Vincent van Gogh, The Starry Night 1889.
The Museum of Modern Art, New York.
The Museum of Modern Art, New York.
noite labiríntica/5.ª
Saio tarde do ministério. Corro para Alfama. Encontro marcado junto ao Museu do Fado. Nos Santos Populares, Alfama assume-se como um dos bairros com maior tradição nesta disputa alfacinha. Há exagerada alegria, mas não é a melhor época para compreender o bairro e interiorizar o seu espírito. É impraticável andar por aqui, tal a enchente que toma por completo o bairro de assalto. Não há pátio que não tenha uma banca com cervejas, sangrias, sardinhas a assar e milhares de pessoas em fila de espera. Aguardei mesa com a perseverança que a noite de Santo António exige. Para não falar dos bailaricos, onde os autóctones se amalgamam com o resto da cidade num convívio entusiasmado. Labiríntico, este castiço bairro conserva uma áurea peculiar, carregada de fado, marchas populares, histórias de marinheiros e uma arquitectura singular. Em circunstâncias comuns não é difícil perder-me [sou um homem desorientado, de facto]. Numa noite destas é até muito provável desaparecer no meio deste bairro que tem uma geografia única. São becos, ruas, ruelas e vielas que se articulam entre si ligados por lances de escadas de calçada que batem os desníveis da encosta. E é neste sobe e desce que se vai avançado à descoberta de um mundo descoincidente das avenidas e dos centros comerciais. Afinal, uma espécie de carnaval bairrista no desfecho cálido da Primavera.
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noite de teatro/6ª
Na noite de todas as superstições vou picar o ponto ao teatro. Um inventor concebe um motor que funciona a água. Acredita ter descoberto a passagem para a fama e ambiciona viver numa casa de campo com a irmã invisual. Mas os grandes interesses económicos, tal abutres, salivam pelo invento. Um Conto Americano - The Water Engine, escrito para teatro radiofónico, mas adaptado ao cinema e à arte de Talma. No Teatro D. Maria II. A peça do norte-americano David Mamet coloca questões ambientais como a carência de recursos naturais e a urgência de apostar nas energias renováveis. O dramaturgo leva a reflectir acerca dos agentes financeiros e a forma como se sobrepõem ao progresso da ciência. Um indivíduo convence-se, ao criar um motor que usa água por combustível, que resolverá os problemas energéticos e terá toda a gente a fazer-lhe a devida vénia. Equivoca-se por desconhecer os efeitos de sustentar uma utopia, por não calcular a robustez dos interesses opostos e por desprezar a discrepância entre justiça e verdade. Ainda que na América. Não obstante Roosevelt. Mesmo no território do progresso, o sonho americano de um inventor pode constituir uma tragédia.
Como é seu costume, David Mamet não economiza na descrição da falsidade das relações sociais e cultiva com sageza carrasca as antinomias entre as várias forças presentes no capitalismo, através de argumentos eficazes e diálogos entusiásticos. Contudo determinadas situações surgem no Dona Maria, numa sala quase deserta [dói-me ver um teatro vazio], como se cozinhadas em lume brando, menos belicosas do que era expectável…Ainda assim, não lamento nada ter-me perdido à noite naquela encenação, mas abominei que o público não morasse ali.
Do Rossio para o Dafundo, fui mascar Mamet e as consequências do capitalismo para casa de TC&PF, espécie de botequim, onde faz todo o sentido discutir tudo e não debater nada.
Saio tarde do ministério. Corro para Alfama. Encontro marcado junto ao Museu do Fado. Nos Santos Populares, Alfama assume-se como um dos bairros com maior tradição nesta disputa alfacinha. Há exagerada alegria, mas não é a melhor época para compreender o bairro e interiorizar o seu espírito. É impraticável andar por aqui, tal a enchente que toma por completo o bairro de assalto. Não há pátio que não tenha uma banca com cervejas, sangrias, sardinhas a assar e milhares de pessoas em fila de espera. Aguardei mesa com a perseverança que a noite de Santo António exige. Para não falar dos bailaricos, onde os autóctones se amalgamam com o resto da cidade num convívio entusiasmado. Labiríntico, este castiço bairro conserva uma áurea peculiar, carregada de fado, marchas populares, histórias de marinheiros e uma arquitectura singular. Em circunstâncias comuns não é difícil perder-me [sou um homem desorientado, de facto]. Numa noite destas é até muito provável desaparecer no meio deste bairro que tem uma geografia única. São becos, ruas, ruelas e vielas que se articulam entre si ligados por lances de escadas de calçada que batem os desníveis da encosta. E é neste sobe e desce que se vai avançado à descoberta de um mundo descoincidente das avenidas e dos centros comerciais. Afinal, uma espécie de carnaval bairrista no desfecho cálido da Primavera.
