Após um interminável dia, e porque iria esperar por L. até tarde, resolvo ir à Cinemateca ver Amai-vos uns aos outros (Gezeichneten, Die), do brilhante Carl Theodor Dreyer. Coloco um pé fora do Ministério e tenho um táxi rente ao nariz; nem na fifth avenue. A fita começa logo aí, o taxista glosa as afirmações de um curador acerca de arte contemporânea e da inauguração de uma exposição. Sim, o motorista de táxi não ouve uma antena qualquer, mas a clássica das clássicas, parece-me. Travestido de comentador fala, propala, satiriza, critica as opiniões do conservador de museus que ia desfiando lugares comuns. Acontece, a todos. No entanto, as observações do taxista são revestidas da maior das graças e num português escorreito, sublinhe-se (nada de prontos, quaisqueres e outras aberrações linguísticas e verbos infernais que não fazem parte da língua portuguesa culta, embora já constem do Houaiss); o cavalheiro verbaliza muito bem o que pensa e desconstroi algumas das tolices proferidas na telefonia. Mas a arte contemporânea não é definitivamente a sua praia. Eu não disse uma única palavra, para além do local para onde tencionava ir e do agradecimento por com ele ter viajado são e salvo até à Barata Salgueiro. Mas gargalho todo o percurso, rio deveras, tal é o sentido crítico e oportuno de tal profissional de viação.
Na Cinemateca, aproveito os minutos que faltam para ir ao bar onde dois jovens empregados, no maior dos nervosismos, não conseguem atender ninguém. Na mesa à esquerda, um casal, à minha direita, outro par; só se ouvem as vozes dos homens, elas simplesmente escutam. Um dos varões, brasileiro, vocifera ao telemóvel da amiga de cabelos ruivos, socorrendo-se dos maiores impropérios alguma vez inventados, ofendendo uma putativa senhora, pelos vistos concubina de quem, pacientemente, atende do outro lado do “celular”. Na mesa da esquerda, o outro sujeito fala bastante alto, com extraordinário pormenor, acerca das desventuras do seu divórcio e das implicações que dai resultaram para toda a humanidade; tal como a contida ruiva que ouve o atrigueirado brasileiro, também esta se socorre da arte exercitada pelo mímico Marceau e apenas ouve; percebo-a, "a palavra não é necessária para exprimir o que se sente no coração". Isto era à vez: quando o divorciado disserta, o irritado cala-se, quando o desquitado faz uma pausa, o abespinhado avança. Finalmente aparece algo para comer, mas não o que tinha suplicado aos dois tremelicantes funcionários da restauração …
Corro para a Sala Dr. Félix Ribeiro, preparo-me para um filme a preto e branco, cinema mudo, com legendas minúsculas. Entro no mundo do realizador dinamarquês o que não deixa de ser um acontecimento excepcional, pois para qualquer amante da arte do filme a oportunidade de apreciar um dos mais expressivos autores de toda a história da chamada sétima arte é sagrada. Curiosamente, sinto-me algo só naquele espaço, quase vazio. Fecho as pálpebras por dois segundos, asas leves cansadas de voar durante o dia. Os meus pensamentos cruzam-se com a obra de Dreyer, mas também com assuntos que tenho para resolver e até as conversas cruzadas no bar são convidadas a entrar no salão do meu espírito. Frente a uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a letargia só pode representar algum sintoma e, desde logo, cismei se não estaria a sofrer de ausência de sensibilidade artística.
Carl Theodor Dreyer nasce num dos lugares que mais me enternece, Copenhaga (talvez por lá ter estado num Dezembro, num quarto com vista para um autêntico conto de Natal) e veio a morrer nesta mesma cidade quando já tinha captado todos os recursos para o sonho da sua vida: filmar a trajectória de Cristo na Terra. Também assina Gertrud, o seu canto do cisne, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven. François Truffaut, que muito aprecio, fez o comentário que transcrevo: Carl Dreyer está morto, reuniu-se a Griffith, Stroheim, Murnau, Eisenstein, Lubitsch, reis da primeira geração do cinema, aquela que primeiro dominou o silêncio e depois a palavra. Temos muito a aprender com eles (...). Carl Dreyer era um homem pequeno, muito doce na maneira de falar, formidavelmente obstinado, aparentemente severo mas na realidade sensível e caloroso (...). Foi este soberano do cinema o responsável por um dos filmes que muito me marcaram: Ordet. No entanto, não é A Palavra que estou a (re)ver, mas sim uma outra obra, pela primeira vez. Amai-vos Uns aos Outros (também conhecido como Os Estigmatizados) é um filme rodado em Berlim no início dos anos 20 do século passado e retrata um pogrom judeu na Rússia de 1905 a partir da adaptação de um romance de Aage Madelung, com actores russos, dinamarqueses, alemães e noruegueses. A minúcia reconstitutiva e a combinação do estilo de representação de Stanislavski com o dos filmes alemães distinguem este filme.
