Assim como num dia de Verão as ondas se juntam, se levantam e caem; e o mundo inteiro parece estar a dizer «é só isto» cada vez com mais veemência, até que o próprio coração no interior do corpo deitado ao sol na praia diz também: é só isto. Não tornes a ter medo, diz o coração
Mrs. Dalloway é o primeiro dos romances de Virginia Woolf que subverte a narrativa tradicional. O título inicial do livro era As Horas, uma referência ao tempo em que a acção decorre. A I Grande Guerra terminou, o verão assenhoreia-se de Londres e Clarissa, prepara-se para dar uma das suas festas. Mas quando a noite se aproxima, o aparecimento de Peter Walsh, o seu primeiro amor regressado da Índia, vai atiçar o passado, trazendo-lhe à memória os sonhos de juventude e a querela que muitos anos antes a precipitou num casamento sem brilho. Uma mulher que amava a vida, mas que se sentia oprimida por uma sensação de perda emocional, de aperto da sua existência. De súbito, Clarissa tem consciência da força da vida. Woolf expõe assim diferentes modos de sentir, evocando, mais que o espírito do tempo, o espírito da própria vida no olhar de cada personagem. Mas a singularidade da obra vem dessa espécie de sósia de Mrs. Dalloway, que é Septimus Warren Smith, enlouquecendo com o trauma da guerra e com quem Clarissa parece partilhar uma mesma consciência (assim, a escritora aproveita para acusar suas próprias angústias; uma espécie de auto-retrato). Septimus com as suas alucinações e esquizofrenia, delirando com um amigo que morreu em combate, é um importante contraponto a Clarissa: uma chaga aberta, a sua dor exposta ao mundo, o ressentimento, a sua ferida, a sua intimidade; ela esconde o seu silêncio, cobre-o com uma capa de falsa confiança, com festas. Ela lamenta o passado; encontra-se incerta acerca do presente; e teme o futuro, o assustadoramente pouco familiar, e iminente, processo de envelhecer. Mas a obra também sugere que tal como as personagens, as pessoas tendem a adaptar-se às circunstâncias sociais, mesmo que isso não os faça feliz. Clarissa pretende que os seus convidados saiam de sua casa com a sensação de que viver vale a pena…
Domingo ao fim da tarde numa Lisboa abandonada, vejo Mrs Dalloway saltar das páginas do livro para uma sessão especial no Quarteto (filme de 1997). Adaptação do romance pela actriz Eileen Atkins, Mrs. Dalloway reaparece com a irrepreensível técnica dramática de Vanessa Redgrave na interpretação da personagem principal. Pareceu-me que o filme, apesar de fazer certas escolhas ao nível do discurso, não é uma adaptação radical da obra da escritora. Embora ao utilizar certos recursos e introduzir certas mudanças, o filme permaneça fiel ao “espírito” do romance e consegue actualizar seus significados.
Mrs. Dalloway é o primeiro dos romances de Virginia Woolf que subverte a narrativa tradicional. O título inicial do livro era As Horas, uma referência ao tempo em que a acção decorre. A I Grande Guerra terminou, o verão assenhoreia-se de Londres e Clarissa, prepara-se para dar uma das suas festas. Mas quando a noite se aproxima, o aparecimento de Peter Walsh, o seu primeiro amor regressado da Índia, vai atiçar o passado, trazendo-lhe à memória os sonhos de juventude e a querela que muitos anos antes a precipitou num casamento sem brilho. Uma mulher que amava a vida, mas que se sentia oprimida por uma sensação de perda emocional, de aperto da sua existência. De súbito, Clarissa tem consciência da força da vida. Woolf expõe assim diferentes modos de sentir, evocando, mais que o espírito do tempo, o espírito da própria vida no olhar de cada personagem. Mas a singularidade da obra vem dessa espécie de sósia de Mrs. Dalloway, que é Septimus Warren Smith, enlouquecendo com o trauma da guerra e com quem Clarissa parece partilhar uma mesma consciência (assim, a escritora aproveita para acusar suas próprias angústias; uma espécie de auto-retrato). Septimus com as suas alucinações e esquizofrenia, delirando com um amigo que morreu em combate, é um importante contraponto a Clarissa: uma chaga aberta, a sua dor exposta ao mundo, o ressentimento, a sua ferida, a sua intimidade; ela esconde o seu silêncio, cobre-o com uma capa de falsa confiança, com festas. Ela lamenta o passado; encontra-se incerta acerca do presente; e teme o futuro, o assustadoramente pouco familiar, e iminente, processo de envelhecer. Mas a obra também sugere que tal como as personagens, as pessoas tendem a adaptar-se às circunstâncias sociais, mesmo que isso não os faça feliz. Clarissa pretende que os seus convidados saiam de sua casa com a sensação de que viver vale a pena…
Domingo ao fim da tarde numa Lisboa abandonada, vejo Mrs Dalloway saltar das páginas do livro para uma sessão especial no Quarteto (filme de 1997). Adaptação do romance pela actriz Eileen Atkins, Mrs. Dalloway reaparece com a irrepreensível técnica dramática de Vanessa Redgrave na interpretação da personagem principal. Pareceu-me que o filme, apesar de fazer certas escolhas ao nível do discurso, não é uma adaptação radical da obra da escritora. Embora ao utilizar certos recursos e introduzir certas mudanças, o filme permaneça fiel ao “espírito” do romance e consegue actualizar seus significados.