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noite de teatro/6ª
Na noite de todas as superstições vou picar o ponto ao teatro. Um inventor concebe um motor que funciona a água. Acredita ter descoberto a passagem para a fama e ambiciona viver numa casa de campo com a irmã invisual. Mas os grandes interesses económicos, tal abutres, salivam pelo invento. Um Conto Americano - The Water Engine, escrito para teatro radiofónico, mas adaptado ao cinema e à arte de Talma. No Teatro D. Maria II. A peça do norte-americano David Mamet coloca questões ambientais como a carência de recursos naturais e a urgência de apostar nas energias renováveis. O dramaturgo leva a reflectir acerca dos agentes financeiros e a forma como se sobrepõem ao progresso da ciência. Um indivíduo convence-se, ao criar um motor que usa água por combustível, que resolverá os problemas energéticos e terá toda a gente a fazer-lhe a devida vénia. Equivoca-se por desconhecer os efeitos de sustentar uma utopia, por não calcular a robustez dos interesses opostos e por desprezar a discrepância entre justiça e verdade. Ainda que na América. Não obstante Roosevelt. Mesmo no território do progresso, o sonho americano de um inventor pode constituir uma tragédia.
Como é seu costume, David Mamet não economiza na descrição da falsidade das relações sociais e cultiva com sageza carrasca as antinomias entre as várias forças presentes no capitalismo, através de argumentos eficazes e diálogos entusiásticos. Contudo determinadas situações surgem no Dona Maria, numa sala quase deserta [dói-me ver um teatro vazio], como se cozinhadas em lume brando, menos belicosas do que era expectável…Ainda assim, não lamento nada ter-me perdido à noite naquela encenação, mas abominei que o público não morasse ali.
Do Rossio para o Dafundo, fui mascar Mamet e as consequências do capitalismo para casa de TC&PF, espécie de botequim, onde faz todo o sentido discutir tudo e não debater nada.
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a minha noite com Aleksandra/sábado
Depois de deixar a minha mãe e o meu filho entregues ao Michael Patrick King e à sua longa-metragem Sex and the City (sim, a minha progenitora e o J.) rumo à Av. Frei Miguel Contreiras, onde me espera algo de novo. Última sessão de uma noite quente. Aleksandr Sokurov materializa um sonho e torna Galina Visnevskaya, a lendária cantora de ópera russa, numa protagonista. A cantora/actriz é Aleksandra, uma avó que decide visitar o neto, um oficial colocado na frente russa da Chechénia. Aqui, encontra um mundo de homens onde sensibilidade é uma palavra expurgada do dicionário. Os dias sucedem sem que um transporte mais emoção ao outro e a cada instante decide-se sobre a vida e a morte. É, pois, na descoberta desse outro mundo que o filme se coloca diante o olhar de uma velha senhora. Um filme com uma vigilância inquietante face ao real, um olhar pelas cores e pelos odores que se experimentam naquele microcosmos de batalha. Uma obra antropológica, numa óptica humanista onde o que importa é que as personagens sejam autênticas, que sintam o esgotamento nas pernas, o frio na espinha, o desespero no rosto e a inquietação que o filme manifesta.
