Sunday, February 22, 2009

como uma actriz que chega tarde a um ensaio...

(imagem retirada da net)
Ninguém pode dizer que vive plenamente se não respirar um pouco de teatro, se nunca tiver amado esta expressão artística amarrada a factores sociais, económicos, políticos, uma arte que mexe com a estrutura da sociedade. Não se conhece história da cultura e das mentalidades contemporânea nesta terra de Gil Vicente se não se entrou num Parque Mayer que sobreviveu à censura de Salazar e Caetano, à rádio e ao cinema, ao futebol, à partidarite da revolução, à televisão e às telenovelas. Mas é preciso conhecer muito mais do que a Broadway à portuguesa; é preciso saber um pouco da crónica do teatro e das suas gentes, saber o que foi o República, o Moderno de Lisboa, o Avenida, o Politeama e o Ginásio, o que foi o Teatro Graça e o que é a Comuna, a Cornucópia, o Grupo 4, a Barraca, o Bando mais o São Luiz/Mário Viegas e os Artistas Unidos e mesmo o Cénico de Direito e afins, teatro multímodo, teatros experimentais, encantadores teatrinhos, outros nem tanto, teatros de vão de escada, autênticos prostíbulos, ou teatros de ópera, do clássico às práticas mais inovadoras, forçosamente marginais, à margem do mercado. Mas sobretudo conhecer os subterrâneos do mundo da ilusão. O teatro é o continente onde habitam todas as belas artes. Aquele que não se deleitar com a beleza não pode apreciar o valor da vida; e o teatro é a vida. E disso, meus caros, entendia a Senhora que se segue.
A casa da enigmática D.ª Germana era uma espécie de botequim sem aparato cenoplástico e a sua salinha de estar com janela para a rua – onde se sentava num sofá vermelho – era muitas vezes palco de grandes debates e números de fantasia, horas de muita vida inventada; era ali na sua torre de marfim de Campo de Ourique que passava a sua vida, ali que desfilavam os seus habitués, ali que tinha exactamente o cheiro que achava que deveria ter um teatro.
Que ela seja natural de Marco de Canaveses parece indesmentível; e que abandonava por vezes a cidade, numa espécie de licença sabática, nas semanas de Verão em que o seu bairro deixa de ser a sua opereta, é também uma realidade. Mas para onde ia, ou o que fazia quando estava em itinerância disso ninguém sabia, apenas que deixava atrás de si um delicado perfume de saudade, forte como o das violetas, penetrante como o das rosas. Donde ela não é seguramente é da província das lágrimas, dos folhetins lacrimosos, do sentimentalismo oitocentista, do pranto, do fado, da carpideira, da viela, do amor proibido. Voltava no mês em que os dias, mais pequenos, se tornam frescos e dourados, os jardins se vestem de vermelho e as folhas se despedem das árvores. Regressava com os ventos mas também com os grandes espectáculos, com Pinter, Beckett, Albee, Pirandello, Genet, entre outros, bem como ansiava sentir o sopro trágico das obras de Strindberg, Pirandello, Raul Brandão e Heiner Müller. Vinha a correr não se sabe de onde para encontrar um palco que fosse o mundo tal como ele é, o palco da injustiça, como advogaria Edward Bond. Esta mulher intensamente curiosa que podia lindamente sair das páginas de Virgínia Woolf só tem comparação com a fascinante Mrs Crowe, uma das suas personagens eleitas, uma alma gémea de rosto britânico.
Muitos e muitos anos passou a D.ª Germana sentada no que era o seu poiso geográfico, naquela sala, junto à janela – mas não os passou solitária e muito menos abraçada ao tédio. Havia sempre alguém de visita, sentado no cadeirão em frente, partilhando a sua margem de alegria. Mas ainda o primeiro visitante não estava em cena há quinze minutos, e já a porta da sala se abria, para que a Irene, a empregada de olhos mansos e azuis, robusta e calma, rosto enrugado, coberto de maquilhagem, veias retesadas e salientes, como se o seu corpo conhecesse algum segredo, que desde sempre servia a casa, viesse anunciar mais uma e outra e ainda mais outra visita. Irene, uma espécie de compére que estabelecia o vínculo entre todos os que iam comparecendo. Homens e mulheres que alternadamente abrilhantavam a famigerada sala de estar. E a mesma découpage, a mesma mise-en-scène repetia-se dia após dia.