O que pensar de Carl Theodor Dreyer e sobre Amai-vos uns aos outros, em 2007, numa noite fria, à porta da Cinemateca, sem cair em lugares comuns e já revisitados? É rica a lenda acerca do método Dreyer, composta de histórias sobre como impunha sacrifícios aos actores para prepará-los para o estado de espírito dos seus personagens e por relatos sobre a sua indiferença em relação às necessidades de produção, sintomáticas da sua convicção de que, inclusive no cinema, a arte tem seu próprio tempo de criação e exigências incompatíveis com outro tipo de dinâmica extra-artística. Sabe-se que, para Dreyer, o artista é iluminado. A arte, portanto, é sacrossanta. A intransigência sem concessões, alimentada pela sua visão da arte como revelação da verdade do homem e da vida por meio da dramatização, determinou o seu percurso. Talvez haja uma vocação nórdica-escandinava para extrair pus da sensibilidade dos personagens e dos espectadores, como já intuíam os leitores de Ibsen e Strindberg. As narrativas audiovisuais deram continuidade a essa tradição e, se reduzíssemos as características dos filmes desse solo cultural, poderíamos falar num cinema do desespero, que se empenha em mostrar como reage o ser humano ao ser submetido a acontecimentos esmagadores, que o levem a duvidar até da crença no divino. Dreyer assume essa tradição sem deixar de fazer dela uma questão da humanidade. A singularidade do cineasta e dos seus filmes está na forma de representação, de dar tempo aos planos, de encadear os fragmentos. As mudanças de registo não podem ser encaradas com lamento, como saldos negativos de interrupção de um percurso. Em cada um dos filmes a marca de Dreyer – distintas marcas para o mesmo olhar – salta aos olhos. E também agride, desafia e estimula.
Na Cinemateca, aproveito os minutos que faltam para ir ao bar onde dois jovens empregados, no maior dos nervosismos, não conseguem atender ninguém. Na mesa à esquerda, um casal, à minha direita, outro par; só se ouvem as vozes dos homens, elas simplesmente escutam. Um dos varões, brasileiro, vocifera ao telemóvel da amiga de cabelos ruivos, socorrendo-se dos maiores impropérios alguma vez inventados, ofendendo uma putativa senhora, pelos vistos concubina de quem, pacientemente, atende do outro lado do “celular”. Na mesa da esquerda, o outro sujeito fala bastante alto, com extraordinário pormenor, acerca das desventuras do seu divórcio e das implicações que dai resultaram para toda a humanidade; tal como a contida ruiva que ouve o atrigueirado brasileiro, também esta se socorre da arte exercitada pelo mímico Marceau e apenas ouve; percebo-a, "a palavra não é necessária para exprimir o que se sente no coração". Isto era à vez: quando o divorciado disserta, o irritado cala-se, quando o desquitado faz uma pausa, o abespinhado avança. Finalmente aparece algo para comer, mas não o que tinha suplicado aos dois tremelicantes funcionários da restauração …
Corro para a Sala Dr. Félix Ribeiro, preparo-me para um filme a preto e branco, cinema mudo, com legendas minúsculas. Entro no mundo do realizador dinamarquês o que não deixa de ser um acontecimento excepcional, pois para qualquer amante da arte do filme a oportunidade de apreciar um dos mais expressivos autores de toda a história da chamada sétima arte é sagrada. Curiosamente, sinto-me algo só naquele espaço, quase vazio. Fecho as pálpebras por dois segundos, asas leves cansadas de voar durante o dia. Os meus pensamentos cruzam-se com a obra de Dreyer, mas também com assuntos que tenho para resolver e até as conversas cruzadas no bar são convidadas a entrar no salão do meu espírito. Frente a uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a letargia só pode representar algum sintoma e, desde logo, cismei se não estaria a sofrer de ausência de sensibilidade artística.
