Sunday, May 02, 2010

solitário procura companheiro(a)...

A solidão torna-se insuportável quando sobe pelo corpo, navega pelo sangue e se arruína em bebedeira de luto dentro do coração esfomeado, como um castigo, um amargo soneto à morte antecipada; a solidão é uma carteirista da felicidade alheia, uma cadela nocturna, uma máscara de morte. Convive com horas clandestinas, estrelas apagadas, chagas infernais. No desassossego da idade talvez fosse melhor partilhá-la com alguém a quem extorquir um pouco de ternura; talvez essa grave coima que é a solidão ficasse atenuada, se repartida com um qualquer, um companheiro de circunstância, uma mulher vendida aos ventos que se conhece na íntima noite numa rua vazia e difícil de encontrar. Há horas que são momentos de dor, jogos de relâmpagos e de cataclismos. Mas secam, porque a solidão também enlaça devagar, como uma deusa sonâmbula que desliza. Bruscamente tudo acontece: primeiro, a curiosidade, descoberta casta; depois, o desejo, desassossego na respiração; a seguir, a paixão que se desfaz na lua; e, por fim, entra em cena madame solidão, iluminada pelas luzes longas e em frente de uma cortina escura. Desiste-se, adoece-se, envelhece-se, geme-se como um animal estrangulado, morre-se mirrado até ao osso, sem conchego e sem deus. Sente-se as mãos molhadas do choro e já não se espera outra mulher que console, nem um amigo de braço estendido que amacie a alma esburacada e até a pele passa a ser virtual. Cada discurso é estéril, mesmo o mais sapiente. Quanto egoísmo, quanto propósito supérfluo, quantos acrobatas a ensaiar o mortal, ninguém sai sem cadastro! Quando nos desiludem já pouco se espera do ser humano, nada é mais que profundo vazio, frágil instante, sala de tortura, carne ardida, punhal num peito, voo de pássaro ferido, animal que uiva, como se o mundo fosse um castelo-fantasma e perdesse todo o sentido, ficando tão só a escuta do grande sismo silêncio que, a pouco e pouco, começa a ressoar na alma em desagregação, como nas margens do tempo.

Ainda assim, pálido e frio, especialista em fracassos, insiste entrar sem bússola no labirinto das emoções, de recomeçar e deixar o seu cartão de visita, dados pessoais e telemóvel: solitário, 40 anos, escondido nuns óculos escuros, talvez poeta, talvez humano, procura companheiro(a)…

Luís Galego

Ver imagem aqui.

20 comments:

J. Maldonado said...

A solidão é uma cabra lixada... :(

Maria Julia said...

Amei Luís, mesmo triste que o é de facto...mas a realidade de tantos/as!

Essa procura nem sempre é fácil...e o fosso, pode estar ali na próxima esquina...

Não quero sequer, que me passe p'la cabeça, que estes dados pessoais, tão idênticos aos teus, queiram dizer...não!!!!

Eu estou aqui, Luís...mas a milhas de distanciamento, raiva!!!

Vou reler emocionada como estou, bloqueio...

PARABÉNS com beijo grande.
Até já.

Maria Julia said...

E reli, reli bem...

A mais, ficou gravada a falta de ternura, essencial à vida de todos nós e uma lágrima(2...ou 15), rolam-me sem querer p'la face...porquê? Por essa mesma falta...

Beijo grande, e quero e sei, que em breve, estarei em qualquer boa Livraria, comprando um Livro de Luís Galego...

Uma terapia, para mim...espera as que quiseres de mim...

João Roque said...

E há tanta gente a apresentar esse cartão de visita.

Vera de Vilhena said...

Belíssimo. Uma escrita rica e madura, com uma musicalidade poética que flui, suavemente, a cada frase. Parabéns por este texto inspirado e sentido ate à carne. Obrigada por partilhá-lo connosco.

cirandeira said...

