Saturday, February 12, 2011

Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT


Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem
José Martí


Augusta Duarte Martinho completava 96 anos hoje, sábado, se estivesse viva; foi vista pela última vez no Verão de 2002. O seu cadáver (e o do cãozito na varanda à espera dela até também morrer e de vários pássaros) foi encontrado atrás da porta da cozinha, de barriga para baixo, num prédio cinzento da uma localidade portuguesa da freguesia de Rio de Mouro no concelho de Sintra, entregue ao mais insidioso retiro e esquecimento. Essencialmente só.

Durante mais de oito anos, Augusta não foi vista por ninguém, não levantou os vales da pensão da Segurança Social, não pagou as despesas de condomínio, não cumpriu as obrigações ficais. Por não ter honrado estes compromissos, o Estado penhorou a casa, vendendo-a em leilão. A nova proprietária adquiriu a casa e o cadáver, que jazia na cozinha. Este panorama mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito. A mesquinhez.

Estranho mundo este. A história desta reformada educadora de infância ou professora – também ninguém sabe ao certo – é toda ela uma tétrica parábola sobre a cidade de cimento e do vazio, dos homens e das mulheres, que vimos construindo na aparência de civilização. Num país reduzido a números e estatísticas ninguém se intriga face a nove anos de ausência. A colectividade mais preocupada em comentar os reality shows televisivos, que exploram a pura e suprema banalização da intimidade e louvam cretinos esquece quem caminha sozinho, abraçado a um inferno chamado solidão interior, numa realidade sem show. Como pergunta chocado o escritor e ensaísta Eduardo Pitta Ninguém estranhou que a luz da cozinha tivesse estado acesa durante oito meses? A Direcção-Geral dos Impostos põe casas a leilão sem contacto prévio com o contribuinte? Um caso perturbante, comovente e dramático, na sua frieza e desumanidade que demonstra, a sangue frio, a face de uma multidão apodrecida e egoísta, expurgada de solidariedade humana, que passa ao lado de quem está apenas entregue ao casulo de uma alma que é feita para não estar sozinha.

Não é concebível que um corpo tenha permanecido durante anos e anos desconhecido e só, como dizia o poeta Milosz. Assim se constroem vidas em forma de monólogo, algumas que degeneram em sofrimento, e que se finam todos os dias abandonadas num apartamento qualquer perto de nós. A velhice e o isolamento são o pior dos males, uma espécie de enfermidade: ninguém estranha, ninguém vê, ninguém sabe. Os sentimentos mais genuínos logo se desumanizam numa cidade onde até o carteiro, que consta dever tocar sempre duas vezes, não dá por nada. Neste circo de horrores, uma vizinha preocupa-se e muito. Três meses após o seu desaparecimento Aida Martins vai à polícia participar a ausência. Recorrentemente. Ninguém se interessa. Ninguém investiga. Sem ordem do tribunal ninguém pode entrar em casa. Inconformada, recorre também à GNR e à Conservatória do Registo Civil. Aflita corre mundo e resolve dar notícia do desaparecimento ao Ministério Público onde vai 13 vezes. Nunca consegue autorização para arrombar a porta. Reclama em todas as instâncias. Como se de um acontecimento insignificante se tratasse ouve tão só: Minha Senhora, a participação está registada: Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT.

Incompetência e ignorância que merece inquérito desapiedado a autoridades tão inaptas que nem sequer, ao ser comunicado o desaparecimento, fizeram o mínimo: abrir a porta da residência da desaparecida.

De facto isto não aconteceu no Burundi ou no Zimbabué. Foi mesmo aqui ao virar da esquina, numa triste praceta das Amoreiras, atravancada em bosques de betão de um dos maiores dormitórios suburbanos de Lisboa onde se ouvem os risos de crianças a correr de uma escola próxima e o movimento dos comboios na estação…
Luís Galego

17 comments:

Anonymous said...