Uma sessão de psicanálise com a D.ª Germana era algo de contra-natura. Ela não prezava os duetos. Uma das suas singularidades era a de não ser íntima de ninguém. Por exemplo, num dos campos da sala via-se sempre um senhor de cabelos ralos que parecia, na verdade, o homem que fazia chover, da peça de Richard Nasch, desaparecido da vida quase em segredo. A D.ª Germana, porém, dirigia-se a ele sempre como Sr. Cortez – nunca como Eduardo; embora acontecesse, por vezes, tratá-lo por “meu Estimado Sr. Cortez”, como para sublinhar o facto de se conhecerem desde sempre.
A sala de estar da D.ª Germana era frequentada por actores, encenadores, bailarinos, músicos, coreógrafos, dramaturgos, artistas plásticos, diseurs e diseuses, poetas, costureiras de cena, sonoplastas e até caloiros do Conservatório, artistas de circo, mimos e até perspicazes inúteis, outros cujos nomes eram sinónimo de génio, sexo e excesso, imparável boémia, uma espécie de cabaret da palavra, um café-concerto em versão de matiné, comédia e tragédia em sessões alternadas, verdadeira celebração da emoção com o seu quê de mordaz. Não se pense no entanto que a D.ª Germana apreciava intimidades, a intimidade é questão de pudor e isso ela não subscrevia. A intimidade é mãe do silêncio, e o silêncio era parto que ela abominava. Era imprescindível existir tertúlia, e esta tinha que ser sobre matérias genéricas, sobre tudo um pouco, até ao limite do burlesco. A prosa devia ser ecléctica, não podia ser muito especializada, nem demasiado erudita. Naturalmente que aquele não era o lugar para qualquer hermenêutica ou análise critica a A Morte de Empédocles de Friedrich Hölderlin pois se a conversa avançava excessivamente neste caminho, era certo que alguém haveria de se sentir rejeitado e ficar ali a girar o seu café expresso num copo de papel, sem abrir a boca; se alguém dizia algo de brilhante, isso era considerado um erro grosseiro, um sketche prontamente ignorado.
O tipo de rábula que a D.ª Germana apreciava era uma versão nobre de enredo. Todo o teatro é pura bisbilhotice e a má-língua incidia sobre as gentes do teatro. Mas o grande dom da D.ª Germana consistia em fazer com que o mundo parecesse reduzir-se à dimensão de uma sala de teatro e uns cinco camarins. A ideia de um mundo como um palco, como o fez Shakespeare ou como o formulou Calderón. Ela tinha a formidável habilidade de uma maestrina e desfrutava de um repositório precioso de informações de primeira água a respeito de cada estreia, cada nova actriz, cada encenador premiado, cada elenco renovado. Sabia qual o actor que ia ser sondado para a próxima época. Mencionava as íntimas razões das discórdias entre o príncipe Luís Miguel Cintra e o plebeu Jorge Silva Melo e arriscava o palpite acerca da análise do Expresso ao novo Titus Andronicus, no Bairro Alto; as críticas manhosas que faziam chorar os espíritos mais fortes. E tendo feito tais observações ao longo de anos, a D.ª Germana adquirira um importante acervo, de fazer inveja ao Museu do Teatro. Na sua sala estúdio residia uma desmedida alegria ao comentar-se a interpretação electrizante de Maria Barroso na Antígona de Anouilh, as fotos de Augusto Figueiredo, as expressões de Isabel de Castro, os slides que o Ernesto de Sousa tirou à Glicínia Quartin, a maquilhagem excessiva do Rogério Paulo em o Gebo, a pose audaz da Dona Amélia Rey-Colaço, um autógrafo da célebre Palmira Bastos, uma peça radiofónica de Brecht, a incorruptível beleza de Isabel Ruth, a péssima dicção de alguns actores, que berram e gesticulam de mais, as peças, nem sempre boas, muitas de breve êxito, plágios dos sucessos da Gran Via ou dos boulevards de Paris, lantejoulas e sedas que deixam entrever pernas e seios, as companhias brasileiras que se instalavam uns meses ora no Capitólio, ora no Tivoli, uma história picante, os cachets, as lições de sapateado, as bebedeiras, o mau feitio da stripper que se enfrascava em uísque, o ilusionista foleirote, uma ou outra actriz medíocre já em fim de estação, por vezes uma atracção com um nome mais sonante para estimular o pessoal e as indescritíveis espanholas que cantavam ou dançavam e que chegavam ao ABC ou ao Maria Vitória sempre com as suas rechonchudas 'madres' que, enquanto faziam variados crochés, não