Thursday, May 10, 2007

madeleine...

(Pablo Picasso. Girl with a Boat [Maya Picasso], 1938)

O desaparecimento de Madeleine McCann aconteceu na noite de quinta-feira, dia 3, quando dormia num quarto de hotel de um complexo turístico da Praia da Luz, perto da cidade de Lagos, com os seus irmãos gémeos de dois anos, no momento em que os pais desceram para jantar.

Pensamos que se aprende a conhecer as pessoas, a descobrir-lhes defeitos e fragilidades, a partilhar um segredo, um sorriso e uma lágrima. Com o tempo, devíamos aprender a escutar melhor, como se tivéssemos um búzio encostado ao ouvido para sentir o sofrimento do outro (C.FAlves, in A Pietá, Pluma Caprichosa).

Olho para a televisão – zapping por todos os canais – e uma mãe e um pai já me são familiares, sofro com eles, sem eles saberem, na intimidade que se chama de estranhos. Que pensar, fica-se para ali a ouvir um apelo de uma mãe. Isto não é comigo, é com aquela pessoa, a qual eu posso ouvir como se ela não pertencesse ao meu universo. E assim estou eu, à noite, encolhido num canto do sofá. Escuto o pavor de uma mulher em perder uma filha, como se fosse perder a alma. No fundo do coração de cada mãe, de cada pai, esconde-se como um animal amedrontado esse medo de que a corda do tempo se parta do lado errado. O vazio deixado por uma filha que desaparece num precipício onde se despedaçam esperanças e sonhos. Aqueles pais perdem uma filha da maneira mais horrível, sem aviso. Naquela noite, a criança sorri pela última vez, e não sabiam que era o último sorriso, o último lugar da voz, dos gestos, do olhar. A menina desaparece e tudo se desfaz. E o dia passa, e todos os outros dias que vêm a seguir nunca mais são iguais. O dia passa, e a criança não regressa, não chama. A vida fica suspensa…

Eu não sei escutar esta dor porque ela é a derradeira. Assim fico para ali, a escutar o apelo de Kate e nada me prepara para esta mágoa. Oiço, com atenção, o mar salgado das lágrimas que escorrem por dentro dos olhos da mãe. Ela fala da criança cheia de arrebatamento, da beleza, da alegria, da felicidade que aquela filha dá a toda a família, a eles e aos gémeos, especialmente. "Nós precisamos de Madeleine e os irmão Shawn e Amelie têm saudades dela", concretizou. Na declaração, Kate McCann descreve a filha como "uma menina bonita, alegre, carinhosa e muito especial", implorando: "Por favor não lhe façam mal".

É isto a vida? Um apelo a anunciar como somos descartáveis e mortais? Uma lágrima cai pela minha cara. A mãe na TV, sofrimento em directo, vulnerável, perturbada, aflita. Culpa, tristeza e raiva. A criança que não aparece, a criança que parte sem aviso, a criança que ninguém esquece. Uma ilustre cronista portuguesa, atrás citada, há uns anos atrás e a propósito da perda de um filho recordava uma história de Raymond Craver sobre um padeiro que reclama o pagamento de um bolo de aniversário para uma criança. Irrita-se por a mãe ter encomendado o bolo e não o ter ido buscar. O pasteleiro fica a saber que o bolo destinava-se a um menino que morrera atropelado. Os balões por encher, o bolo de anos por comer, a vida por acontecer.

Novo noticiário, jornalistas, sociólogos, criminologistas, clínicos, policia, população. Vacilações, desesperos e incertezas. Os vizinhos da pequena vila inglesa de Rothley, Leicestershire, onde vive a família McCann ainda são um Porto de Abrigo que os acolhe em preces. Há uma mistura divina de energias partilhando o sentir querendo transpor a barreira da amargura, da tristeza e da revolta. Uma mão cheia de vontades, uma mão cheia de nada.

