Sunday, July 01, 2007

Arpad, ou por detrás de uma grande mulher...

Enquanto o J. e a avó se regalavam a ver a última versão do Shrek, eu, a L. e o meu irmão Q. rumámos com destino ao romântico jardim das Amoreiras e consequentemente à Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Instalada na antiga Real Fábrica dos Tecidos de Seda, num edifício do século XVIII, restaurado e adaptado para abrigar um museu, a Fundação tem por principal objectivo a divulgação da obra do casal de pintores. Além da sua colecção permanente, que cobre um vasto período da produção de Arpad e de Vieira da Silva são apresentadas regularmente exposições de artistas que partilharam afinidades artísticas ou que com eles conviveram.

Neste momento está patente Arpad Szenes - Obras da Colecção que reúne 129 obras de diferentes períodos, formatos e técnicas (desenho, pintura e gravura) agrupadas por séries ou temas recorrentes na sua produção e que salientam a originalidade do pintor húngaro. Interessante apreciar muitas das obras que nunca saíram das reservas, auto-retratos de infância, estudos para ilustrações ou revistas, telas que sem contexto não se entenderiam. Retrospectiva feita com a prata da casa cujo objectivo, julgo, é dar a conhecer o processo criativo do pintor que, discretamente, se afastou de cena para deixar brilhar a sua mulher. Um autor difícil de classificar, de incluir numa escola ou corrente artística, mas que acompanhou as inovações do seu tempo. Um homem que, com grande naturalidade, adaptava os suportes e a técnica às necessidades da obra, transitando da tela para a madeira ou papel de jornal, do óleo, pastel ou têmpera para o lápis de cor, carvão, caneta ou guache.

Registei a beleza dos auto-retratos feitos na escola primária, retratos do pai e da mãe (não tanto por serem obras maiores, mas pelo seu valor documental e emocional), desenhos de nus académicos cuidadosamente sombreados ou ensaios de traço vigoroso e rápido, composições estruturadas pela mancha sob influência do cubismo e surrealismo, figurações da época do exílio ou estudos para cartazes e capas para a revista Cimaise.

Arpad Szenes, que nos primeiros tempos em Paris ganhou a vida a fazer caricaturas, regressaria, já no último período de vida, às artes gráficas. Tendo igualmente desenvolvido pesquisas no campo da gravura e da ilustração (por exemplo, de O Canto de Amor e de Morte do Cornetim Christophe Rilke, de Rilke).

Temos oportunidade de observar diferentes maneiras de desenhar, desiguais abordagens e nota-se o empenho por parte dos responsáveis da exposição em exibir uma faceta mais humana, mais pessoal, mais sensivel. Valorizando a recorrência dos temas trabalhados pelo artista em detrimento da ordem cronológica, esta é uma retrospectiva que inclui arquitecturas (ruas de Budapeste), efeitos ópticos com espelhos (Mirroirs) e movimento (conjuntos sobre dança ou Cyclistes), não descurando um canto para a solidão (Conversation), a comunhão (Banquets) ou experiências, até agora inéditas, como Tryptique pour Creuzevault, paisagem pintada no interior de uma caixa/janela.

Dos Portrait de Famille (em que se retrata a pintar a mulher, um dos seus modelos de eleição) à fusão do casal com objectos do seu quotidiano, das figuras a passear num jardim (série Nova Friburgo) ao absurdo da guerra (Hommes-Trompettes), das cores vibrantes que usou nas obras sobre a praia da Caparica e os papagaios de papel até à dissolução das formas e esvaziamento da tela na fase final da sua vida, esta é uma exposição sobre "a procura da luz pura" (cf. Paula Lobo, in http://www.dn.sapo.pt).
Esta exposição impunha-se até por uma questão de dívida moral para com a sensível qualidade da obra do artista…

Arpad Szenes (Budapeste, 6 de maio de 1897 — Paris, 16 de janeiro de 1985) foi pintor, gravurista, ilustrador, desenhista e professor, naturalizado francês em 1956. Influenciado pela música de Bartok e de Kodaly, bem como pela arte de vanguarda de Lajos Kassák, percorreu as capitais artísticas europeias e fixou-se em Paris em 1925 mas a sua trajectória artística ficou profundamente ligada ao mundo latino, devido – em grande parte – ao seu casamento com a portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, com quem realizou inúmeras viagens à América Latina para participar em exposições. Devido ao facto de ser judeu e de Vieira da Silva ter perdido a nacionalidade portuguesa, eram oficialmente apátridas. Então, o casal decidiu residir por um longo tempo no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e no período pós-guerra. Apesar da sua personalidade discreta, é considerado um dos melhores representantes da Escola de Paris dos anos 40, tendo-lhe sido dedicadas várias retrospectivas a partir dos anos 70.