Tal como em Ulisses de James Joyce, Mrs Dalloway decorre num único dia, que inicia às dez da manhã e prolonga-se até as três da madrugada seguinte, com uma marcação contínua e pontual aos toques do Big Ben. É um dia na vida da mulher de um desinteressante membro da câmara dos Comuns, uma encantadora senhora de cinquenta e dois anos, mas que como tantas outras, sobrecarregada por uma série inesgotável de tarefas. Podia passar-se em Lisboa (pode estar a passar-se em qualquer lugar, em 2007), uma mulher portuguesa (ou um homem) preocupada como o que não teve coragem de fazer, com o que ficou para trás. Arrependimento? Falta de coragem? Falta de força anímica para ainda alterar o futuro? Clarissa Dalloway pode ser uma qualquer mulher que se cruze connosco. Foi ao fim da tarde, “quando as luzes de apagavam e acendia o coração”, que Clarissa, agora em tela (embora com 10 anos de atraso [meu]), me convidou para a sua festa.
A festa de Mrs Dalloway é como todas as festas, um verdadeiro microcosmo social.
Virginia Woolf esmiúça magistralmente a subtileza das reacções e das angústias dos seres humanos artificialmente confinados dentro dos limites impostos por uma ocasião social. Drama romântico e melancólico, o livro e o filme oferecem-nos um estudo existencial sobre os efeitos inevitáveis – e o preço a pagar –pelas opções de vida.
Ver trailer de Mrs Dalloway (1997).
A propósito do tema ver trailer de The Hours (2002)
37 comments:
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Virginia Woolf foi desses encontros que alargou meu horizontes.
Orlando foi a porta de entrada, livro que leio e releio inúmeras vezes e que sempre me traz novos significados - e que Virginia disse nunca enteder o porquê do suscesso, já que não era literatura "séria".
assim como To the Lighthouse - Viagem ao farol, na tradução brasileira.
entrar na obra de woolf é sempre um mergulho dentro de emoções densas, dessas que nos fazem diferente quando emergimos.
*
olá Luís! Obrigada sempre! pelos teus comentários. Já agora vê o meu texto sobre as férias de dia 6 de agosto e diz-me o q achas. Estou curiosa por ter a tua opinião. :) beijocas grds
Passeio com prazer pelo teu blogue e encontro uma pessoa culta, sensível, inteligente, capaz de parar e meditar sobre o que acontece à sua volta. Capaz de ir ao passado buscar as raízes do presente para que o presente e o futuro sejam menos incompreendidos. Como é que uma pessoa assim me diz que a verdade pode ser injusta? A verdade é aquilo em que cada um acredita. E se nós transmitirmos aos outros aquilo em que acreditamos nunca corremos o risco de ser injustos. Se a verdade é menos agradável quem a ouviu pode por um lado ficar triste mas, por outro, tem a certeza que tem um amigo leal em quem pode confiar. Agora aquela verdade que fere e que é injusta, essa não é a verdade. É apenas uma forma de alguém descarregar em nós as suas frustrações. Essa pessoa não te merece!
Tudo bom para ti.