Vale a pena sublinhar que o filme foi rodado na própria Chechénia. Enfim, há um saber claro de que aquela guerra infindável é um sinal infame para a consciência mundial. Ao seu género, o realizador apresenta as feridas que essa guerra já provocou. No lado checheno, mas igualmente no lado dos soldados russos. Porque o conflito transforma inevitavelmente todos os que estão envolvidos nele. Saí do King algo constrangido pela realidade, mas saciado pela beleza das imagens, competência das interpretações e impressionabilidade dos olhares …
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à noite com uma diseuse/domingo
Acabo de ver e ouvir, no Câmara Clara, uma entrevista com Germana Tânger. Admirável mulher esta, agora com 88 anos e muitas histórias para contar. Mora numa casa ao lado daquela onde nasceu Fernando Pessoa. Os poetas do Orfeu foram os que mais disse na sua longa vida de divulgadora infatigável da poesia. Conheceu bem Teixeira de Pascoaes, foi íntima de Almada Negreiros e Sarah Afonso, e privou com José Régio, Jorge de Sena, Nemésio, Maria Helena Vieira da Silva e Sophia de Mello Breyner. Dedicou mais de 50 anos a dizer poesia portuguesa pelos quatro cantos do mundo. Na semana em que se comemoram os 120 anos do nascimento do poeta Pessoa foi agradável escutar a diseuse numa conversa sobre poesia, Pessoa e Portugal. Terna ficou a noite ao ouvir a mestre da arte de bem dizer:
....No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!....
Álvaro de Campos
Depois de deixar a minha mãe e o meu filho entregues ao Michael Patrick King e à sua longa-metragem Sex and the City (sim, a minha progenitora e o J.) rumo à Av. Frei Miguel Contreiras, onde me espera algo de novo. Última sessão de uma noite quente. Aleksandr Sokurov materializa um sonho e torna Galina Visnevskaya, a lendária cantora de ópera russa, numa protagonista. A cantora/actriz é Aleksandra, uma avó que decide visitar o neto, um oficial colocado na frente russa da Chechénia. Aqui, encontra um mundo de homens onde sensibilidade é uma palavra expurgada do dicionário. Os dias sucedem sem que um transporte mais emoção ao outro e a cada instante decide-se sobre a vida e a morte. É, pois, na descoberta desse outro mundo que o filme se coloca diante o olhar de uma velha senhora. Um filme com uma vigilância inquietante face ao real, um olhar pelas cores e pelos odores que se experimentam naquele microcosmos de batalha. Uma obra antropológica, numa óptica humanista onde o que importa é que as personagens sejam autênticas, que sintam o esgotamento nas pernas, o frio na espinha, o desespero no rosto e a inquietação que o filme manifesta.
Vale a pena sublinhar que o filme foi rodado na própria Chechénia. Enfim, há um saber claro de que aquela guerra infindável é um sinal infame para a consciência mundial. Ao seu género, o realizador apresenta as feridas que essa guerra já provocou. No lado checheno, mas igualmente no lado dos soldados russos. Porque o conflito transforma inevitavelmente todos os que estão envolvidos nele. Saí do King algo constrangido pela realidade, mas saciado pela beleza das imagens, competência das interpretações e impressionabilidade dos olhares …
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à noite com uma diseuse/domingo
Acabo de ver e ouvir, no Câmara Clara, uma entrevista com Germana Tânger. Admirável mulher esta, agora com 88 anos e muitas histórias para contar. Mora numa casa ao lado daquela onde nasceu Fernando Pessoa. Os poetas do Orfeu foram os que mais disse na sua longa vida de divulgadora infatigável da poesia. Conheceu bem Teixeira de Pascoaes, foi íntima de Almada Negreiros e Sarah Afonso, e privou com José Régio, Jorge de Sena, Nemésio, Maria Helena Vieira da Silva e Sophia de Mello Breyner. Dedicou mais de 50 anos a dizer poesia portuguesa pelos quatro cantos do mundo. Na semana em que se comemoram os 120 anos do nascimento do poeta Pessoa foi agradável escutar a diseuse numa conversa sobre poesia, Pessoa e Portugal. Terna ficou a noite ao ouvir a mestre da arte de bem dizer:
....No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!....
Álvaro de Campos
18 comments:
Linda... e quase venternecedora a tua descrição do centro de toda a festa. Mas percebo que Alfama tenha mais encanto na hora em que os santos a abandonam.
Tenho as melhores referências de Germana Tânger. Até como pedagoga, como mestra. A mulher deve ter memórias que dariam para escrever belas notas pé-de-página de um certo aro cultural (e do teatro!) da segunda metade do século passado.
Os teus fins-de-semana recarregam as baterias, não?! ;)
Recordo-me perfeitamente de ouvir ao longo de vários anos, a Germana Tânger a declamar poesia, como poucas pessoas o sabem fazer em Portugal. Hoje tem 88 anos e ainda declama?
Como gostaria de ter visto.
Abraço.