19 comments:

Maria P. said...

E que bem que as tuas palavras nos desenharam esta tela!

Bjos*

Menina do Rio said...

Gostei :)

beijos

Jonice said...

É um GRANDE homem aquele que, discretamente, se afasta da cena para deixar brilhar uma amada grande mulher.
Have a great week, Luís!
Beijinhos :)

Anonymous said...

Foi um casal exemplar.

Isabel Victor said...

"(...) romântico jardim das Amoreiras e consequentemente à Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Instalada na antiga Real Fábrica dos Tecidos de Seda, num edifício do século XVIII, restaurado e adaptado para abrigar um museu, (...) "

Conheço e ADORO !
Muito importante o que aqui escreves. Gostei imenso de passar por aqui.

Gostei

BlogAbraço

isabel

vida de vidro said...

Um pintor que conheço mal. Mas o teu texto fez-me ficar com muito interesse. **

GarçaReal said...

Gostava de poder ver esta exposição,pena que viva longe...
Sou apreciadora de pintura, principalmente, carvão.

Obrigada pela tua minuciosa descrição...Assim sempre posso imaginar!
Obrigada pela visita.

bj

João Cordeiro said...

Muito importante o que aqui escreveste. Aprender é fundamental.

Obrigado Luis pela tua visita.


Um grande abraço sonhador

Vulcano Lover said...

sempre tenho imensa inveja de te ouvir e não poder ir para Lisboa ver as exposições que tão bem descreves...
Um forte abraço, amigo.

ninguém said...

Mais um dia em que aprendo coisas belas contigo, caro Luis. Obrigada.
maristela

Maria said...

Ora aqui está um Museu onde tenho que voltar, um dia destes...
É tão bonito, e não vou lá há tanto tempo...

Obrigada, Luís

Beijos

Frioleiras said...

A Vieira da Silva... por detrás de um grande homem, isso , sim !

Sem ele...
ela não tinha chegadao aonde chegou embora eu ache que ela foi a pintora portuguesa mais genuina, q menos influências bebeu... (P.Rega tirou mt de Balthus, e até , talvez de Delveaux, e até do S Freud ,talvez...)
Esta é a minha opinião , abalizada apenas por "feelings" meus...

Reparei no teu perfil... mt coisa em comum com os meus gostos... mas não gostarias também de Bach ? Exprimenta!

Páginas Soltas said...

Obrigada Luis, pela tua minuciosa narrativa quanto á exposição de pintura e vida do pintor!

Uma das minhas filhas, foi visitar a mesma exposição a semana passada... mas ainda não teve " tempo" para me elucidar com o que viu!

Obrigada meu amigo, pela visita guiada... vi pelos teus olhos.

Beijos

Maria

Luís said...

Já apontei na agenda =)

Anonymous said...

Boa recensão. Deixo-lhe um poema de Peter Huchel, um grande poeta alemão, traduzido por mim.
Espero que goste.

***********************************

O MELRO DA ÁGUA

Pudesse despenhar-me
iluminado
na fluente escuridão

para pescar uma palavra,

asim como este melro da água
que através dos ramos do amieiro,
do fundo pétreo do rio,

retira o seu alimento.

Lavadores de ouro, pescadores,
ponde as ferramentas de lado.
Pois o tímido pássaro

quer executar o seu trabalho, em silêncio.

Maria Faia said...

Olá Luis,

Deixei-lhe um desafio no Querubim Peregrino.

Delicie-nos, como sempre.

P.S. Voltarei logo que puder para comentar esta maravilha.

Beijo

teresamaremar said...

Grande casal esse... talvez a essência estivesse no caminharem lado a lado, a diferentes modos mas num mesmo compasso.

um lugar a revisitar.

teresamaremar said...

Uma nota para os livros e filmes a correrem ao lado...

grandes títulos, grandes imagens!

Fernando Pinto said...

Visitei a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, na zona das Amoreiras, na altura em que estagiava na redacção de Lisboa do jornal "Público". Não fui como jornalista, apenas como amante da arte... Sabes: amei, amei, AMEI!

Bela escolha!

Abraço,
Fernando Manuel