Que texto forte e bonito! É isso mesmo, tudo o que escreveste sobre
esta "senhora"!, é verdadeiro e talvez por isso fascinante, porque,
ao mesmo tempo, é ela que nos impulsiona para fora do ventre de nossa mãe para a vida; é ela que
nos convida, e/ou muitas vez nos obriga a criar, a tomar decisões, a amdurecer; é esta "senhora", a solidão, que nos leva a refletir e
que nos faz companhia com suas imagens, seus pensamentos ora sombrios, ora cheios de sonhos, de fantasias, de anjos e demônios.Muitas vezes ela nos paralisa, nos amedronta...mas quando conseguimos encará-la, torna-se uma boa companheira! Com ela nascemos e é também com ela que iremos embora deste insensato mundo um dia. E sem necessidade de nenhum "cartão de visita".
Quando me deparo com um texto tão
rico em detalhes sobre um sentimento tão humano e cada dia mais presente em nossas vidas, fico mais convencida ainda de que a
senhora solidão é muito amiga dos poetas, escritores, pintores, enfim, dos artistas de um modo geral. Quem me dera tivesse a capacidade para colocar estrelas em minhas noites de escuridão...e medo!

Um grande abraço

Unknown said...

Starry starry night - this world was never meant for one as beautiful as you"...

Eduardo said...

Brutal!Emoção e carne !A dor e a ferida aberta !
Parabéns ,Luis !

Isabel Victor said...

Muito bom
Muito bem escrito

Um enorme abraço

isabel victor

MARIA said...

É tão grandioso este texto!
Sublime na forma como concilia as palavras e as faz valsar em tanta beleza sob as notas musicais da solidão.
Nada há que possa acrescentar-se a um texto construído assim, a não ser um imenso aplauso de pé.

Anonymous said...

Pois é Luis! Arrepiei-me e adorei.
Obrigada pela partilha.
(tenho que digerir melhor o texto para fazer um comentário mais profícuo). Beijo
Paula Reis

Xana said...

Sim Luís, a solidão é um punhal que nos mata lentamente! Amei o texto! Complicado para eu comentar! Pelo menos hoje, pelo menos agora! Beijos ALEX.

http://alexandrapatronilho.blogspot.com

:)

com senso said...

Mais uma vez fico dividido sem saber o que admirar mais, se a qualidade da escrita, se a profundidade com que o tema é tratado.
E é para mim um tema muito caro, pois já percorri muitas vezes a estrada da solidão, mesmo apesar de estar acompnhado! E essa, meu caro Luís Galego é uma solidão bastante dura e sombria, mas também, tenho de confessar... uma magnifica lição de vida!
Resta-me no fim apenas agradecer mais este texto, esta prosa poética que me delicia e me toca profundamente!
Um abraço!

AnaLee said...

Mais um texto que deixa a boca com um estranho travo amargo...

joão brehm said...

Mais um belo texto do Luís, talvez das pessoas que melhor escreve neste país. Autópsia da solidão. Grande abraço e parabéns.

Anonymous said...

eu gostei...só um homem poderia escrever estas palavras sobre a solidão.

Anonymous said...

Caro Luís,

Espero que um dia, os seus textos ricos em sentido e expressão se tornem livros... e quem sabe, "boas leituras" nas nossas escolas.

Anonymous said...

“Todos dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei-de ser sozinho.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Quem ama é diferente de quem é
É a mesma pessoa sem ninguém.”
Fernando Pessoa
De Lua tão só…

Ana Maria de Portugal Lopo de Carvalho said...

Obrigada, Luís pela maravilhosa escrita poética que são os teus textos...

O som ouvido e grandiosamente descrito da SOLIDÃO!

Beijos
Ana Maria de Portugal

ANITA said...

Equilibrista de Emoções!
Triste cartão de visita de tanta gente!
Uma escrita solta, que nos acompanha o pensar, como sempre adorei!
Beijo
Ana