Luís

Triste, atroz e gasta esta sociedade em que vivemos.
Infelizes esses (tantos!) olhos que só enxergam o próprio umbigo.
Miseráveis os que não aconchegam contra o peito os valores maiores da solidariedade, da amizade, da compaixão, do amor.
Salvé as almas acesas, despertas e rubras.
Maria José Bravo

ANITA said...

A Civilização está-se comendo por de dentro!
Tanta Indiferença! Tanta Frieza! Tanto Egoísmo, só pode acabar muito mal.
Sodomas e Gomorras do séc. XXI. Em que tudo é permitido e a Humanidade já é mais rara do que o Petróleo!
O entendimento é tão pequeno, que nem se imagina o "Novo" de hoje em o "Velho" de amanhã.
Mais uma vez, uma história muito triste para nos fazer pensar, e muito, como será o futuro!
E que bem que escreves, meu amigo! Sabe tão bem ler-te! Por favor, não pares!
Beijinho
Ana

MARIA said...

Caro Luís, o seu texto e a sua apreciação deste medonho acontecimento é inexcedível sob todos os pontos de vista.
Que bem escreve!
O retrato social que traçou do actual estado desta Nação é também irrepreensível e acertado.
É tão triste constatar ao que chegamos e mesmo agora continua a haver "indiferença" em relação a alguns aspectos desta questão que deveria merecer ponderação por todos nós .
- Pergunto :
um imóvel adquirido por alguém num procedimento de venda em que a respectiva proprietária é provavelmente citada postalmente, como se viva estivesse e não deduzisse oposição à mesma venda, é juridicamente válida, sabendo-se que ela não foi citada pois já estava morta ?
E se não é válida, o imóvel não pertencerá aos herdeiros da senhora ?
São meras reflexões.
Mas é importante que as pessoas pensem nisso : muitas citações e notificações que originam cruéis processos contra o património de muitos vivos são feitas postalmente, sem nunca chegarem ao conhecimento pessoal dessas pessoas que por isso não podem oportunamente opor-se.
Esse é o sistema que resultou da reforma do processo civil executivo que visando facilitar a cobrança de dívidas, institucionaliza meios que podem revelar-se ilícitos de atingir o património alheio, como é o caso desta venda da senhora já morta.
Creio que nem uma única instituição funcionou ... digo-o com tristeza...
E assim a vida continuará por terras Lusas...

Grande texto !
Um abraço.

Maria

Ana Maria de Portugal Lopo de Carvalho said...

Este miserável "MUNDO CÃO!"
Quantos mais casos terão que acontecer para que esta vergonhosa burocracia acabe?

Ps: Claro que não me refiro a um cão quando falo deste miserável mundo cão!
Cão = cunicus= cínico...
(do grego)

O outro cão, coitado, nada tem a ver com este mundo!
Foi mais humano!


(Ana Maria de Portugal)

João Roque said...

Sem sombra de dúvida, o caso mais triste dos últimos tempos na sociedade portuguesa.
E tu explicas muito bem todas as razões desta minha afirmação.
Eu estou farto de falar da situação dos idosos neste nosso cinzento país.
Que tristeza morrer assim!!!

Penélope said...

E não acontece só aí.
Acontece em todas as partes do mundo, onde a maioria é apenas um número nas instituições governamentais, principalmente depois dos 90 anos, onde se perde o viço, aonde, para a sociedade, torna-se um peso morto, mesmo antes de se quedar a vida.
Não se vale nada nesta civilização "incivilizada"... o resto tu bem o dissestes, mais uma vez com maestria, meu POETA!

Um grande beijo

Anonymous said...

Comentar os teus textos tornou-se um risco. O da repetição do gosto de sempre. Talvez tenha aprendido que o melhor mesmo é não aprisionar num comentário as invocações que eles suscitam e admitir que qualquer apreciação é redutora a um juízo. Julgo, logo reduzo.

