Monday, May 14, 2007

um desafio chamado Adriano...

Resposta aos desafios de Maria (O Cheiro da Ilha), de AnaG (Andando e pensando) e de R. (O blogue da Ka):

Um "meme" é um " gene cultural" que envolve algum conhecimento que passamos a outros. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma.

Como toda gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou de nos convencer que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas.
in Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar.

Memórias de Adriano tem a forma de uma longa carta dirigida pelo velho imperador, já minado pela doença, ao jovem Marco Aurélio, o futuro imperador-filósofo, que deve suceder-lhe no trono de Roma. Pouco a pouco, através desta serena confissão ficamos a conhecer os episódios decisivos da vida deste homem notável. Escrita carregada de melancolia, revelando o lado solitário do imperador. Este romance é seguramente uma das mais importantes obras da literatura clássica contemporânea e, em particular, de Marguerite Yourcenar. Trata-se de um livro "difícil": a escrita faz-se na primeira pessoa, com o Imperador Adriano, ele próprio, vagueando pelas suas memórias. Mas logo que se faça a adaptação ao estilo da autora começa-se a ficar envolvido na teia e, surpreendentemente já estamos a sentir e a viver os tempos de Adriano. Memórias de Adriano é uma longa e última carta de Adriano, sobre a sua vida (que agora termina) e a do Império que procurou pôr ao serviço dos homens. É impressionante o exercício de reflexão, de literatura que este livro encerra, quase fazendo esquecer que também é uma ficção.

O futuro do mundo já não me inquieta; já não me esforço por calcular, com angústia, a duração mais ou menos longa da paz romana; entrego isso aos deuses. Não é porque passasse a ter mais sabedoria do homem; a verdade é ao contrário. A vida é atroz; sabemos isso. Mas precisamente porque espero pouco da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços de recomeço e continuidade parecem-me outros tantos prodígios que compensam quase a massa enorme dos males, dos fracassos, da incúria e do erro. Hão-de vir as catástrofes e as ruínas; a desordem triunfará, mas também a ordem, por vezes. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade, justiça reencontrarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.

As suas viagens à volta do Império, os seus sentimentos para com os seus amigos e inimigos, a intriguinha palaciana da sua corte, os seus pensamentos políticos e filosóficos sobre Roma e os Romanos, sobre os povos da Ásia Menor e do Egipto, sobre os bárbaros do Norte, as suas campanhas militares, tudo parece estar a acontecer e fazer parte da nossa própria vida. E o drama da paixão de Adriano pelo belo Antinoo, que se matou no auge do esplendor físico, está lá toda, maravilhosa, apaixonada, dolorosa, pungente, emocionante. Através dele, a escritora aristocrata sonha com um homem de Estado ideal, capaz de estabilizar a terra. E dá a esse grego de cultura e ambição, que protege as árvores ameaçadas, as suas próprias preocupações ecológicas. Ela evoca um homem que constrói a sua felicidade "como uma obra-prima", mas que a paixão por Antinous e a dor da sua perda - a partir dessa perda, Adriano interroga-se sobre o destino, a precariedade da vida e a inevitabilidade da morte, que não poupa senhores nem escravos - vão transformar numa vertigem de imortalidade a glória do ser amado. Ela divide com ele uma sabedoria inspirada nas doutrinas orientais que consiste em se preparar para a própria morte, em perceber o seu perfil, e finalmente entrar nela "com os olhos abertos". É uma peça de escrita fabulosa e única! Adriano é retratado como o governante ideal: cultor do classicismo grego, protector das artes e político preocupado com vida dos escravos.

É com incontida emoção que leio e releio a obra. Afinal, foi por causa deste livro que Carlos Drumond de Andrade ficou uma semana enclausurado em casa, com medo que alguém o apontasse na rua, acusando-o de desconher o universo fantástico de Adriano, a maior jóia da ourivesaria literária de nossos dias. Bem haja esta erudita por ter ficado quase trinta anos, elaborando e polindo, ligando factos e escolhendo palavras; vivendo e revivendo o atavismo do melhor tempo de esplendor. Não é fácil assumir o papel de Adriano, ter a consciência de César, ser deus e ser gente, lutar na tessitura da alma de um povo e de um mundo, a um só lance guerreiro, político e amante de cada face da vida.

