Pessoa é o poeta que se desmultiplica na figura de prodigiosos heterónimos e semi-heterónimos, dando feição a uma complexidade de pensamentos, saberes e apreensões. Nunca será demais recordar que a palavra pessoa contém em si o simbolismo do desdobramento imaginário e que é das máscaras de teatro dos actores clássicos que nasce a palavra persona, origem etimológica de pessoa. A questão humana dos heterónimos, tanto ou mais que a questão estritamente literária, tem empolgado as atenções. Mas o que de certo sabemos é que a genialidade de Fernando Pessoa é desproporcionadamente grande para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterónimo mais atormentado, Álvaro de Campos: "Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora." O escritor passou a sua vida a experimentar máscaras, a disfarçar-se com a pele dos que observava e a ocultar-se assim aos olhos de todos (ver, entre muitos e muitos outros, o texto A heteronímia, incluído no site da Casa Fernando Pessoa). De tantas peles que vestiu, usou por uma vez a de uma rapariga, Maria José: uma deficiente de 19 anos agrilhoada no seu corpo e inibida de atrair o amor; uma mulher que ao ver passar o mundo da sua janela também ela sonha ser outra, ser como os demais, como ela imagina que são os outros. Em seu nome Pessoa escreveu uma carta:
Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou toda a chorar.
("Carta da Corcunda para o Serralheiro", Revista Egoísta, Junho 2008)
Na semana que Lisboa debate o feminismo e a sua história, não deixa de ser oportuno comemorar uma mulher que viveu dentro do poeta Pessoa…
Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou toda a chorar.
("Carta da Corcunda para o Serralheiro", Revista Egoísta, Junho 2008)
Na semana que Lisboa debate o feminismo e a sua história, não deixa de ser oportuno comemorar uma mulher que viveu dentro do poeta Pessoa…
16 comments:
Foi pena o poeta não ter dado mais voz a esta Maria José e à sua veia epistolar. Era bem capaz de me fazer compreender ainda melhor "qual é o peso de a gente não ser ninguém".
Não conhecia esta missiva, Luís. Tornaste o meu dia mais rico. :)
Eu também não conhecia e estou deslumbrado...
Mil vezes obrigado, Luís.
Abraço e até amanhã...
Não conhecia esta carta ( uma curiosidade muito interessante ), mas que embora escrita por uma mulher, neste caso um heterónimo, pessoa repete-se e não nos diz nada de novo. E embora sendo um apreciador de Pessoa, mas embora preferindo Sá-Carneiro, porque mais “carnal “ , porque mais “verdadeiro “, porque mais “ vivo “, penso que Pessoa será aquilo a que eu chamarei um poeta frigido. A sua poesia, embora genial, é, a meu ver demasiado fria, isto porque lhe falta a tragédia carnal, isto porque lhe falta a energia erótica, isto porque lhe falta a luz matinal, isto porque lhe falta a escuridão dos abismos, isto porque lhe falta o caos, isto porque lhe falta o lado feminino.
Pessoa sacrificou, muitas das vezes, a maravilhosa pujança e o fogo tão próprios da poesia em nome de teorias e estéticas literárias, desde o Paulismo, passando pelo interseccionismo, sensacionismo, Paganismo, neoclassicismo etc. E esqueceu-se, a maior parte das vezes, que a “verdadeira poesia “está sempre para além de todas as retóricas, racionalismos e intelectualismos estéticos ou filosóficos. Por isso muitos dos seus poemas soam a “ falso “.
Ele próprio chega a ter consciência disso quando pela voz de Álvaro de Campos ( Lisbon Revisited ) diz:
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisíca !
No entanto, Pessoa não se conseguiu libertar dos grilhões desse círculo vicioso. O que foi pena...
Mas, apesar destas reservas, pessoa é e continuará a ser, sem dúvida, o grande senhor da moderna poesia portuguesa...
**
“ Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.”
Tenho a ideia que se esta rapariga lesse o seguinte poema, que passo a citar, com o título
“ Mattina “ de Ungaretti:
M’illumino
De imenso
passaria a ver certamente o mundo de uma outra maneira. E em vez de ser um vaso como uma planta murcha que ficou à janela por tirar de lá, porque incapaz de se mexer, porque incapaz de viver o fogo das paixões e da loucura (tal como Pessoa, ele mesmo) ela seria uma flor murcha desfazendo-se no fogo da manhã, entregando-se ao mundo, amando e sofrendo, chorando e rindo, sentido o sangue explodir-lhe nas veias... E talvez assim conseguisse, como a Fénix, erguer-se das próprias cinzas e tornar-se na palavra onde mora o Ser.
