Friday, July 13, 2007

abismo...


(Foto, in http://www.cryingoutloud.org/)

ABISMO
Como era hábito, ela enroscava-se mansamente
no sofá enquanto ele dedilhava, absorto, as teclas
do computador – ela folheando uma revista,
ele compondo infindáveis poemas.

Era o hábito de sempre. O mundo ficava,
inteiro, lá fora e a intimidade reinava, em
silêncio.

Dessa vez, porém, ela pousou a revista e
ficou a olhá-lo. Intensamente. Enternecida.
Longo tempo.

Deixa-me saber o que escreveste.

Ele um sobressalto. Pancada de gelo. Náusea.
E depois, em voz arrancada, a leitura sussurrada
do poema. Grande e ácido, convulsivo,
um poema de solidão, feito de muros implacáveis,
desencantos e securas. Nele jazia, irremediavelmente excluído,
o poeta que o lia. E era autêntico, o poeta, na angústia do
seu dolorido fel.

Afundava-se a madrugada, corriam, punhais,
os versos pela sala.

Silenciosa, hirta, ela ergueu-se e saiu. Como
se nunca ali tivesse entrado.
Carlos Pinto Coelho, in Magazine Artes, nº 53, 2007

texto/poema surpreendente. tocou-me como um silêncio, se é que se pode referir assim a algo cuja matéria e espessura é dada pelas palavras. o texto emudeceu-me, com a sua profundidade.

44 comments:

Inês Leitão said...

bonito, sim senhor :)

Anonymous said...

Nossa, realmente. Emudece e arrepia. Muito lindo.

Bjs

Anonymous said...

Caro Luís,

Só a poesia diz a verdade, sem relativismos. Pois ela é irmã da música, fala-nos para
lá das palavras.

Suspiros said...

Onde estava a intimidade?
:)
Bom fim-de-semana!

Ka said...

O primeiro comentário que me merece este post é a escolha da imagem, excelente como sempre.
Mas analisemos as palavras de Carlos Pinto Coelho e vejamos as diferentes leituras que podem ter.

Os hábitos e a rotina levam-nos por vezes ao desconhecimento. No decorrer de um relacionamento e já passada há muito a fase do conhecimento inicial onde estamos atentos ao mais ínfimo pormenor, por vezes acomodamo-nos no conhecimento que julgamos ter e nem sequer pensamos que o ser humano não é estático...ele evolui sempre, dia após dia...transforma-se perante o que vai vivendo e por vezes pdoe acontecer que quando damos conta temos á nossa frente um ser completamente distinto do que julgávamos ter.

O Silêncio é muitas vezes sinal de comunhão mas também de omissão. Quando duas pessoas partilham a sua vida têm momentos de silêncio nos quais existe uma comunhão quase completa de sentires e pensares. Mas estas mesmas pessoas também têm momentos em que o silêncio é a protecção para a omissão. Muitas vezes não chega a ser consciente...são apenas dias e momentos em que não nos apetece falar e partilhar...vamos omitindo o que pensamos e sentimos por acharmos irrelevante ou então por sabermos que é melhor assim. Mas estas omissões levam por vezes a uma abismo silencioso onde mais tarde nenhum dos dois saberá porque tal aconteceu...apenas sabem que foi assim

Não direi todos mas muitos de nós temos um eu só nosso...que mais ninguém (nem mesmo a pessoa com quem escolhemos partilhar a nossa vida) conhece. E esse eu vai sendo alimentado nestes momentos só nossos...momentos nos quais achamos que somos o verdadeiro eu...nu..despedido de preconceitos e defesas...sem máscaras...sem espartilhos. Mas pode acontecer de repente a outra pessoa conhecer esse eu. E é aí que aparece o abismo quando exposto o outro a tal realidade que ele nem queria saber conscientemente. Resta-lhe então a solução do desconhecimento...do abandono, na esperança de que tudo fique igual.

A situação do isolamento de um nas teclas do pc enquanto ela está também nas suas actividades acontece mais frequentemente do que imaginamos. Aliás a blogosfera é um bom exemplo disso. Quantos exemplos não vemos de pessoas que assumem não contar a ninguém do seu mundo real que têm um blog. E até vou mais longe...provavelmente haverá muitos casos em que o outro sabe e, num momento de intensidade afectiva queira conhecer este mundo, no entanto respeitam a existência de tal recanto por saberem que faz parte da sanidade mental do outro.

Beijinho

Whispers said...

Ola!!

Poetas somos todos e doidos tambem.
Bonito, realidade de hoje em dia
Solidao, esquecimento e onde esta a intimidade de almas que se amam e fazem parte uma da outra.
beijinhos com carinho
Whispers

avelaneiraflorida said...

Vim retribuir a visita ao meu cantinho!

Achei aqui muitos dos "mundos" com os quais não posso deixar de viver...

Voltarei, não apenas para ler com atenção os posts, mas porque me senti muito bem!!!!

Anonymous said...

Espero que tenha regressado, no dia seguinte. Ou que tenha, apenas, ido para o quarto, magoada e triste.
Os poetas também são grandes fingidores, ou não fossem poetas.

Gostei imenso da escolha deste poema. Não conhecia.

Anonymous said...

Comoveu-me..

Anonymous said...

Oi Luis,
Belo texto!
Acredito que a poesia sempre nos propõe um momento de reflexão.
Bom final de semana,
Paulo

Maria Faia said...