Ninguém pode saber onde começa o autor e termina a personagem, uma vez que só esta historiadora-poeta e romancista teria tão grande liberdade em sentir-se Adriano. Sempre me encantou o dinamismo do Império Romano, onde o poder nunca desprezou a cultura e o culto dos imortais, jamais deixou de lado a vida de cada dia. Mundo de patrícios e plebeus, de guerreiros e artistas, de livres e escravos, Roma atravessou fronteiras com o sentimento de globalidade, fazendo de bárbaros cidadãos, mostrando a vida com beleza e civilidade, elaborando leis e directrizes, ensinando a viver. Não creio que exista melhor modelo para a história que a descrição e a narrativa da "grande dama da literatura". Uma penetração física e psicológica, um remoer de pequenos e grandes sentimentos, um improvisar momentâneo ou um consciente preparo de cada instante, de cada período. Adriano não se contenta apenas no viver, sente-se que é a mola maior do destino, um senhor do presente e do futuro, um gesto seu plasmando culturas, permitindo mudanças forjando consciências. Apesar de tudo, as incertezas, a busca de afirmação do ser humano, fraco e falível em toda parte, em todo o tempo, pois ninguém é dono da vida, nem o rei de Roma.

Fiquei mais rico depois de Memórias de Adriano. Acredito na grandeza e no poder das letras, naquele sentido de canalizar momentos de felicidade, unindo séculos em fracções de segundos, doação de património à curiosidade de cada espírito. De todas as invenções do homem a maior ainda é o alfabeto e, em decorrência dele, o livro. Quando aprendemos a ler o mundo é nosso, ninguém pode impedir de que sejamos senhores da nossa própria cultura. O milenar passa a ser o agora, a história é a página que vemos diante de nossos olhos, somos participantes de tudo. Às linhas que Marguerite escreveu com mãos emprestadas a Adriano, leio com olhos que neste momento não são apenas meus. São dele, são dela, são de outros que tiveram este livro na mão. São, ainda assim, muito meus enquanto veículo das palavras que ora me impressionam e assombram. Leio memórias possíveis de um homem, ao mesmo tempo de outros passados. Memórias da labuta da escritora, e de várias vidas entrelaçadas no ramo do viver humano. É um testemunho da condição humana e da história de uma vida! Lendo Memórias de Adriano sou, ou somos, testemunhas de algo que evidencia o que nos une a todos – escritora, leitor, imperador – em um fino fio mestre: aquilo que nos faz humanos. Sou testemunha de toda esta humanidade contida em palavras exactas, contida no relato do que é ser o velho Adriano em contenda com a própria morte, com as próprias “memórias e esquecimentos”. Sou testemunha da labuta de Marguerite, da jovem e da velha tentando escrever um livro muito maior do que ela mesma. Sou testemunha de meu próprio assombro ante o livro, sua história, e sua dimensão de vida. Sou ao mesmo tempo tudo e apenas um grão de areia no universo da vida.

Devolvo-lhes o livro. Duzentas e vinte páginas na primeira pessoa, sem diálogo, um discorrer das memórias inventadas de uma existência grandiosa. A glória, a violência, a sabedoria de um homem responsável pelo imenso situado entre a Bretanha e a Ásia Menor. Humanitas, Felicitas, Libertas: o governo do Adriano de Yourcenar está assente nesta tríade perfeita. Memórias de Adriano não pode deixar de ser lido. Em último caso, na falta de tempo, façam como alguém, que me contaram, arranjem uma doençazita qualquer e, deitados, penetrem na alma do livro; cavalguem sonhos, realizem o irrealizável.

