Marcello Duarte Mathias, Berlim, 20 de Junho de 2003 (diário)
Cidade cento e cinquenta vezes bombardeada, reconstruída, cidade estaleiro, cidade-Sísifo, destruída e arruinada, recomeçada e reconstruída, arrasada e reposta, colecção de sonhos sonhados, desfeitos e refeitos. Tudo nela caiu: caiu o nazismo à mão dos russos, a Guerra Fria com o Muro, caiu a Prússia, caiu Kleist tombado no Wahnsee, caiu Brecht às mãos dos aparatchichs (cf. Jorge Silva Melo, in Século Passado, 2007). Uma cidade mil vezes interrompida, violentamente embargada. Como é possível que muitos dos melhores tesouros arquitectónicos tenham sido destruídos pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial e que a cidade se tenha reedificado tão rapidamente? A cidade mais povoada do país e a segunda mais populosa da União Europeia, depois de Londres. Um dos mais influentes centros de política, cultura e ciência europeia. É "casa" para algumas das mais importantes universidades, orquestras e museus. O rápido desenvolvimento da metrópole atraiu uma reputação internacional aos seus festivais, arquitectura contemporânea – cidade conhecida pela sua excitante modernidade e estonteante arquitectura – e vida nocturna, sendo um grande centro turístico e residência para pessoas de 180 nações diferentes. Berlim reinventa-se. Poucas cidades no mundo sofreram tantas transformações históricas. Sempre em processo de mudança e, segundo o historiador Karl Scheffler, esta é uma das razões que a tornam a capital mais vibrante e estimulante da Europa.
Foi a Berlim que chegámos já à noitinha, sem malas; estas supostamente pairavam algures em Frankfurt. O meu bioritmo acusava sinais de impaciência por me sentir na cidade, à noite, e só com a roupa que tinha no corpo. Já me estava a ver endividado no KaDeWe, ali bem perto. Enganei-me, uma hora depois a recepção do hotel avisava que os nossos pertences tinham chegado. Óptimo, a vida sorria novamente.
Se Berlim já era uma cidade pela qual manifestava curiosidade, embora durante anos a tenha preterido a outras, elejo-a agora seguramente como uma das mais interessantes capitais europeias. O primeiro contacto sobretudo com o lado oriental pode parecer ambíguo: a dúvida fica entre a beleza das estruturas antigas e a tecnologia utilizada na construção da parte nova. Boa parte da cidade está coberta por redes de protecção, e alguns, poucos, museus estão temporariamente com as portas fechadas, mas nada disso diminui a beleza do local. São 180 museus, cerca de 500 igrejas, mais de 5.000 bares (com cerca de 6.800 marcas de cerveja alemãs), 135 teatros e três Óperas, além dos parques, monumentos e galerias espalhados pela cidade.
Com esta perspectiva mergulhámos em alguns sítios da cidade. Dias amenos em Berlim, com o sol a deitar-se nas avenidas e as cervejas Berliner Weisse nas esplanadas. O autocarro foi útil para o primeiro reconhecimento da cidade: passa por quase toda a antiga parte oriental e facilita a localização dos museus, galerias de arte, monumentos e teatros locais. Depois disso e in loco, a alma derrete-se com:
Valem também os passeios pela praça Gendarmenmarkt, onde está o Schauspielhaus (principal sala de concertos da cidade) e a catedral francesa, na qual há um museu que conta a história dos refugiados protestantes, o Huguenot Museum. A Catedral de Berlim, a Dom, é de visita obrigatória; diz a L. pois a cúpula da igreja permite uma visão completa da cidade, além de se conhecer um pequeno museu de história, que conta todas as fases de restauração da catedral, erguida entre 1894 e 1905. Frisou a L. porque eu e o J. ficámos relaxadamente sentados nas escadarias à porta da catedral.