afastavam os olhos das suas 'niñas', coristas protegidas por ministros, um programa anotado, uma caricatura, um anúncio de jornal em que se descobre um espectáculo esquecido, um bilhete rasgado, a maquinaria de cena, os trajos, as luzes, a música, uma maqueta, uma aguarela com um figurino, “deixas” que fazem regressar, por instantes, a peças que não viram, às vezes que viram, as palmas e as pateadas, apoteoses e números vibrantes, os sussurros, os camarotes das salas, que arderam, o cheiro dos velhos camarins e dos velhos teatros, os palcos com cortinas pesadas que abriam e fechavam em cada acto! Evocavam-se as vozes as gargalhadas dos actores, os seus vestidos, leques, adereços, cenários, figurinos, cartazes, discos e partituras, cartas de amor soterradas nos escombros de teatros abandonados, esses nadas que, não fazendo o teatro, são o teatro e os faziam desenhar a vida que não viveram. As intrigalhadas dos camarins, as filas à porta dos artistas, as receitas de bilheteira, os comprimidos para os nervos tomados como rebuçados de mentol, o pânico das estreias, os desmaios da actriz convidada quando subiu a cortina no segundo acto, o jovem actor em ascensão com ciúmes do rival e que contratava alguém para a primeira fila, na noite de estreia, para assobiar e patear o colega, o actor premiado que desistiu da carreira no dia da entrega do galardão porque não se queria imaginar mais num palco durante um ano inteiro, a dizer o mesmo texto, o sénior da arte de talma que recusou o prémio Garret em sinal de contestação à politica cultural do país, o beijo lânguido nos bastidores, os olhos dos actores que ninguém conhece banhados de emoção, a vedeta que imitando Betty Davis pôs um anúncio nos jornais de grande tiragem a implorar trabalho, os trágicos finais de carreiras gloriosas, o espectáculo cancelado por falta de público, a idade inventada das actrizes e até a morte do poeta Ary. No fundo, muito barulho por nada. Mas a D.ª Germana não era uma mulher oca nem uma pretensiosa, mas uma mulher forte e irreverente. Uma coleccionadora de relações, e a sua espantosa perícia nesse domínio servia para conferir um ambiente caseiro às suas recepções. A velha senhora era uma socióloga com plena consciência da magia potencial que o mundo da arte dramática contém e a sua capacidade para descobrir a alma humana e revelar os seus mistérios.
Ser acolhido na casa da D.ª Germana equivalia, portanto, a tornar-se membro de um night-club ou de um casino, e a jóia exigida era uma determinada quota de coscuvilhices por temporada. A mais cara das prestações era dar prazer a quem ouvia – como devia ser a dos actores da Commedia dell’Arte –. Quando um encenador escolhia uma actriz porque teria dormido com ele, ou quando a primeira figura feminina de uma comédia musical fora apanhada a injectar-se no Casal Ventoso, quando o coreografo acabara de entrar nos serviços de urgência devido a uma tentativa de suicídio porque o amante o deixara, quando os três interpretes da Ceia dos Cardeais, no Nacional, se ofendem, fora do previsto no texto, ou aquela bailarina inglesa viciada em narcóticos que caiu no fosso de orquestra ou mesmo a velha actriz que parecia uma gata em telhado de zinco quente desde que conheceu o encenador francês que dava formação a actores sem préstimo, havia muita boa gente cujo prioridade era “Vou de imediato a casa da D.ª Germana.”. Mas também aqui era necessário observar um certo protocolo. Regra geral, só podiam visitá-la a partir das quatro e meia e antes que a noite chegasse. Eram poucas as pessoas que tinham o privilégio de almoçar com a suavíssima e atenta D.ª Germana, eis o que não sofre dúvidas. Talvez apenas o Sr. Cortez e o Mr. Jonathan, do Estrela Hall, pois não era uma mulher de posses. O seu vestido preto bon chic, bon genre, mas já algo desgasto, o seu colar de diamantes e safira era sempre uma jóia que não queria ser notada mas que convivia em harmonia com os eternos dois traços de rímel sublinhando-lhes discretamente os imensos olhos. A sua refeição preferida era o lanche, o seu Pano de Boca, como lhe chamava, pois uma mesa de lanche pode ser fornecida sem grandes gastos, além de que há neste manjar um music-hall que ia bem com o carácter sociável da D.