Tuesday, June 24, 2008

mulheres ao espelho…

(Titian [Tiziano Vecellio], La Femme au miroir, c. 1514, Musée du Louvre, Paris)
A rádio ainda é uma companhia. Ás vezes desperto ou adormeço ao som da arte que toca, na 94.2. Ao domingo, pelas 10 horas, passa Um Certo Olhar. O último programa terminou com Aldina Duarte, não a cantar, mas a dizer Maria do Rosário Pedreira, a última faixa de “Mulheres ao Espelho”:

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

De “O Canto do Vento nos Ciprestes”, Gótica, 2001

Vale a pena inaugurar assim o dia. Uma voz suave a habitar um belíssimo poema.
*
* *
À noitinha acontece estacionar nos poucos canais culturais televisivos. Não me queixo, o televisor não tem que ser uma prioridade. Mas domingo à noite e esgotados outros cenários sintonizo o Câmara Clara que convoca uma espécie de conversa sobre mulheres. Pergunta se seria o mundo melhor se as descendentes de Eva povoassem os centros de decisão? A historiadora Irene Pimentel e o escritor e rebelde Rui Zink não têm certezas. Têm a convicção de que se impõe igualdade de oportunidades no acesso aos centros de decisão. Principio que subscrevo, sem qualquer reserva. Em vésperas do Congresso Feminista, a ocorrer na Gulbenkian, oito décadas depois de se ter realizado o último congresso em Portugal, o programa recordou a história do feminismo no nosso país, passando pela Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, por mulheres como Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Angelo, Judite Teixeira, Maria Lamas, Maria Antónia Palla, Madalena Barbosa, as três Marias (com testemunho de Isabel Barreno). Citou as figuras de Margaret Thatcher, Hillary Clinton, Ségolène Royal e a nova presidente do PSD. Mencionou, ainda, George Sand, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir (e, o célebre aforismo: "Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres"), Antónia San Juan, as mulheres de Almodôvar (o realizador que melhor trata o sexo feminino) e Tarantino, e, até, a discípula mais devota de Jesus Cristo, Maria Madalena, ou não fosse Zink um dos convidados.

Num momento em que se fala de feminismos e do poder das mulheres foi oportuna a referência final à excelente Betty Davis, em Jezebel, a Insubmissa, um dos filmes da minha vida.

Assim, a televisão pode ser um preservativo contra a imbecilidade…

11 comments:

Paulo Tomás Neves said...

Essa televisão, infelizmente, é contracorrente, é a RTP2 :-)
(mais um artigo de fôlego, cheio de ligações [um "para saber mais" que sabe bem])
Abraço e boa semana

Anonymous said...

Aa emissoras de rádio são como os canais televisivos: poucos valem realmente a pena e raros trazem algo de novo.
Em relação ao Rui Zink, sempre admirei a inteligente subversão com que discorre (e por vezes com que escreve). É pena não termos mais "zincados" deste calibre.
As mulheres estão a chegar aos centros de decisão há muito tempo. E de forma natural, sem quotas abjectas.

Jezebel é um clássico assombroso. :)

João Roque said...

Bela homenagem à Mulher através de grandes mulheres...
Abraço.

kiduchinha said...

Olá! Também vi o Câmara Clara esta semana :) Nesta visitinha bloguista desejo-te óptima semana! beijocas grds

Maria P. said...

Aldina Duarte e Maria do Rosário Pedreira duas mulheres que admiro de uma forma muito especial.

Beijinho, Luís*

pin gente said...

parei no poema... de uma beleza imensa.
engoli em seco...
e não consigo ler ou dizer mais nada, luís.

um abraço
luísa

Paula Crespo said...

E eu subscrevo as incertezas de Irene Pimentel e Rui Zink como, aliás, já tive oportunidade de também aqui o referir num comentário a outro post teu. E subscrevo a necessidade da igualdade de oportunidades, naturalmente. Isso sim, uma certeza inabalável.
Quanto aos programas de rádio e TV, são poucos os bons, por isso cada vez mais os vejo e ouço menos. Principalmente a TV. Mas persistem um ou dois resistentes.
Bjs

Cynthia said...

besos!!!

Carlos Faria said...

Televisão, por norma não vejo, foi um hábito que se foi... por isso não vi o câmara clara, mas sou de opinião que grandes mulheres são aquelas que não deixam de ser elas próprias nos lugares que ocupam, a sociedade precisa de mulheres que sejam, sobretudo, pessoas e que assim se saibam manter mesmo nos postos mais elevados. Mulheres que se possam ver ao espelho e se reconhecerem sempre como são e não mostrarem aquilo que os outros facilmente assimilariam.
Mas isto tudo também se aplica aos homens, verdadeiros seres humanos no seus cargos e, sendo assim, que venham todos, pois são precisos verdadeiras mulheres e homens nesta sociedade e que se continuem a reconhecer ao espelho para dignificar a espécie humana.

Ana Paula Sena said...

Gosto imenso de ouvir a 94.2!
É quase sempre a minha companhia enquanto conduzo...

paulo said...

vou centrar-me somente na citação: adoro a Maria do Rosário e este poema em particular. apaixonei-me não sei onde quando a ouvi recitar este poema comovente. e foi comovente ouvi-la com a sua voz calma e muito bem colocada. fala a partir da perspectiva feminina, mas revejo-me nele com uma força que até estranho. em todo o caso, parece-me ser impossível passar-se-lhe indiferentemente.