Carl Theodor Dreyer nasce num dos lugares que mais me enternece, Copenhaga (talvez por lá ter estado num Dezembro, num quarto com vista para um autêntico conto de Natal) e veio a morrer nesta mesma cidade quando já tinha captado todos os recursos para o sonho da sua vida: filmar a trajectória de Cristo na Terra. Também assina Gertrud, o seu canto do cisne, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven. François Truffaut, que muito aprecio, fez o comentário que transcrevo: Carl Dreyer está morto, reuniu-se a Griffith, Stroheim, Murnau, Eisenstein, Lubitsch, reis da primeira geração do cinema, aquela que primeiro dominou o silêncio e depois a palavra. Temos muito a aprender com eles (...). Carl Dreyer era um homem pequeno, muito doce na maneira de falar, formidavelmente obstinado, aparentemente severo mas na realidade sensível e caloroso (...). Foi este soberano do cinema o responsável por um dos filmes que muito me marcaram: Ordet. No entanto, não é A Palavra que estou a (re)ver, mas sim uma outra obra, pela primeira vez. Amai-vos Uns aos Outros (também conhecido como Os Estigmatizados) é um filme rodado em Berlim no início dos anos 20 do século passado e retrata um pogrom judeu na Rússia de 1905 a partir da adaptação de um romance de Aage Madelung, com actores russos, dinamarqueses, alemães e noruegueses. A minúcia reconstitutiva e a combinação do estilo de representação de Stanislavski com o dos filmes alemães distinguem este filme.
O que pensar de Carl Theodor Dreyer e sobre Amai-vos uns aos outros, em 2007, numa noite fria, à porta da Cinemateca, sem cair em lugares comuns e já revisitados? É rica a lenda acerca do método Dreyer, composta de histórias sobre como impunha sacrifícios aos actores para prepará-los para o estado de espírito dos seus personagens e por relatos sobre a sua indiferença em relação às necessidades de produção, sintomáticas da sua convicção de que, inclusive no cinema, a arte tem seu próprio tempo de criação e exigências incompatíveis com outro tipo de dinâmica extra-artística. Sabe-se que, para Dreyer, o artista é iluminado. A arte, portanto, é sacrossanta. A intransigência sem concessões, alimentada pela sua visão da arte como revelação da verdade do homem e da vida por meio da dramatização, determinou o seu percurso. Talvez haja uma vocação nórdica-escandinava para extrair pus da sensibilidade dos personagens e dos espectadores, como já intuíam os leitores de Ibsen e Strindberg. As narrativas audiovisuais deram continuidade a essa tradição e, se reduzíssemos as características dos filmes desse solo cultural, poderíamos falar num cinema do desespero, que se empenha em mostrar como reage o ser humano ao ser submetido a acontecimentos esmagadores, que o levem a duvidar até da crença no divino. Dreyer assume essa tradição sem deixar de fazer dela uma questão da humanidade. A singularidade do cineasta e dos seus filmes está na forma de representação, de dar tempo aos planos, de encadear os fragmentos. As mudanças de registo não podem ser encaradas com lamento, como saldos negativos de interrupção de um percurso. Em cada um dos filmes a marca de Dreyer – distintas marcas para o mesmo olhar – salta aos olhos. E também agride, desafia e estimula.
Saí da Cinemateca convencido que tinha que ver o filme com outro olhar, livre de mil cansaços. Dreyer não se compadece com a minha solidão, o meu reino, o meu segredo, o meu silêncio, os meus pensamentos de um final de tarde…
21 comments:
brilhante.
o texto.
inteiro.
e
o
final.
___________obrigada. Luis.
bjj.
Caro Luís
ponto 1 - O monólogo no táxi; uma cena dessas encontra-se uma vez na vida, ou seria um licenciado a fazer um biscate no tãxi de um amigo???
ponto 2 - Dreyer; talvez o mauis "incompreensível" e difícil realizador que conheço; apenas vi "Ordet" e "Gertrud", e já foi há muitoa anos; achei-os demasiado densos para aminha compreensão de então; estou convencido que não conseguiria revê~los.
Abraço e bom fim de semana.
Querido Luís,
reconhecendo embora a minha falta de preparação para a obra de Dreyer, só vi há muitos anos " Gertrud", não gostei, ( ou não entendi) e não fiquei fã.
Nos dias que correm embora sequiosa amante de cinhema, não iria ver um filme mudo, a preto e branco e de Dreyer.
Mas aprendi alguma coisa com o que escreveu sobre ele.
Agora, o que adorei, foi a descrição da conversa do táxista, o texto cheio de ritmo e graça descrevendo o ambiente no bar, e naturalmente o final.
Brilhante, como sempre.
Beijinhos
PS: mão amiga fez chegar-me um prexentinho adiantado: já tenho "A Mulher Cera" e de caminho ganhei também "O Português que nos Pariu". Recomendo vivamente.
"Brilhante como sempre", de facto. É a primeira vez que comento este blog mas há muito tempo que ele faz parte da "minha dose diária". Muito bom, adorei tb a parte do taxista!
Apenas digo: excelente texto!
Bom fim-de-semana.
Beijinho Luís*
serei eu um dos poucos a ficar sensibilizado ao cinema de Dreyer? A imagem de Falconetti vai ficar, sempre, gravada em mim. E a cena final de A Palavra, plena de religiosidade.
O milagre do cinema nas mãos de Dreyer.
um abraço
jorge
Que delícia de texto, Luís!
