Friday, June 11, 2010

chicote de raiva...

Uma mulher, a minha mãe, morreu pelo crime de te ter amado, contagiada pelo abismo que foste tu, ser maléfico como um pássaro sem bico. Um homem, o meu pai, morreu de amor por a ter perdido, sem ter apreciado um último abraço e o sabor de um beijo. Destruíste um homem e uma mulher devido ao teu egoísmo, ao teu egocentrismo que deu mais valor à sórdida auto-estima machista do que à cumplicidade deles. Foste um bicho feroz e carnívoro que conspurcou o lençol da neve com os sinais do seu vómito. Se pensas que o vidro fosco do tempo os eliminou estás enganado. Estou aqui. Sou ambos, sou Inês Bessa-Luís e António Franco. Não conseguiste nada. Não estão mortos, não desapareceram, não estão esquecidos. Continuam a viver em mim, são duas estrelas refugiadas dentro do meu espírito.

Não sabes quem eu sou. Não vês na juíza que te julga a menina que tinha a idade das amoras, seu selvagem sem alma por dentro? À noite, quando fechas os olhos, vês a minha mãe cansada de esperar, gemendo como um animal estrangulado, depois de ter fugido de casa, iludida pelos teus dotes de don juan e pelas teias eróticas de trazer por casa? Sabes que a ausência de um regaço de mãe que nutre e embala só é comparável a uma sala de tortura, a um recinto escuro, de infância? Sabes que a privação de um pai na meninice é um armário poderoso com tecidos sanguinários guardados? Sentir a falta dos dois é o mesmo que estar soterrada numa casa fria cheia de fantasmas perdidos nas sombras. A vida passou a ser só um inverno punitivo, névoa e abandono, um navio encalhado nos ramos, uma ilha de silêncio. Aterrorizei-me tempos a fio enquanto adormecia devagar. Deprimida olhava um rosto de dor frente ao espelho, onde caíam lágrimas, gota a gota, do coração esponjoso, cru, agitado, que não enxugava, como só no absoluto da pré-adolescência se conhece. Medos que nem mesmo o tempo ou o riso conseguem sarar.

Não me chames minha senhora, sou magistrada judicial, faço julgamentos com sangue-frio e alma cheia de musgo e de rasgões. É a cólera que me leva aos precipícios da memória de uma noite que desfolhou relâmpagos sobre mim. Tu és o nó de sangue que me sufoca. És uma faca cravada na minha secreta existência. A minha mãe morreu por tua causa, mulher com ternura a jorrar pelos poros, cujas mãos estremeciam por algo novo e já tocada na carne profunda sentiu-se uma nódoa vendida aos ventos da noite, optando pela morte por não ter coragem de regressar aos braços meigos do marido. O meu pai, bom homem, não resistiu ao desaparecimento da mulher, ele um subscritor do lirismo dos apaixonados estava convencido que morariam para sempre um no outro num casarão sem número. Eu sou Inês Bessa-Luís e António Franco e tu és insignificância, menos que nada. Enterro o meu terror e os meus demónios privados esmagando-te com o pé, hoje e aqui, nesta sala de audiências, independentemente do crime de que és acusado.

Luís Galego

Ver imagem aqui.

15 comments:

João Roque said...

Revolta!

Maria Julia said...

Luís, li atentamente várias vezes este seu maravilhoso conto, que encanta(..., no entanto, por me sentir a sucumbir do cnsaço de 6ª feira à noite, deixo, sem que me leve a mal, farei um comentário mais correcto, amanhã, com a cabeça fresca tá? É bom demais, para ser comentado sem "cabeça fresca"...para já, posso dar PARABÉNS, com enorme carinho.

Maria Julia

AnaLee said...

Afinal a vingança é amarga...

Maria Julia said...

É uma estória 'louca' de amor e terror...tristemente linda e descritivamente encantadora...

PARABÉNS Luís. Obrigada por estes contos tão tocantes.


Maria Júlia

Violeta said...

E a vida por vezes cria-nos uma revolta e uma mágoa assim...

com senso said...

Como se pode tão bem descrever a mágoa, a raiva e tristeza!
Existe uma teia de sentimentos tão densos, profundos e contraditórios que dão corpo a uma vida e a uma forma de estar perante ela.
Como sempre fico fascinado pelo estilo e mais uma vez pela sensibildade com que se escalpeliza a alma humana.
Parabéns e obrigado por este excelente texto!

Unknown said...

A pior das dores...
a que destrói inexoravelmente! A que vai tornando a coexistência impossivel entre o acusado e o acusador...

Um texto fortemente psicológico!!!!

Maria said...

Fortíssimo! É a única palavra que tenho...

Um beijo.

Centralina said...

A cólera mina, desgasta e mata. Há que enterrá-la. Só com um "caixão de amor" é possível fazê-lo. Aliás a mesma matéria com a qual tudo é ultrapassável nas relações entre pessoas. Sem esse amor tudo se desagrega como tijolos sem argamassa. Não entendo nada de literatura, só sei que ao ler os teus textos entro num carrossel de emoções. Talvez isso seja arte. Parabéns Senhor Artista.

Mar Arável said...

Vá poeta

pega na faca e rasga-lhe o ventre

Excelente como sempre
meu amigo

Mel de Carvalho said...

Luís,
a cada texto teu maior a convicção de que és um

ENORME escritor.

Beijo, brother. Saudades tuas
Mel

Je Vois La Vie en Vert said...

Magnificamente escrito, Luis !
Beijinhos
Verdinha

Gabriela Rocha Martins said...

surpreendo.me sempre ,quando ,por aqui ,demoro


excelente!




.
um beijo

ANITA said...

As palavras das Heranças cruéis que devastam tudo por onde passam!!!
A sua escrita, Luis, encanta-me porque me soa a verdade. Aqui, vai ao fundo da alma, e fala da dor difícil de explicar.

Anonymous said...

Sinto inveja de não ter sido eu a criar este texto. Confesso! Sem arrependimento. Invejoso da tua imaginação e da arte de a tornar legível. Por isso, continuarei a pecar na leitura deste espaço da tua escrita. Com aprazimento! Pecador assumido. Ou haverá algum pecado no qual não se sinta uma certa dose de prazer?!