Belo fim de semana. também vi um pouco da câmara clara.
boa semana
Olha que não é mesmo fácil uma pessoa orientar-se em Alfama. Nem mesmo de dia quanto mais à noite no meio de milhares de pessoas.Ainda não tive oprotunidade de ver o Alexandra mas desta semana não passa.
Um abraço.
Alfama, nessas noites, é mesmo para se perder!!! Eu não gosto dos bairros de Lisboa em dias de festa... demasiada confusão para meu gosto.
A Maria Germana, como a minha mãe teima em chamar, é uma jóia muito rara... tem, ainda hoje, uma lucidez impressionante.
Partilhámos o espaço e a companhia em Alfama, as sardinhas e tudo o mais :)
confuso, fumarento, mas é sempre bom estar com os amigos...
Em Alexandra cruzámo-nos à entrada e continuamos a partilhar da mesma opinião sobre o filme. Muito bom, muito simples, muito belo...
Bjs
Um fim-de-semana comprido bem cheio...
Também vi a Germana Tânger. Uma Senhora!
... e a Starry night andou pela Ilha um dia destes... :))
Beijo
em 17 Maio 2008, "num outro canto aqui do burgo" li um texto muito interessante sobre a peça em cena no nosso decrépito teatro "dito Nacional".
http://in-senso.blogspot.com/2008/05/um-conto-americano-no-d-maria-ii.html
não deixem de comparar os textos, e contemplem-se com a sensibilidade e bom senso de dois Senhores muito especiais neste universo dos blogs.
NAUMON
"Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos! "
não resisti a reler esse álvaro
quanto a alfama a noite estrelada de van gogh acenta_lhe bem sim apesar de se perder essa luminosidade que nos tranquila quando nos embrulhamos no mar de gente e por ali ficamos sem encontrar um porto de abrigo
Já disse várias vezes, mas volto a repetir: gosto de ficar por aqui muito tempo. Gosto do teu sítio! Sente-se um bom gosto e respira-se várias sensibilidades que me agradam.
Um abraço!
O Starry night é residente na minha vida.
Quanto aos Santos remeto-te para o meu post do S. Antoninho.
Já quanto ao resto do programa, o filme não vi, mas a Germana Tanger sim.
Bons programas, como decostume.
Beijinhos e veludinhos
Hum... belo fim de semana, lindinho! Embora sejam diferentes, mas também comemoramos o Sto. Antonio.
Boa semana! Beijos
gostei de te "ver" perdido em Alfama nos santos populares, eu que tenho esta caracteristica masculina nunca me eprco, só mesmo na vida. gostei deste teu fim de semana cheio sofia
Desta feita, e ainda a passo incerto, voltei ao convívio de Santo António, mas - em boa hora, devo dizê-lo - troquei Alfama pela Bica. E gostei... As pequenas ladeiras a pique poderiam rebentar a qualquer hora com a torrente de gente, mas, ao contrário de Alfama - onde cheguei a passar mais tarde, não me tendo demorado muito... -, gostei muito da energia que se respirava ali e quando me dei por vencido, lá pelas 5h30 da manhã, ainda tive de abrir caminho com vigorosas braçadas.
Alfama, e a sua deliciosa geografia errática, essa deixo-a para outros dias mais calmos.
Abraço.
"Há sempre uma saída
Seja na morte ou na vida
Tens de decidir
O caminho para onde ir "
A isto se resume esta Vida!!!
Metade de mim
é um sinal verde,
a outra metade é...
(suspiros...)
Abraços.
NOTA:...por acaso, ao fazer zapping também descobri no Câmara Clara, uma entrevista com Germana Tânger.
Admirável mulher já com 88 anos e muitas histórias para contar.
Adorei ouvi-la recitar poesia...com uma memória invejável.
Amigo Luís,
e mais um belo conjunto de momentos especiais!!!!
"BRIGADOS" pela partilha!!!
Bjkas!
Caríssimo,
Se pudesse atribuir um prémio ao bloguista mais interessante da blogosfera portuguesa, você seria para mim o eleito!
E também gostaria de o ter como Ministro da Cultura, pois a sua abrangência e sensibilidade é enorme!
Parabéns pois e continue!
Eu por mim, vou-me deliciando com os seus posts e aprendendo com eles.
Um abraço amigo,
Lucy
Subscrevo inteiramente a opinião de Lucy no poste anterior. Ler os seus escritos é um verdadeiro prazer!
M.Júlia
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