Do condutor do táxi,passando pelos barulhentos restaurandos e nervosos restauradores e, finalmente, como falas do cinema do ínicio do século passado - que me encanta totalmente. Adoro os filmes primeiros, simplesmente adoro-os! Este de Dreyer não tive ainda a oportunidade de ver. Aproveito para te contar um meu inesquecível, será que o viste? É de Victor Sjöström, o título é O Vento. Esplêndido!
Ótimo fim de semana e beijinhos :)
muito bom texto...como habitualmente
Um Abraço
Narcis
OLÁ LUÍS
Sinto esse teu texto, li-o calmamente! Está magnífico.
Mas, hoje passo em silêncio e deixo cair um beijo molhado...
Também o meu final de tarde de 6ª feira teve cinema: Gangster Americano.
Li:
Carl Theodor Dreyer nasce num dos lugares que mais me enternece, Copenhaga (talvez por lá ter estado num Dezembro, num quarto com vista para um autêntico conto de Natal)...SUSPIRO...
EU TAMBÉM QUERO MUITO VISITAR COPENHAGA NUM DEZEMBRO, num quarto com vista para um autêntico conto de Natal.
Bom fim de semana. Beijito.
entrei aqui por acaso. julgo que é a segunda vez que comento num blogue. mas hoje deu-me para aqui. não sou um individuo culto e nada posso dizer sobre o filme que foi ver nem sobre o seu realizador. com a idade que tenho não virei a ter muito mais conhecimento.
mas já que aqui estou, deixe-me dizer-lhe que gostei do que disse acerca da sua viagem de taxi, assim como da descrição dos personagens que estavam no bar.
peço desculpa, nada disto tem interesse para si, mas...
possivelmente empreguei algum dos vocábulos a que se referiu...
bom fim de semana.
Pouco conheço da cinematografia do Dreyer e infelizmente vou continuar assim porque não tenho tempo para acompanhar o ciclo da Cinemateca. Realmente não é usual um taxista não comentar o último jogo do Benfica.
Um abraço
Caro Luís,
COM UM COMENTÁRIO COMO ESTE...eu também ESTIVE LÁ!!!
"Brigados" pela partilha!!!!
UM BOM DOMINGO!!!!
infinitamente!!!!!
_______________bom domingo.
bjj.
eu confesso que no ligo muito para kem faz os faz os filmes ou seja os realizadores ,so conheço os mais falados :)
se quiseres me visita ,hje deixo um video e um poema pa um amigo
............·:::::·
¸,.·´¨`·.( -.- ).·´¨`·.,¸
¨`·--·-¨( “)(“ )¨-·--·´¨
¸.·´Bom Domingo
beijossss
( `·.¸
`·.¸ ) carla granja
(.·´*´¨)
¸.·´¸.·*´¨) ¸.·*¨)
(¸.·´ (¸.·`*(`“·.¸(`“·.¸*(`“·.¸*(`“·.¸- *
Um texto sentido e escrito com sensibilidade. Não sou muito amante da cinemateca, vou ao cinema apenas com o objectivo de passar um bom bocado.
ola luis,
vi que fizeste no "palavras ao vento" um comentario simpatico sobre o meu novo livro "versos nus" e vim ca ver o teu blogue.
gostei imenso e gostava de te fazer um convite para te juntares ao Blogue das Artes, sociedade de bloggers...
pensa nisso.
caso aceites é so mandar um mail para: bloguedasartes@gmail.com
Caríssimo Luís,
A escrever tão bem e de um modo tão perspicaz sobre tudo o que nos rodeia, acho que DEVE, começar a pensar em escrever um livro, pois tem todos os ingredientes para ser um sucesso: imaginação, criatividade e conhecimento não lhe faltam !!
Fico à espera, mas entretanto vou-me deliciando com a leitura dos seus posts ...
Pois eu acho que um olhar de mil cansaços nos dá uma perspectiva de Dreyer tão válida como qualquer outra. De Dreyer e de qualquer momento da vida, como uma simples viagem de táxi ou o escutar de conversas de café.
Talvez o cansaço do dia tenha até empolado a tua sensibiliade para o que realmente é importante.
Mas sim... revisita o filme ou o taxista e as conversas de café. Terão com toda a certeza outras nuances que vale a pena sentir.
beijos!!!
Há um livrinho, do João de Mancelos, que se diz "Como escrever contos simples e eficazes".
Ao ler este post lembrei-o, não que tenha algo a ver (ou talvez tenha), mas porque me ocorreu um possível título para acasalar este e outros posts abaixo... A Arte de Contar Histórias. É o que este post faz, contar estórias narrando o quotidiano.
Uma narrativa cinematográfica, a tua... Gostei muito desta tua viagem!
Abraço
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