia
trapézios de luz
encantamento e poesia........


trazes o cheiro do mar
da terra
a cor de um pincel sobre uma tela.................

e sp esse gosto a maçã:)

Violeta said...

É sempre um bom tempo o que se passa aqui...

João Roque said...

Como te conheço razoavelmente bem,ainda mais admiro a tua capacidade de retratar um mundo cada vez mais louco, em que os sentimentos são facilmente esquecidos em detrimento dos prazeres passageiros.
Abraço.

Ana Paula Sena said...

Um prazer lê-lo :)

Denise said...

O perfeito não existe e talvez isso seja o melhor do mundo, o ideal. Por muito que procuremos o que encontramos é pouco, muito pouco... Há momentos que falta, situações que escapam, movimentos que falham. Há uma infinidade de sentimentos que não se completa. Podemos sim encontrar alguém que seja quase perfeito e fazer desse quase um todo.
Li e divago, penso e repenso sobre as suas palavras, tudo isto sem querer chegar a qualquer tipo de conclusão.
Apenas um parágrafo me fica: «Desliguei, subi ao quarto, amontoei uma série de coisas numa mala, desci as escadas, e sem um abraço nem o sabor de um beijo mergulhei num vendaval de pensamentos, enquanto, pela derradeira vez, pisava o chão da minha casa.» Porque as pessoas podem não o ser, mas quase sempre, as palavras são perfeitas!

Mar Arável said...

Pois é meu caro

andamos uma vida à pergunta de nós

e dos outros

Felizes os que se perdem
na ilusão de um encontro
verdadeiro

Abraço amigo

Filoxera said...

As pessoas, como os textos, têm muito de belo.
E algumas fazem-nos querer ficar junto delas, ser suas amigas, encetar uma relação. Tal como os livros, há inúmeros aspectos positivos em cada uma. A questão está, a meu ver, em descobrir o que de melhor cada um tem. Por vezes essa descoberta torna-se apaixonante.
Beijos.

Mel de Carvalho said...

Luís,
que posso dizer que não tenha dito?
A qualidade de cada texto que escreves supera o anterior, aprofunda o teu olhar sobre o mundo e devolve-nos a possibilidade de, nós mesmos, nos perspectivarmos em análise. Como este. Que procuramos da vida? Será que nos damos conta de que estamos perante "n" possibilidades? Ou será que, ancorados em passados, turvamos os olhos, não vislumbramos margens?

Excelente, Luís. É um orgulho chamar-te amigo.
Fraterno abraço
Mel

com senso said...

Margarida, Mariana, Mafalda... três nomes de Mulher, três visões distintas do feminino a partir do lado de cá, do olhar e da sensibilidade masculina.
Este texto é algo complexo, tive que o ler duas, três vezes! Parar a meio e voltar atrás! Não para o entender, mas sim para me entender também a mim, já que nele me via retratado em alguns momentos da vida!
Repentinamente retratado, exposto, em esperas angustiantes, em solidões incontidas, em momentos de puro efémero!
Num pequeno texto, surgiu-me à frente um mundo inteiro, feito de fragmentos importantes de uma história de vida.
A ficção foi aqui um espelho, onde me vi com o aspecto de ter acabado de acordar e à espera de poder recomeçar de novo, num novo dia!
Um abraço caro amigo, por mais um belissimo texto!

ANITA said...

O eterno problema.
Partimos sempre com grandes expectativas, colhemos quase sempre grande desilusão.
Quem nada espera, só pode ganhar!
A narrativa é soberba e espelha tristemente a realidade.
Gostei, como sempre tem acontecido.
Um Beijo
Ana

Ana Maria de Portugal Lopo de Carvalho said...

Prece ao tempo

Não me deixes correr contigo
Na louca correria para o infinito
Sem nada ter p`ra procurar
Sem nada ter para mudar...
Conserva-me na estufa
Da Natureza Morta
Até um dia poder desabrochar.

Ana Maria de Portugal(Utupia)