ª Germana, mas a refeição tinha sempre um cunho distinto, tal como o seu cabelo manchado de branco tinha o aprumo e a força de um cabelo jovem e o seu vestido e as jóias lhe assentavam impecavelmente e possuíam uma personalidade incomparável. Devia ter sido uma mulher bonita, daquelas que nunca precisaram da esteticista nem da Vogue e que nunca sacrificaram a beleza à elegância. Havia sempre um bolinho de banana fácil e uns brigadeiros – algo que era exclusivo da casa e que fazia parte da encenação caseira tanto como a Irene, a velha empregada, como o Sr. Cortez, o velho dedicado, como velho o revestimento do sofá vermelho ou o velho Arraiolos no chão.
Que a D.ª Germana saía por vezes para assistir às estreias, que era vista em meios frequentados por artistas, que até no Frágil tinha passaporte especial, tal como em tempos o tivera no luxuoso Maxime, ainda que de forma elíptica, é sem dúvida verdade. Que se demorava um pouco mais no Monte Carlo, que era a catedral dos cafés de Lisboa, também é um facto, pois ali ia toda a gente, cabiam lá todos: escritores e jornalistas, actores e cantores, gente do regime e da oposição, excêntricos e maníacos, trabalhadores e parasitas, donjuans e até transexuais, solitários e clãs em peso, e os clientes anónimos, quotidianos, sem biografia. Muitos episódios de teatro ali se narravam. Mas em sociedade ela parecia sempre furtiva e dispersa, mutilada; era como se tivesse comparecido apenas para deitar a mão a alguns excertos de notícias de que precisava para completar o seu próprio erário. Assim, raramente a convenciam a estar muito tempo, parecia sempre uma actriz que chega tarde a um ensaio. Deslocada. Para ser verdadeiramente ela mesma, tinha de estar perto da sua própria casa, do seu próprio décor, ao som da Sinfonia Fantástica de Berlioz ou da última ópera de Puccini. O teatro definitivamente morava em sua casa. À medida que os anos foram passando, essas pequenas incursões no mundo exterior praticamente cessaram. Tinha arquitectado o seu reportório tão completo que o vaudeville exterior não lhe podia acrescentar nenhuma pluma. Além de que o seu grupo de amigos era fidelíssimo, que podia sempre confiar nos aliados para lhe contarem qualquer notícia que lhe conviesse acrescentar à sua colecção. Não precisava de sair do seu sofá vermelho junto à janela, contrariando a máxima de Schopenhauer de que não ir ao teatro é como fazer a toilette sem espelho, pois, agora era o teatro que ia ter com ela. E, com o passar dos anos, o seu conhecimento tornou-se mais refinado. Uma espectadora com o verdadeiro dom de ubiquidade. O mundo voyeurista era dela, movimentava as novidades com à-vontade guiadas por uma ânsia enorme de ir vivendo, alumiada pelos afectuosos companheiros das tardes e se fosse religiosa a sua santa dilecta seria decerto Sarah Bernhardt, isenta dos pareceres dos sábios doutores da crítica. Assim, se uma peça de teatro estreava com grande sucesso, a D.ª Germana era competente não só para reportar, no dia seguinte, o facto adicionando-lhe algum divertido mexerico de bastidores, mas também de remontar a outras longínquas noites e descrever Salomé, Romeu e Julieta, A Visita da Velha Senhora e As Árvores Morrem de Pé ou o Pigmalião de Bernard Shaw, logo a seguir à Guerra, com o António Silva, ou entre arrepios Macbet, encenado por António Pedro, ou a ousadia do histriónico La Féria em A Paixão segundo Pier Paolo Pasolini, de René Kalisky, a coragem de Luzia Maria Martins, a nudez de Zanatti em A verdadeira história de Jack o Estripador de Elizabeth Huppert ou em Equus de Peter Shaffer, mas também histórias com fadas e peças onde houvesse quem morresse de amor. O que a prima donna assoluta Eunice Muñoz teria sentido em As Criadas; o que a Anabela e a Mariema, mulheres de incrível força no palco, teriam sofrido em números grosseiros de revista; as acusações sexistas que recaíam sobre Villaret; um assistente de palco que varreu as pétalas após o espectáculo e teve a ideia de criar um potpourri e vender, nas noites seguintes, aos admiradores que se aglomeravam à porta do teatro; a primeira actriz da baixa comédia que saía de casa doente para chorar em frente do local onde estivera o Monumental, incompreensivelmente destruído, escondido debaixo das ligaduras de um fantasma; o grande homem de teatro que entregou a sua alma à carreira e acabou demente ao confundir-se com o Rei Lear, a sua última personagem; Ivone Silva, a grã-sacerdotisa dos palcos ligeiros, cujas andanças pelo teatro independente e a sua vida intima transformaram radicalmente; o assassínio de uma chefe de quadro num táxi a dez minutos de começar a 1.