L.C., Züschen
Não conhecia esta carta ( uma curiosidade muito interessante ), mas que embora escrita por uma mulher, neste caso um heterónimo, pessoa repete-se e não nos diz nada de novo. E embora sendo um apreciador de Pessoa, mas embora preferindo Sá-Carneiro, porque mais “carnal “ , porque mais “verdadeiro “, porque mais “ vivo “, penso que Pessoa será aquilo a que eu chamarei um poeta frigido. A sua poesia, embora genial, é, a meu ver demasiado fria, isto porque lhe falta a tragédia carnal, isto porque lhe falta a energia erótica, isto porque lhe falta a luz matinal, isto porque lhe falta a escuridão dos abismos, isto porque lhe falta o caos, isto porque lhe falta o lado feminino.
Pessoa sacrificou, muitas das vezes, a maravilhosa pujança e o fogo tão próprios da poesia em nome de teorias e estéticas literárias, desde o Paulismo, passando pelo interseccionismo, sensacionismo, Paganismo, neoclassicismo etc. E esqueceu-se, a maior parte das vezes, que a “verdadeira poesia “está sempre para além de todas as retóricas, racionalismos e intelectualismos estéticos ou filosóficos. Por isso muitos dos seus poemas soam a “ falso “.
Ele próprio chega a ter consciência disso quando pela voz de Álvaro de Campos ( Lisbon Revisited ) diz:
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisíca !
No entanto, Pessoa não se conseguiu libertar dos grilhões desse círculo vicioso. O que foi pena...
Mas, apesar destas reservas, pessoa é e continuará a ser, sem dúvida, o grande senhor da moderna poesia portuguesa...
**
“ Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.”
Tenho a ideia que se esta rapariga lesse o seguinte poema, que passo a citar, com o título
“ Mattina “ de Ungaretti:
M’illumino
De imenso
passaria a ver certamente o mundo de uma outra maneira. E em vez de ser um vaso como uma planta murcha que ficou à janela por tirar de lá, porque incapaz de se mexer, porque incapaz de viver o fogo das paixões e da loucura (tal como Pessoa, ele mesmo) ela seria uma flor murcha desfazendo-se no fogo da manhã, entregando-se ao mundo, amando e sofrendo, chorando e rindo, sentido o sangue explodir-lhe nas veias... E talvez assim conseguisse, como a Fénix, erguer-se das próprias cinzas e tornar-se na palavra onde mora o Ser.
L.C., Züschen
Não conhecia. Obrigada! :)
é fabulsa, esta carta! foi um amigomuito querido que um dia me falou dela e depois me a enviou por mail. um texto pleno de ingredientes cativantes. um prazer relê-la no infinito pessoal. um beijinho.
uma carta fabulosa do grande pessoa.
todos nós temos uma mulher dentro de nós
um abraço
jorge vicente
Eu também não conhecia e foi muito gratificante complementar o meu conhecimento sobre Pessoa.
Importante e sempre esquecida. Belo post. Abraços do EU, SER IMPERFEITO e A SEIVA
Certamente , se todos conseguissemos , estar do outro lado o mundo seria muito melhor.Seria uma caminho para haver mais paz.
Todos temos de pensar que os nossos problemas por muito que sejam, existem milhares ou mais piores que os nossos.eu gosto de me por do outro lado e muitas vezes dizem que falo pouco, mas o prazer que dá é fantastico.sim , o meu filho joao tem sido uma grande ajuda, estou sempre do lado dele.
Enfim, tantas historias deverao haver destas por todo o mundo e nos passam ao lado.
Abraço Luis por teres posto esta historia aqui.
joao
Tenho uma grande amiga que já me tinha chamado a atenção para esta maravilhosa e tocante carta.
Um abraço.
não conhecia esta carta. achei maravilhosa. obrigada, luís
abraço
luísa
... sorry... não gosto da carta.
... Pessoa? Adoro.
os deficientes Amam em sofrimento, mas nunca Amam ao espelho.
Amam com garra, com dor, com paixão, com vontade, com força, e ás vezes com ódio. Amam por eles e muito pelos outros.
"Digo pra mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?..."
Florbela Espanca
gritomudo
continuo a perder-me na coluna lateral direita... excelente ideia!
obrigado pela divulgação. sabia da existência, mas nunca tinha lido. Pessoa é uma caixa de surpresas que só confirma como somos/podemos ser fragmentários, múltiplos, antagónicos...
Conhecia esta carta. Não posso, nem devo, por vários motivos (o facto de ser mulher, de ser médica psiquiatra, de respeitar a dor e sofrimento dos outros, e obviamente, de reconhecer em Pessoa um dos mestres da vida),deixar de revoltar-me com todos aqueles que não conseguem perceber o imenso conteúdo humano e vivencial desta "reflexão em carta".
Obrigada por nos fazer sentir a todos um pouco mais humanos, mais dignos para olhar aqueles cujas vidas não dão a opção de escolha.
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