O que se diz a uns pais que de repente deixam de poder ver, tocar, sentir, ouvir a sua filha? Não há fórmulas, respostas ou remédios para se enfrentar a perda. Apenas gestos que devem priorizar o recomeço e, sobretudo, a vida. Acompanho as palavras de Kate e também eu rogo: "Por favor não lhe façam mal".

26 comments:

david santos said...

Obrigado, Luís. Muito obrigado.

Ka said...

Luis,


.....................
(não saem palavras, não dá...tu já as disseste todas)

Beijinho

Unknown said...

... e se orássemos ao Deus em quem não acreditamos?
Não é a rosa um milagre?
Obrigado, Luís... e um abraço!

Jonice said...

:*(
Com esta lágrima por mais este evento do qual o mundo está cheio, terrivelmente cheio, fica meu agradecimento por teu gesto, que por pequeno que seja perante a imensidão das crueldades que nos rodeiam, é gigante em termos de contribuição para o fortalecimento do humano na humanidade.

Flôr said...

E já passou uma semana!!!

Não devíamos fazer apelos destes, porque são incompreensíveis.

Não sei que pessoas são estas que são capazes de causar tanta dor.

Penso nos pais, mas a imagem da menina não me sai do pensamento.

"....
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!... "

Beijo
(Muito bom o teu texto)

Chawca said...

Qunado um filho morre pelo menos vc tem a certeza de que ele se foi, mas pelo que entendi, nesse caso é pior...
A dor de uma mãe ao perder uma filha ficou bem retratada numa imagem desse ano, quando uma mãe chorou aqui no Brasil a perda de sua filha vítima de bala perdida no Rio de Janeiro poucos dias depois da morte brutal do menino João Hélio. Uma amiga postou recentement eno blog dela, o Fragmentos de mim.
O endereço é esse http://crispenaforte.blogspot.com/
e o post é sobre o Dia das mães...

Um abraço

Alexandre said...

Uma fantástica dissertação sobre aquilo que somos ou deveríamos ser... coisas que não fazem sentido, cada vez acho mais estranho isto tudo, e continuo a pensar que o desfecho vai ser completamente diferente do que estamos à espera... mas o melhor desfecho era a menina aparecer!

Um abraço!!!

Liliana F. Verde said...

Olá!

Já tinha passado por aqui de raspão, mas voltei porque me aconselharam uma visita a este "blog". Gostei! ;)

De facto, este caso aperta-nos o coração e atropela-nos a existência. Contudo, não é só este caso que me faz tremer com medo. Se olharmos com olhos sinceros para a realidade (e nem sequer é preciso ligar a televisão), vemos um mundo que perde as suas crianças... Não as roubamos fisicamente, mas roubamo-las do mundo da sua meninice, da sua inocência, da sua infância, da sua juventude, do amor verdadeiro, da felicidade... É isto que também mete medo. Mas, claro, que o facto de uma criança não estar presente e de a nossa imaginação correr um mundo fora do nosso controlo nos atormenta e tira o sono. Não consigo imaginar que isto me pudesse acontecer.

Maria said...

Eu não consigo comentar....

Um abraço

Maria P. said...

É impossível descrever os sentimentos que este assunto provoca.

Beijinho Luís.

Flôr said...

Tens um "meme" à tua espera no meu canto.
Passa por lá.

Beijo

Bela said...

É uma tragédia,infelimente igual a tantas outras...

Fernando Pinto said...

Nestes casos ficamos mudos, entalados, quase sem respirar...

Maria said...

Tens um "meme" n'o cheiro da ilha...
Estás à vontade para fazeres o que entenderes.

Bom fim-de-semana

pin gente said...

quem pratica actos como este devia perder o direito de viver.

ATG said...

Não posso deixar de aconselhar a ida ao http://barvelho.blogspot.com e que se leia o texto sobre esta Maddie que já enjoa de tanta notícia e importância que lhe dão! E lembrarem-se dos portugueses desaparecidos?! Tenham dignidade e respeito pelos nossos e depois preocupem-se com os outros!

Anonymous said...