ª sessão; o insistente recurso ao travesti, como um corpo deitado no meio da linha-férrea; o actor Perry cuja voz e olhar forçavam a audiência a ouvir e a observar cada um dos seus movimentos ou o que dissera o querido Sr. Vasco Morgado – nada, por certo, de muito extraordinário; do jornal que fez publicar uma crítica a um espectáculo que não chegou a estrear; da brutal censura e das suas proibições matarruanas como quando confiscaram tudo o que se encontrava no auditório e procederam ao seu encerramento perante os seus próprios olhos e até da multifacetada dramaturga maldita que usava a boquilha como prolongamento da própria mão, mas enquanto D.ª Germana enumerava tais pormenores, era como se todas as páginas da vida do teatro nos últimos sessenta anos fossem suavemente transformadas e desordenadas temporalmente para diversão dos que a escutavam. E deslumbrante a iconografia nelas publicadas, imagens de gente afamada com sonhos acumulados na pele; mas a D.ª Germana não vivia na história, de modo algum a preferia ao presente e amava o futuro.
Era a última noticia, o doce vagabundear pela actualidade, pelas modas e costumes aquilo que mais lhe interessava, o último aplauso, o derradeiro fracasso, a necessidade de habitar recentes amores, o regresso à alegria de viver, como se de uma peça de De Fillipo se tratasse. O que o teatro tinha de encantador era o facto de proporcionar sempre novos e diferentes temas de cavaqueira. O seu clube de fãs só precisava de manter os olhos bem abertos e assentar arraiais das quatro e meia às sete, uma espécie de ópera cómica em cena todos os dias da semana, a coberto de uma companhia sem direito a folga.
O mais distintivo, e talvez um nadinha desorientador, no temperamento da D.ª Germana era a cuidado com que ela suspendia o que estava a explicar e elevava os olhos brilhantes, um quase sorriso, a necessidade de olhar para o próximo parceiro em close-up, tensão vigilante, assim que a porta da sala se abria e Irene, já muito derreada, apresentava uma nova criatura. Quem seria? Que conteúdos apensaria à palestra? Mas a sua aptidão para circunscrever essa oferta dos convidados a um cast de primeiríssima ordem era tal que nunca daí resultava qualquer transtorno; e uma parte do seu êxito residia no facto de a porta nunca se abrir excessivas vezes; a assembleia era constituída por uma clientela seleccionada, um tipo de sociedade de autores que nunca crescia a ponto de ela perder o oriente sobre ele.
De modo que, para conhecer a história recente do nosso teatro não apenas como mais um nostálgico armazém de ternura ou um séquito de oportunidades perdidas, era essencial conhecer a D.ª Germana, sempre menina espevitada, recolhida no seu camarim, mas atenta à distribuição de lugares que iam das primeiras filas, e das frisas e camarotes ditos de “boca” até às galerias, à geral. Decifrava como ninguém o mapa teatral ainda que dispersa numa noite escura e chuvosa. Quem pensasse que o teatro vivia bacteriologicamente isolado da vida de D.ª Germana, estava profundamente enganado. Era no seu céu de papel que os inumeráveis pedaços da vasta plateia pareciam convergir num todo vivo, abrangente, divertido e agradável. Uma comédia da sociedade de recreio onde o mundo se abria. Uma paródia brilhante onde eram convocados Aristófanes, Plauto, Goldoni, Óscar Wilde, entre outros referentes literários. Artistas ausentes ao longo dos anos, homens e mulheres endurecidos pelas saudades dos projectores, encaminhavam-se repentinamente à acolhedora casa na tranquila rua a fim de serem, num ápice, introduzidos na cultura mexeriqueira do mundo teatral. Até a consensualmente considerada actriz mais talentosa da nova geração que logo após a tournée não resistia a passar por aquela discreta rua de Campo de Ourique.