Passo agora a todos este desafio, e não só a seis, os que têm visitado e partilhado este canto…

Antes de morrer, no dia 17 de Dezembro de 1987, na sua ilha, Yourcenar voltou a viajar, a "dar a volta à prisão", na companhia de um jovem americano, Jerry Wilson. Quando ele morre prematuramente, ela não tem forças para continuar sozinha por muito tempo, ela que gostava de dizer que só se morre de desgosto. Ela havia escrito profeticamente na juventude: "Solidão... Eu não acredito como eles acreditam. Não vivo como eles vivem. Não amo como eles amam... Eu morrerei como eles morrem."

15 comments:

Mar Arável said...

EXCELENTE - UM CAMINHO A SEGUIR

Alexandre said...

Também tenho dois «mêmes» para agradecer e responder - por aqui coisas muito interessantes. Acho que vou ler uma 2.ª vez...

Um abraço!!!

Flôr said...

Gostei do teu "meme" e de tudo o que li.

Beijinho

Maria Faia said...

"As Memórias de Adriano"...
Aguçou-me o apetite e, quando assim é, não há outro remédio que não seja satisfazê-lo.

Quanto ao seu "Meme" achei-o simplesmente delicioso...

A verdade indiscutível de que " o estudo de nós próprios, é o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos" devia ser uma linha orientadora da conduta de todo o ser vivo e pensante.
A Humanidade seria muito mais humana (perdoe-me o pleonasmo...).

Um abraço

Ruy Ventura said...

É um dos meus livros, daqueles que nunca esquecerei, como aliás acontece com tudo quanto Yourcenar escreveu.

Jonice said...

"Devolvo-lhes o livro." Estas tuas palavras não poderiam estar mais certas comigo. Pois na época em que teria lido Memórias de Adriano faltou-me a maturidade para transpor a dificuldade que o início da peça apresenta. Agora, motivada a partir de teu ponto de vista, será uma leitura maravilhosa. Muito obrigada!!!
Beijinho :)

Ka said...

Excelente 'meme'!! Aliás só podia, vindo de quem vem :)

MAs há um problema... ficamos a sentir os nossos 'meme' tão fraquitos... Tu pões a fasquia muito alta (onde deve sempre estar aliás)..hehe

Já está na minha lista de próximas leituras.

Beijinho

Anonymous said...

Aceito o repto e já agora, passa lá por casa ..."www.noitedemel.blogs.sapo.pt" e aceita o que por lá também é teu!

A leitura? Farei, com td a certeza ... agora até tenho tempo ...

Sim, como já alguém disse, colocas a fasquia muito alta. Mas eu faço batota ... passo por baixo. Sou pequenina, brother!

Bjs da Mel

Luís said...

Ofereceram-me esse livro no ano passado, por ocasião dos meus 25 anos: devorei-o e lembro-me de me ter sentido tão triste por ter esperado 25 anos por esse prazer...

É um dos do meu top =)

Chawca said...

Desde que comecei o blog prometi fazer um post sobre o imperador Adriano, já que tenho o mesmo nome dele. Mas sempre fui deixando pra amanhã, e amanhã e acabei esquecendo....Agora vi que deve ter sido obra do destino, pq depois de ler seu post vi que não posso falar dele antes de ler esse livro.,,., Vou procurar e ler, e depois posto o que achei...
Um abraço..

Maria said...

Este teu post arrepiou-me...
Li o Adriano da Yourcenar pela primeira vez há muito tempo, acho que vou pegar nele outra vez hoje, para o reler...

Eu sabia porque te desafiei para o "meme"... Eu sabia....

Beijos

Vulcano Lover said...

esse livro conmoveu-me muitissimo.
"Fiquei mais rico depois de Memórias de Adriano" Creio que essa frase pode bem resumir a impressão que eu teve quando li o romance. Obrigado por ter escrito estas palavras.

Fernando Pinto said...

Excelente leitura, num discorrer de pensamentos aconchegantes!

Abraço, de quem gostou muito do que leu!

FMOP

Max said...

Memorias de Adriano marcó mi adolescencia. Es mi libro. Es un lugar donde a menudo he de volver.
Soberbio lo que has escrito.
Un abrazo.

un dress said...

muitO...