
(Foto, in http://www.cryingoutloud.org/)
ABISMO
Como era hábito, ela enroscava-se mansamente
no sofá enquanto ele dedilhava, absorto, as teclas
do computador – ela folheando uma revista,
ele compondo infindáveis poemas.
Era o hábito de sempre. O mundo ficava,
inteiro, lá fora e a intimidade reinava, em
silêncio.
Dessa vez, porém, ela pousou a revista e
ficou a olhá-lo. Intensamente. Enternecida.
Longo tempo.
Deixa-me saber o que escreveste.
Ele um sobressalto. Pancada de gelo. Náusea.
E depois, em voz arrancada, a leitura sussurrada
do poema. Grande e ácido, convulsivo,
um poema de solidão, feito de muros implacáveis,
desencantos e securas. Nele jazia, irremediavelmente excluído,
o poeta que o lia. E era autêntico, o poeta, na angústia do
seu dolorido fel.
Afundava-se a madrugada, corriam, punhais,
os versos pela sala.
Silenciosa, hirta, ela ergueu-se e saiu. Como
se nunca ali tivesse entrado.
Carlos Pinto Coelho, in Magazine Artes, nº 53, 2007
texto/poema surpreendente. tocou-me como um silêncio, se é que se pode referir assim a algo cuja matéria e espessura é dada pelas palavras. o texto emudeceu-me, com a sua profundidade.