Olá Luís,
Da alma do poeta escorrem palavras de sentires construídas, imagens buscadas na profundeza de almas sabedoras da desilusão, da,tristeza e da emoção.
Eu, nunca descuro esse sentir porque ele é genuínino e, não raras vezes, sofrido, como sofrido é o desejo, a procura incessante de Seres Verdadeiros, Fiéis a si mesmos e a seus valores, em respeito pelos valores e sentimentos dos demais.
Quantas vezes as punhaladas nos chegam de gente afável, meiga e carinhosa, que mais não são que fingidores manipuladores de interesses escondidos nas profundezas das suas ambições?!...
Nos dias que se nos oferecem viver, ou sobreviver, fica-me a sensação forte que a Verdade, o ser integral e o verticalismo social, moral e pessoal caíram, verdadeiramente em desuso, ou ficaram esquecidos no tempo.
A solidão e o desespero apoderam-se das vítimas da mentira e da cobardia porque estes não sabem e nem querem lutar com as armas do fingimento e da mentira.
E, assim criam o seu mundo próprio, à parte daquele em que não não sabem nem querem viver.

Beijinho de Bom Fim de Semana

aramis said...

Excelente escolha!
Lindíssimo e profundo...
Beijinhos

un dress said...

golpe seco e fatal.

tão tão igual à vida.
tão inegável essa solidão que se levanta entre cada dois...
que reconhecemos que tacteamos à procura de razões
que desconhecemos...

fizeste-me lembrar um excerto de "judas o obscuro" de thomas hardy...


perturbador.muito...!!


beijO

hfm said...

E com razão. Obrigada pela visita.

isabel said...

o dia a dia que espero nunca conhecer

linda a imagem

beijos

Fernando Pinto said...

Os abismos fascinam-me!

Abraço,
FMOP

zetrolha said...

Estou todo molhado...de suor.Tá calor!

pin gente said...

e julgas que serão os únicos?

teresamaremar said...

Uma surpresa estas palavras. Boa surpresa.

Frioleiras said...

Bonita ligação...
palavras/imagem.

Anonymous said...

Nossa! Impressionante! Pelo que tenho visto, os poetas são capazes de decifrar almas e traduzí-las na magia da poesia.
Lindo!
Obrigada pela visitinha ao nosso bloguinho! Volte, sim?
Bom domingo!
Bjs

Jonice said...

Realisticaly striking...

Luna said...

Que tanto acontece na vida real, dois seres que estão sem estarem

**

Cöllybry said...

Maravilha de poesia...

Bjca doce

Eärwen said...

Realmente ficamos mudo diante desse "abismo" ...
Parabenizo pela escolha.

Deixo-te uma pérola incandescente de agradecimento pela visita ao Almas Poéticas e deixo um convite para que visites o meu mundo.

Eärwen

Lúcia Laborda said...

Passando pra desejar uma boa semana!
Bjs

Bandida said...

são autênticos os poetas. cravados de palavras e silêncios. e nada mais a não ser pousar os olhos na distância dos lugares.

bom dia, Luís. com nevoeiros e sensações.


beijo

B.
_________________________

HNunes said...

O sermos autenticos e sinceros no que escrevemos, por vezes pode ser o ponto final ou a vírgula.
Fabuloso o poema
Bjos

GarçaReal said...

Reamente profundo este texto.
Como um inaudivel silêncio pode dizer tanto...Como ela ignorava a alma e o sentir do companheiro.
Muito bom.

bjgrande

Maria P. said...

Sublime.

Beijinho*

Flôr said...

A qualidade, do que se escreve aqui, é o incentivo para continuarmos a sermos visita assídua, mesmo que silenciosamente.

Quantas vezes estamos acompanhadas, mas demasiado sós....

Beijo

Anonymous said...

"...o poeta, na angústia do
seu dolorido fel..."

Belo sim Luís!
Muito!!!

Boa semana...
Abraços

Anonymous said...

Passo por aqui quase sempre mas raramente dou sinal.

As tuas escolhas continuam a ser um estímulo à ciber-navegação.

Um beijinho

MJC

Anonymous said...

Luís


gostei de pôr a leitura em dia.

abraços

bru

Maria Eduarda Colares said...

surpreendente,, efectivamente. Como é que é possível que na intimidade do dia a dia, 365 dias por ano, a solidão e o isolamento possam ser tão profundos. E as pessoas tantas vezes a morrerem sem terem sequer sabido. Menos infelizes, provavelmente. Se mo mostrassem sem assinatura nunca adivinharia o autor!

Lana said...

Caro Luis
mto obg pela visita
quando aqui cheguei confesso que fiquei muda ao ler este belo horrivel e desconcertante poema encantado.
1 sorriso mto luminoso e serás sempre bem-vindo!
Lana

Mar Arável said...

OBVIAMENTE DO CARLOS PINTO COELHO

Chawca said...

Nem tudo é o que parece...

Profundo e tocante,.,..

Adorei

Anonymous said...

Feliz dia do amigo! Bom fim de semana!
Bjs.

GarçaReal said...

Um beijo em dia da "Amizade".

Páginas Soltas said...

Carlos Pinto Coelho na sua plenitude!

Não só descreveu a intimidade e a rotina de um casal... Como a de muitos mais!!

Obrigada Luis... Pela partilha!

Bom fim de semana

Bjs da

maria

o Reverso said...

uma mistura de sentimentos, ao seu amor silencioso, contemplativo, expectante.

claro que o poema é uma maravilha...

abraço.

Kalinka said...

Meu post derradeiro será a entrega de troféus a todos os amigos/as que fiz através da Blogoesfera.
Também és nomeado/a.

Em vésperas de «fechar a porta» do meu blog, venho desejar um óptimo domingo.
Boas Férias.

Até sempre.

mixtu said...

texto lido em tempo, mas agora ganhou outra profundidade

abrazo europeu