Luis... amigo. Não sei que dizer... Mrs Dalloway é um dos meus romances preferidos. Por todas as rações que exprimes tão bem tu e que não vou repeter. Sim, é um espelho no que olhar para a insatisfação da vida e o passo do tempo. Os sonhos não cumpridos (e imcumpríveis), a vida que não escolhimos...
Um abraço
Oi luis, há tempos eu não leio uma boa narrativa.
eu juro que já o comprei....!
Virginía Woolf uma das maiores e consagráveis escritoras,faz parte do meu leque de leitura obrigatória por excelência.
Bjs Zita
Luis galego, quando aqui chego vejo sempre alguns livros em comum...outros são novidade...por enquanto, já que em breve os vou procurar!!!
Mas nada me ultrapassa A SOMBRA DO VENTO...
Enfim, temas para grandes conversas... Virginia, e outros mais!!!!
BOAS LEITURAS!
Bjks
Passei apenas dar deixar um abraço e um agradecimento pelo seu comentário!
Agora falaste-me ao coração! Não só dediquei parte do meu investimento pessoal a aprender o que podia sobre, e com, essa mulher, como lhe dediquei a minha tese de mestrado. Sei que me fica mal dizer isto, mas o mérito é, afinal dela, e eu não gosto de deixar os créditos por mãos alheias. E nada supera o que fui fruindo sem "agendas", apenas entregue a mim próprio e a ela. (Desculpa a extensão, mas a Virginia...)
Quarteto e King lá vão passando filmes que fogem ao circuito da Lusomundo e da Castello Lopes! Há que estar sempre atento! Obrigado pela tua chamada de atenção!
Temos que combinar um café um dia destes!
Um abraço!!!
lo cierto es que no he leído a virginia woolf, pero es una autora de la que ahora se habla mucho, supongo que en gran parte por el éxito de la película "las horas", de hace no muchos años,
amor
Excelente post. Não preciso dizer mais nada...
Um beijo
dela comprei hoje Orlando, que nunca li.
vou começar.
Amigo
estou muito débil ainda, mas...já não conseguia estar mais tempo deitada (ordem médica) e vim um pouquinho até à net; ainda não vou postar, mas quero visitar os blogs de alguns amigos/as. Desde sábado que tinha planeado fazer uma visita ao teu blog e de outros, mas...dores violentas levaram-me para as urgências do hospital domingo repetiu-se a mesma coisa e na noite de 2ª feira aconteceu o mesmo, saí já de madrugada do hospital e...lentamente estou a voltar ao contacto que não quero perder, de forma alguma.
Um beijo na tua alma
Nota:identifico-me com grande parte da história de Mrs.Dalloway, até na idade...coincidências!!!
Obrigada pela dica.
Tenho andado tão arredia do cinema, que fiquei curiosa.
Gosto do seu blog, descobriu-o através de um link do fundamentalidades2.
No domingo visitarei Mrs Dalloway.
Ah! o prazer de ter descoberto um blog verdadeiramente útil! obrigado.
abraço
«(...)até que o próprio coração no interior do corpo deitado ao sol na praia diz também: é só isto. Não tornes a ter medo, diz o coração(...)»
...
Espantoso...
... Vou deambular pelo teu blog... prometo fazê-lo em bicos de pés, respeitando o silêncio, e trautear com os olhos os sons dos sorrisos que os livros me fazem sentir...
Abraço de vento... o meu.
Ni*
Um abraço e a oportunidade de relembrar os trailers...
Amigo Luís
comentar um post teu em 20ª.lugar, torna-se penoso, pois ou se é muito original, o que não é o caso ou apenas se repete o que 8de bom) já está escrito.
O blog continua a ser um prazer lê-lo, pois seja num livro, num filme, num lugar, em qualquer outro assunto, tu "pintas o quadro" com tudo o que é preciso, nem a mais nem a menos.
É uma delícia vir aqui.
Quanto a este post, só uma referência muito pessoal a uma das mais interessantes actrizes do cinema, e tambèm uma grande Mulher: Vanessa Redgrave. Acho uma escolha muito apropriada para fazer de Mrs Dalloway.
Abraço.
...
oh, mrs. dalloway always giving parties to cover the silence.
...
beijo Luís de um infinito pessoal que arranha a memória. e sacode o silêncio.
B.
Apesar do pouco tempo que tenho para me dedicar a outras leituras que não sejam as específicas da tese, não resito vou comprar o livro.