é horrível o que as pessoas fazem às pessoas...
mas pelo menos resta a esperança de que ela esteja bem e que não tenham feito nenhum mal irremediável a ela

Espaços abertos.. said...

Não tenho palavras para descrever tão grande crime.
Resta-nos rezar e ter muita fé por todas as vítimas de rapto.
Votos de um óptimo fim-de-semana
Bjs Zita

Anonymous said...

Um texto lindíssimo e que transborda de sentimento.

O mesmo já não poderei dizer, infelizmente, acerca do comentário do dj umas linhas acima.

Evidentemente que, depois de ler estas linhas que aí deixou, não tenciono acatar a sua sugestão e visitar o blogue indicado. Bastou-me o que li.

O facto de as pessoas se sensibilizarem com este assunto não significa qualquer esquecimento quanto a outros desaparecidos (http://www.pj.pt/htm/pessoas.htm). Trata-se tão-somente uma reacção de angústia e de incompreensão naturais relativamente ao sofrimento que uma criança que celebra hoje 4 anos deve estar a passar. Apenas isso. Das suas palavras, depreende-se que é incapaz de sentir o mesmo.

Como pai, custa-me sequer imaginar o que poderão estar a sentir os pais daquela criança…

Crystalzinho said...

Que belas as tuas palavras.
Rezo para que a Madeline esteja bem e possa regressar para junto da sua família.
Que mundo este em que vivemos, já nem as crianças deixam de ser vitimas destes crimes hediondos.
Bom fim de semana

Maria Faia said...

"Com o tempo, devíamos aprender a escutar melhor, como se tivéssemos um búzio encostado ao ouvido para apreciar o mar distante do sofrimento dos outros." - Profundo sentimento, digno de uma alma grande em amor, fraternidade e solidariedade.
Ainda bem que passei por cá.
Beijo de Bom Domingo

Anonymous said...

Obrigada pela forma como consegues falar por nós, falar de nós, falar para nós...

mjc

Luís said...

Sim meu caro Luís. Não lhe façam mal.

Nelson Ngungu Rossano said...

Revejo nas tuas palavras.

No fim espero que tudo acabe bem.

Abraço

Anonymous said...

As suas palavras Luís, transmitem tudo aquilo que sinto, são um retrato sofrido do que "nos" vai por dentro.
Mesmo não sendo mãe de filhos biológicos, sinto as entranhas rasgarem-se com o sofrimento que jorram dos olhos dos pais da menina. Aquela mãe é uma dor...


Quanto a si, DJ... você é! (ou não)
Imagine o que é (ou não), deve sentir por dentro o quanto vale.
Se vale pelas palavras que deixou sobre a menina que desapareceu, vai perceber que há momentos que o mais sensato é o silêncio.
Leia de novo, mas agora com atenção.
"Com o tempo, devíamos aprender a escutar melhor, como se tivéssemos um búzio encostado ao ouvido para apreciar o mar distante do sofrimento dos outros."

Um abraço para o Luís
LG

Maria Romeiras said...

É raro para mim falar neste assunto. Mas o post está demasiado sentido. A prioridade aqui não consiste em analisar a eficiência da polícia, o massacre dos media sobre a família - ajudará? - mas o real sofrimento da pequenina e dos pais. Levanta por aqui questões mais que éticas, de sentimentos. E são essas que leio, primeiro post com qualidade sobre este assunto que encontro. Perder um filho é uma dor muito grande, posso falar porque já perdi um e não, não se esquece nunca. São lutos que não passam e que marcam a ferros. Não consigo imaginar o que seja a ansiedade de não se saber o destino, tristemente provável, desta, como doutras meninas e meninos, usados e abusados por gente mal formada. Consigo, mais ou menos, sentir o desespero de quem dela goste e a solidariedade de todos os que sabem do caso e sim, também eu dou por mim a querer muito que ela esteja bem. Há pessoas que não merecem ter os pés no mundo, há situações intoleráveis de maldade no mundo dos homens.