Passa depressa o tempo no teatro e daí que nem o próprio teatro poderia manter a D.ª Germana viva para sempre. É um facto que um dia a D.ª Germana apresentou sinais evidentes de cansaço, teve a ousadia de se deixar envelhecer e abandonou o seu sofá vermelho junto à janela no momento em que o relógio batia as quatro e meia, as pancadas de Moliére deixaram-se de ouvir e Irene não anunciou ninguém; o Sr. Cortez tinha-se deslocado do velho piano, agora repleto de poeira de melancolia e sebastiânicas saudades. Um palco vazio, uma “farsa” por estrear, o pano caído definitivamente, um mau presságio. A D.ª Germana despediu-se da vida como se lhe contasse um segredo, e o teatro – não, apesar do teatro ser eterno, em Lisboa jamais será o mesmo.
Luís Galego

15 comments:

Luís Costa said...

Luís, que dizer? senão abrir a boca e exclamar:
Excelente!
Parabéns, Luís,
por este texto em nome do teatro
e viva a D.ª Germana!

L.C.

Daniel C.da Silva said...

Sem particularizar, retiraria isto: "(...) Mas sobretudo conhecer os subterrâneos do mundo da ilusão. O teatro é o continente onde habitam todas as belas artes. Aquele que não se deleitar com a beleza não pode apreciar o valor da vida; e o teatro é a vida.".

Fez-me lembrar um livro (transposto também para filme: "Infidelidade". Um teatro, um subúrbio, uma solução... que na ilusão a solução - oh paradigma - é nenhuma. E as histórias terminam e nao se sente que o pano caiu. Os panos nunca caem. Somos nos que os julgamos a fechar, como se pudessem encerrar algo. Não encerram nada. Nunca encerram nada.

Aquele abraço

Violeta said...

Luís
obrigada
lembraste-me o quanto ando afastada do teatro, co cinema, das exposições, enfim da vida.
boa semana!

bonecadetrapos said...

Caríssimo,
li ontem este seu trabalho. O que lhe posso dizer é tão só que, em tudo o que escreve, se evidencia notoriamente qualidade humanas fabulosas. Para além do óbvio rigor da escrita em si.
As artes ficam a dever ao Infinito Pessoal um imenso "bem-haja".


A *__bonecadetrapos__* só pode, humildemente, agradecer.

Saudações,

Unknown said...

Caro Luís,


A Sra D. Germana Tânger fica, AQUI, da forma nobre que merece!!!!
Viva O TEATRO!!!!
Aplaudo de pé!!!!!