Os teus textos permanecerão vivos, mesmo sem ligação à máquina dos comentários. A sua existência deve-se à inspiração do escritor e a sua subsistência consiste na leitura afeiçoada do leitor. Aquela afeição que, deixando livres as palavras, sabe gozar o aroma intenso da composição. Um gozo agradecido!

Mel de Carvalho said...

Quantos mais, desaparecidos dos olhos, jazem ocultos por um muro de betão com janelas para uma rua onde quem passa não pára, quem pára não tem poder de agir e, aqueles a exemplo dos que, ao caso, agiram e se manifestaram, acabam por ser olhados como "entropia" ao sistema? Uns "chatos" que incomodam, que, "inventam" problemas...

"ainda se cheirasse mal..."
...
e tudo fica por isso mesmo. e, tristemente, no espaço de uma semana, 3 idosos foram já encontrados, mortos e sós, por tempos até que o tempo deste alerta, sensibilizou (até que outra novidade ocupe as mentes) a vizinhança - Tão necessária, a sua manutenção, a rede de proximidade absolutamente imperativa.

Triste, muito triste. Para não esquecer.

Obrigada Luís, pela eloquência, pela lucidez, por tudo o mais, mas, acima de tudo, pela tua ENORME HUMANIDADE!
Beijo
Mel

Anonymous said...

E não acontece só aí.
Acontece em todas as partes do mundo, onde a maioria é apenas um número nas instituições governamentais, principalmente depois dos 90 anos, onde se perde o viço, aonde, para a sociedade, torna-se um peso morto, mesmo antes de se quedar a vida.
Não se vale nada nesta civilização "incivilizada"... o resto tu bem o dissestes, mais uma vez com maestria, meu POETA!

Um grande beijo
Malu

Je Vois La Vie en Vert said...

Um triste e incompreensível acontecimento !
Boa semana !
Beijinhos
Verdinha

Anonymous said...

(cont.)
O intenso aroma da composição é, neste caso, o que resulta da abordagem de uma tragédia em nove (hi)atos.

O gozo baseia-se, é claro, não no drama, mas sim no estilo da escrita que nos induz ao desconforto sem nos arrastar para uma culpabilidade sentimentalona, doentia, estéril.

Antes, remete-nos para a responsabilidade social, para o compromisso de dedicada atenção aos outros, especialmente os mais vulneráveis pela sua solidão.

E é este jeito inteligente e hábil de escrever que eu aprecio. Daí ter referido o risco da repetição do gosto de sempre, isto é, desta minha agradável sensação de gostar da leitura de todos os textos, nos diferentes géneros.

Anonymous said...

O mais perturbador - diria mais angustiante - é que, hoje, são escassos aqueles que se propõem "crescer" a partir dos risos de crianças. Que ousam traduzir o movimento dos comboios em qualquer estação na periferia do silêncio.

Hoje, dir-se-ia que se foram multiplicando as sementes da indiferença pelas equívocas metáforas do anonimato. Como se os bosques de betão irrompessem do peito de cada um de nós, para se assumirem como sinónimos de uma irracionalidade conscientemente arquitectada.

Gabriela Rocha Martins said...

...........infelizmente ,o retrato a preto e branco daquilo em que nos tornamos




.
um beijo

Anonymous said...

Então fascinante este site está muito posicionado.........bom trabalho :)
Amei Continua deste modo !!

partilha de silêncios said...

Construimos um mundo onde se vive e morre com indiferença !

um beijo

P. P. said...

Este nosso mundo...
Fruto dos nosso actos?
Estaremos a tempo de "o salvar"?
Uma revolução de mentalidades precisa-se!!!
E não é só na educação...

Abraço-te.

Anonymous said...

Sou editor do blog Ensaios e Manifestos e de passagem por aqui , gostei do teor dos textos. Gostaria de convidar o autor a conhecer a proposta e o teor do blog , assim como está convidado a nos enviar um texto de tema livre para a postagem , dentro do espírito do Blog de ser um banco de idéias , ensaios e manifestos
www.ensaiosemanifestos.blogspot.com
[ ]s !