Do antigo lado ocidental de Berlim, registe-se a avenida Kurfürstendamm, ou simplesmente Ku’damm, como é conhecida – tem aproximadamente quatro quilómetros de extensão e ainda abriga muitas lojas famosas, restaurantes interessantes, uma infinidade de bares e cafés, cinemas, teatros e a Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche, igreja que até hoje conserva as marcas dos bombardeios sofridos durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive com a sua torre e o seu sino, único património ainda em pé. Nessa região, há ainda o Zoologister Garten, o mais proeminente sitio para o J., que segundo a sua eclética opinião só rivaliza com o busto da Nefertiti e o Legoland Discovery Centre (enquanto J. e L. visitavam o Zoo, eu passeava pelas ruas da cidade tendo a oportunidade de conhecer a artista plástica nova yorquina Phoebe Washburn, no Deutsche Guggenheim, espaço que fazia parte do meu termo de intenções). Há uma infinidade de coisas a registar também na antiga região de Berlim Ocidental, como, por exemplo, o Grosser Stern, cruzamento de cinco ruas importantes que, quando olhado de cima, tem o formato de uma estrela.
Potsdammer Platz, 1914, Ludwig Kirchner
Entre ocidente e oriente, termos que agora só fazem sentido histórico (e patrimonial) espreitámos e visitámos ainda Schloss Charlottenburg, Museum Berggruen (um palacete frente ao Palácio de Charlottenburg, integrando cerca de uma centena de obras de Picasso de todas as fases, além de mais de 20 obras de Matisse e um assinalável número de peças de Paul Klee, Cézanne, Van Gogh, Alberto Giacometti e Georges Braque), Brandenburger Tour, o Neue Nationalgalerie (um surpreendente edifício minimalista, albergando artistas como Edvard Munch, Ferdinand Hodler e Óscar Kokoschka, Paul Klee, Kandinsky, para não falar de Dali, Magritte, Max Ernst…). Para sentir a vibrante energia da nova Berlim, nada melhor do que nos perdermos na Potsdamer Platz. Aqui e entre outras atracções descobri a famosa Marlene, a Dietrich, no Filmmuseum Berlin. Um dos tesouros do museu é a colecção dos objectos pessoais da diva berlinense e não foi sem emoção que depois de umas bebidas nocturnas no Oscar Wilde Pub e no Van Gog Pub, nos demos conta que estávamos frente ao Berliner Ensemble, teatro que tem sido testemunha de muitas mudanças importantes da vida cultural de Berlim (já dirigido por Bertolt Brecht).
Já quase de partida ainda entrámos no Automobil forum, onde litografias e cartazes de exposições de Chagall, Picasso e Dali esperavam por nós…
Uma cidade assim é uma projecção de felicidade (não obstante o passado), que só um país que toma consciência da harmonia da arquitectura e do valor substantivo da beleza pode prezar e acarinhar. Seguramente uma das mais belas cidades europeias. Evidente falta de tempo para ver muito mais. Decididamente adorei Berlim!
P.S Chegados à cidade das sete colinas, voltada a sul e com um rio azul, já noite carregada, uma das duas malas não aparece no tapete rolante. Os balcões dos "Perdidos e Achados" na zona de chegadas do aeroporto de Lisboa, estavam invadidos por dezenas de passageiros visivelmente irritados com o desaparecimento das bagagens. E a novela recomeçou….
23 comments:
Luis,
"Brigados" pela partilha desta lindissima viagem"...apesar dos contratempos!!!!
Assim, nós que não fomos, podemos ter a oportunidade de lá ir espreitar...através das tuas pistas!!!!
"Brigados" por este post!!!!!
Bjks
É um prazer voltar aqui, viajar nas tuas palavras.
Beijinhos*
Obrigada por este viagem tb! E espero que recuperes a bagagem! beijocas grandes
É uma viagem repleta de sensações que consegues transmitir de forma magnífica.
Parabéns
You never disappoint, Luís! I couldn't wait to come and read about your trip after having seen your note on my blog.
Bom fim de semana!
Beijinhos :)
NÃO QUERES VIR OUVIR UM POUCO DA MINHA OPERA PREFERIDA ?
AO MESMO TEMPO FAZIAS-ME COMPANHIA
D. MARIA
Concordo contigo, Luís; berlim é um assombro! quando a visitei pela primeira vez, o muro tinha sido rompido há escassos meses e aina se podia percorrer uma longa extensão dele. a mais interessante visita foi a que fiz, lentamente, descendo a Unten_den_Linden e ir descobrindo os "cacos" de uma Rda, acabada de sucumbir, mas ali estavam magestosas todas as referências que assinalaste.