Obrigada por este post!

Mel de Carvalho said...

"brother", sem palavras!
... ou apenas: és um ser especial e só quem olha com os teus olhos vê as coisas desta forma!

Beijo, bom feriado
Mel

cirandeira said...

Andei,por andar, andei e conhecí os antigos teatros, os velhos becos da boemia, as escadarias, os bastidores, a ribalta, toda a magia e o mistério que nos incita, nos provoca,às vezes nos dá medo e ao mesmo tempo nos atrai, porque nos encanta! Através da enigmática e atraente D.Germana,conseguiste levar-me aos teatros de Portugal(que não conheço)e sentí-me como se estivesse a percorrê-los, um a um.Sentí-me até participando daqueles encontros com ela, como se a conhecesse...! Foi um passeio mágico que conseguí fazer através de tua crônica sobre D.Germana, o teatro e a própria vida. Quem "imita" quem: a Arte ou a Vida? Acho que ambas estão entrelaçadas e não podemos existir sem elas.Considero o que escreveste
uma tentativa verdadeira de resgatar essa coisa tão maravilhosa que é o Teatro! Que é a Vida!

Daniel C.da Silva said...

Olá!
Faço-te um convite para um desafio que igualmente me fizeram (As Três Mentiras) no meu blog e ao qual também gostaria que respondesses.
Vai lá espreitar.
;)



Daniel

João Roque said...

Quando comecei a ler este texto, de imediato pensei na D. Germana Tânger, mas logo vi, que no meio de uma bela homenagem a essa senhora estava sobretudo uma maravilhosa homenagem ao Teatro, a todo o teatro que por aqui se tem feito ao longo dos anos.
Neste texto está lá tudo, estão lá todos e todas...
Fabuloso exercício de memória e de síntese, onde até te dás ao luxo de relembrar esse "Monte Carlo" da minha juventude, que nos dava diáriamente a imagem da Laura Alves tão frágil e diferente do que víamos à noite, ali ao lado no Monumental...
Que prazer imenso ler tudo isto, Luís!!!
Obrigado, mil vezes obrigado por esta partilha.
Abraço grande.

Carlos Faria said...

não conheci a sala da D.ª Germana, não conheci muitos dos espaços, obras e acontecimentos lembrados no texto, mas ao longo das suas linhas vivi intensamente o teatro. Foi como se de repente tomasse consciência de tudo o que foi o teatro em Lisboa e da sua importância e ele calma e silenciosamente viesse instalar-se ao meu lado e dissesse: aqui estou! e me desse as mãos e viajássemos juntos no tempo. Não sei se a homenagem foi maior à D.ª Germana ou ao Teatro, certamente aos dois.

Raí Pereira said...

Obrigado por sua visita e parabéns pela bela escrita!!!!!
Abraços

- Moisés Correia - said...

Derramo pelas mãos escritas em palavras
Sentimentos de pensamentos desfiados…
Dispo a alma em poesias desvendadas
Expondo-as sem temer trilhos apagados

Passei para agradecer a visita e comentário…

Um resto de uma boa semana…

O eterno abraço…

-MANZAS-

Anonymous said...

Este site é pernorgráfico ... deve ser censurado...
Mulheres nuas ... não senhor ... só bonecas vestidas ... e sem decotes...

O pároco de Viseu

Bártolo da Conceição

Mar Arável said...

Caro luis

Vergo-me perante o seu texto

brilhante como sempre.

Um hino ao teatro e uma personagem

que o seu texto não deixa morrer

Ternura reconhecimento belo

Por instantes recordei o meu tempo

de menino em Aveiro quando ajudei

a construir o CETA (círculo experimental teatro de Aveiro)

OBRIGADO POR ESTE MOMENTO

e depois eu é que devo ser homenageado?

Abraço amigo

Unknown said...

Quando penso que a sua escrita já não me pode surpreender pelo grau de qualidade que atingiu....Eis que me volta a surpreender pela sensibilidade, pelo recorte literário, pela história.
O Luís passeia pelas palavras...