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Sunday, June 10, 2007

a gaivota...

…eu estou sempre a desejar tanto, tanto, vir para a beira do lago…como se fosse uma gaivota… (Nina Mihailovna)

...eu sinto-me como se tivesse nascido há muito tempo. Arrasto a minha vida atrás de mim, como a cauda de um vestido... (Masha)

(texto adaptado a partir do programa da peça. Peça que ainda, e ainda bem, se encontra em cena no teatro da cornucópia, ali no bairro alto)

Numa quinta russa do fim do século XIX o escritor principiante e rebelde filho de uma actriz célebre apresenta à família a sua peça de teatro representada pela jovem que ama. O espectáculo é ridicularizado pela sua mãe e pelo seu amante, escritor conhecido. A rapariga apaixona-se pelo escritor mais velho, decide fugir para Moscovo e ser actriz, porque se sente atraída pelo deslumbramento e pela celebridade dos artistas. O jovem escritor fica no campo com as pessoas que habitam a sua vida: um tio reformado, o administrador da quinta e a mulher, a filha infeliz de ambos, um mestre-escola de aldeia, um médico, os criados. Dois anos depois a mãe e o amante voltam. O rapaz vive a escrever. A sua amada regressa também, às escondidas: é uma actriz sem sucesso, vive só, teve um filho do escritor, que morreu. O reencontro é difícil. O rapaz suicida-se. A vida, essa continua, reza o encenador.

Tchekov, perito na análise das relações humanas, criador da personagem colectiva, retratista do quotidiano, cria com estas cenas da vida de um grupo de personagens, um irónico microcosmos onde homens e mulheres, com dramas e tragédias escondidos, se debatem com grandes questões do pensamento humano: a busca da felicidade, o sentido da existência, a dificuldade de amar, as relações da arte com a vida, o trabalho e o dinheiro, as diferenças e conflitos de classe e de geração.

Em cena personagens insatisfeitas. Duas actrizes, dois escritores. Trigorin e Treplev, percebem que a vida é maior que o que escrevem. O mais velho aceita a mentira, o mais novo mata-se para não sofrer. E as duas actrizes, Arkadina e Nina, substituem a vida pelo teatro. A mais velha para calar a infelicidade, a mais nova porque a vida não lhe foi fácil. Razões ruins para ser artista. A peça fala dessa relação da arte com a vida. Mal começa e já se discute a arte, a literatura e o teatro, já se alude a Guy de Maupassant, a luta de novas formas contra as convenções, a busca de alguma verdade. E no último acto, ainda se fala disso, enquanto se joga o loto "...quando vêm as longas noites de Outono, joga-se o loto nesta casa. Anda ver - é o mesmo loto, muito velho, que tinhamos quando éarmos crianças. Ainda vais jogar um joguinho antes de cear, não vais?...(Arkadina). Falam as personagens, debatendo-se na sua dificuldade de viver e de viver com os outros. E não falam só disso, falam de amor, das doenças, do tempo, do dinheiro, da lavoura e dos animais, de viagens, das pequenas coisas.

“Sou uma gaivota... Não, não é isso.” Diz Nina, que não é afinal A Gaivota. A Gaivota é mesmo só uma gaivota, uma gaivota que Treplev matou. São as personagens que lhe inventam a simbologia, mas a vida é mais complexa. Tão complexa como a cena final do reencontro, e desencontro, de Treplev e Nina, um clímax magnífico e cruel, com o confronto do masculino com o feminino, do desespero com a fé, do negativo com o positivo. Mas muito mais do que isso. São um pedaço de vida, da vida de duas pessoas, desenhado através de um diálogo perturbante. Ambos os jovens avaliam a forma pela qual os segredos da arte se tornaram mais compreensíveis para eles. Falam da sua descoberta e comparam-na com as suas ideias iniciais que foram destruídas pela vida e pelas suas próprias experiências.

Reencontramo-nos a cada frase e em cada um dos temas convocados: o sentido da vida, a busca de uma transcendência, a morte e a passagem do tempo e por aí fora, mas que não têm mais importância do que "pôr e tirar o chapéu, beber um copo de água, fumar um cigarro, dar uma gorjeta ou colher uma flor...". Ninguém vale mais que o outro, tudo conta e de tudo depende cada destino. Cada silêncio tanto como o que se diz. O infinitamente grande só se vê com um microscópio. Porque a vida, tal como escreve Luís Miguel Cintra, é assim.

Não há uma única palavra, não há uma única indicação de cena nesta Gaivota que eu não tenha sentido, nesta peça que nos faz medir o pulsar da vida russa daquele tempo. Com este espectáculo, o Teatro da Cornucópia recria cuidadosamente esse universo e constrói um espectáculo de três horas e meia cheio de comoção.

Fonte: http://www.teatro-cornucopia.pt/ (incluindo programa da peça).