Passei lá o fim de ano numa então famosa cervejaria/bar, bem à beira da Ku'damm, catedral da vida gay da cidade, onde os cânticos das velhas melodias germânicas eram entoados num sonoro coro. e não posso esquecer uma fabulosa exposição que vi no Reichstag sobre a destruição total da cidade no final da guerra e a forma como os seus habitantes, os que ainda restavam, se recompuseram.
Ao fim de anos, voltei a berlim; os vestígios da RDA desapareceram, a cidade está esplendorosa de vida, cultura e lazer. Do nada, onde antes havia o muro está o símbolo máximo da nova Berlim, com as suas monumentais arquitecturas: a Potzdam Platz.
É claramente a cidade da moda, actualmente , na Europa e merece uma atenta visita, mesmo para quem não morra de amores pelos alemães, como é o meu caso.
desculpa o espaço que te tomei, mas a culpa é tua, fazes-nos abrir a boca com o espanto das tuas palavras.
Abraço.
Pena as minhas viagens a Berlim terem sido sempre em trabalho...:(
Mas por aqui e agora, compensei.
Abraço
obrigada....
vinda directamente do piano...:))))
bom vê.lo.
Berlim tem uma secreta música....de um tempo peculiar e de uma cidade onde a Arte é ainda uma expressão de vitalidade.
beijo.
imf.
Tenho mesmo que ir a Berlim um dia, cidade que não conheço, mas que me desperta uma enorme curiosidade. Curiosamente, sempre que vejo a imagem do Grozs com que inicias o post, associo-a ao Berlin, Alexanderplatz do Döblin.
Olá Luís,
Parabéns pelo teu excelente Post sobre Berlim. Como vejo ficas-te encantado com esta cidade. A última vez que estive em Berlim foi há dois anos. Estive alojado precisamente num hotel da avenida Kurfürstendamm. Berlim é uma cidade fascinante. Fico muito contente que tenhas gostado.
um abraço:
Luís
Faz muito tempo já que visitei Berlim, ainda ficava o espaço vazío do muro y o horizonte era um mar de gruas. Cidade vertiginosa y cheia de contrastes. Reinventada tantas vezes... sempre viva. Provocou-me a mesma sensação do que a cultura germánica... Desconcerto.
Bem-vindo à península.
Beijos.
Obrigado pela excelente visita guiada a berlim. Nunca lá fui mas fiquei com vontade.
Um abraço.
Que deliciosa e fascinante viagem nos proporcionas com o teu relato, Luís! Não conheço Berlim e sequer havia pensado em lá estar, um dia, mas agora que no-la apresentaste de forma tão ricamente detalhada, deu vontade de voar daqui imediatamente. Parabéns pela perfeita descrição!
Grande beijo!
Este teu cantinho, amigo Luís, é do melhor que já vi na blogosfera... És, sem dúvida, uma pessoa muito especial! E ainda bem para nós que gostamos de navegar pelos teus mundos, pelos mares insondáveis deste teu Infinito Pessoal!
Obrigado por tudo!
Abraço do FM
Luiz, obrigada meu amigo, pela oportunidade de conhecer um pouquinho desses lugares. Esse é um mundo que pra mim é distante...
Fique com Deus! Boa semana!
Beijos
Conheci Berlim quando tinha dois lados e várias vezes de corpo inteiro.As pessoas sempre as pessoas
O seu postal é bonito como sempre
Bem-Vindo ao nosso adorável deserto
Abraço
Olá, Luís!
Passei para ver este tão belo trabalho e desejar-te umas boas férias.
Fiquei com vontade de dar lá "um salto".
Beijos Luís e wb
é efectivamente uma magnífica cidade, Berlim. Uma magnífica capital europeia. Esta viagem que nos ofereces aqui é excelente,transmite a cidade, desperta o apetite. obrigada.
Como eu o compreendo, visitei Berlin no fim de 2005, ia pouco convencido da minha escolha, mas a cidade deixou-se amar e agora é um amor eterno, de beleza discreta, cultura vasta e cheia de história um centro europeu a não perder.
Pois é...uma magnífica descrição...como sempre nos habituaste!!!
Não conheço Berlim embora seja uma das cidades pelas quais tive sempre uma certa curiosidade.
Fica o registo e claro que vai subir na lista das prioridades...hehe
Beijinho e boa semana
Eu só queria fazer um breve comentário para dizer que eu estou feliz por ter encontrado o seu blog. Graças
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