Parabéns pelo excelente post
Jasmim
Simplesmente adorei:)
beijinho e passa lá:)
Luiz, fiquei tentada a ler o romance e acho que é bem como eu gosto. Obrigada!
Fique com Deus! Beijos
apesar de ter visto as horas, que adorei, fiquei com vontade de levar este livro comigo.
beijos Luís
Virginia Woolf, uma das minhas eleitas!
Um beijinho e bom fim-de-semana*
Olá Amigo,
Agora que as ondas ficaram lá longe e a faina rotineira regressou, perco-me por estes momentos de prazer, visitando amigos, lendo maravilhas, vivendo sonhos, cantando poetas...
A Clarissa de Virginia Woolf não será uma mulher comum?!...
Mudando o cenário da acção, transpondo-o para os nossos dias, quantas mulheres escondem o seu silêncio e o cobrem com uma capa de falsa confiança, com festas? Quantas não lamentam o passado porque não viveram como queriam viver, por medo, influências várias ou falta de determinação?
Quantas não temem ainda o presente?
E, quantas não temem o futuro e o eminente processo de envelhecer?!...
Virginia Woolf conhece bem a alma feminina...
Um abraço e votos de BOM DOMINGO
É... uma personagem muito actual, talvez sempre actual, pois as dúvidas e angústias serão em tudo muito semelhantes quaisquer que sejam os tempos.
as horas divinamente interpretado por meryl s. julianne m. e nicole k. um dos meus filmes eleitos e eternos..
mrs dalloway ...
tantas mrs dalloway ao crepúsculo na cidade...
e virginia woolf ao entardecer à beira do rio afagando as águas mornas e fugazmente lutando contra a corrente...divinal!
Passando pra deixar um beijo.
Que sua semana seja de grandes realizações! Fique com Deus!
muito bom de ler.
gosto muito de tudo o que me actualizas de tudo o que me recordas...
virginia...enfim...acabei de ler to the lighthouse pela terceira vez...
beijO
luis
virginia surpreende até quando a gente acha que já sabe tudo dela. tem mais de 15 anos que vi uma montagem de Orlando que deu mais o que falar que a vida da escritora, poque a diretora, Bia Lessa, era um dos nomes da velha-nouvelle vague teatral qwue chegava ao Brasil. Mas tinha nossa dame, Fernanda Montenegro para segurar a montagem.
Mas queria falar mesmo é de um livrinho que Virginia escreve entre uma obra e outra mais densa e que eu adoro: Flush, a história do cão de uma conhecida, narrada pelo próprio. Uma Virginia até piegas essa que dá voz a um cão. Mas sempre Virginia.
bj
a PROPÓSITO: se você tem bicho de estimação e quiser mandar uma foto ou história para o diário da docinho, ficarei mt feliz: www.diariodadodo.blogspot.com
bj
E depois de ler, recordei o filme "The Hours" fabuloso.
Como ainda estou de férias e pedi o pc emprestado, volto depois com mais calma.
Bjos
*
andamos preguiçosos com os blogues, hein?
*
"Conheci" Virginia Woolf aos 18 anos, pela voz de um amigo filósofo... Nunca mais a esqueci, o esqueci...
Abraço
Agradeço a gentileza do seu resumo de “Mrs Dolloway”. Sempre me perguntei porque Clarissa não deu no pé (como Nora da “Casa de Bonecas”...). Acho que encontrei a “solução” em um romance policial “O Falcão Maltês” de Dashiell Hammett. Lá tem uma pequena história que se chama “O Homem que Tirou a Tampa da Vida”. É a história de um empresário que larga tudo e recomeça em outra cidade. Anos depois ele percebe que reproduziu a vida que tinha antes na sua “nova” vida: é empresário bem sucedido, tem uma mulher loira, um carro do ano e filhos. Talvez Clarissa tenha sido menos tola do que pensamos. Casando-se com Peter Wahsh, ela somente se chamaria Mrs. Wahsh e o resto seria igual. Vivendo com Sally seria somente um pouco diferente... Talvez quem tenha razão mesmo sejam os gregos antigos: cada um de nós tem um “destino” (fatum) e temos que cumpri-lo seja de que jeito for. Um grande e fraterno abraço e parabéns pelo seu blog!
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