Saturday, March 07, 2009

embarque para Citera...

(Jean-Antoine Watteau - Embarque para Citera)
Trovoada a tempo inteiro, acordo e sinto que me faz falta agasalhar dentro dos braços da Beatriz. Antes só os pés dela me despertavam. É a sensação mais pavorosa. Sentir a falta de alguém, uma abominável nostalgia, ferida profunda, que teima em cicatrizar, lágrimas permanentes à flor da pálpebra. Uma mulher com quem se partilha uma garrafa de bom vinho no Inverno a meio da noite, ao som de Verdi e de Monteverdi, o par ideal para dançar uma valsa vibrante, que gosta de sol verde e cru e de mar, do cheiro da chuva e com a qual nos perdemos em labirintos e transgressões sexuais, num prazer desvairado em dias lentos não pode eclipsar. A recordação de um beijo balsâmico retido como um segredo, de uma palavra, de um olhar, de um abraço invade-me os poros da pele e queima-me o sangue. A saudade sobe pelos dedos, desmorona-se em bebedeira dentro do coração esfomeado. Acordo desamparado às quatro da madrugada e confundo-me com os contornos sombreados do Embarque para Citera pintado por Watteau, paisagem habitada de figuras reais à espera do amor. Sinto-me como o gesto vacilante que procura um livro na estante ou uma carta escondida na gaveta da cómoda. Os meus pensamentos perseguem-se uns aos outros, numa dança de roda. Nada é mais secreto do que uma existência feminina. Sinto a falta do seu odor, que ressumava a jasmim e era apaziguador, do cigarro, da maquilhagem e até do violino, a amante sincera por quem desfaleço. Tudo na minha vida profissional está alinhado, os contratos e as reuniões, os protocolos e os planos de actividades e não se alterou em nada a relação com o mundo exterior. Preencho os meus dias de trabalho com uma música tão contínua que os momentos de silêncio parecem simples pausas. Só que falta o afecto, uma espécie de semidireito de cidadania. Muda-se a disposição dos quadros e das plantas, bebe-se dois uísques, engole-se um Victan... mas nada se resolve. Do outro lado dos vidros de repente está a morte silenciosa. Não. Vou viajar. A cidade recebe-me em toda a sua ostentação. Hotel Lírico, rente ao Teatro dell'Opera. Como um caçador solitário que dorme debaixo das mantas, levanto-me cedo, nessa terra aberta, como lhe chamou Fellini, a urbe italiana é um deslumbramento. Bela e caótica, aristocrática e popular, presumida e despretensiosa, espontânea e maliciosa. Tal como Beatriz, Roma seduz e vicia. Apresso-me para a rua, num cenário em que o Belo se impõe a cada esquina, sinto no ar Miguel Ângelo, Perugino e Botticelli, realidades sensuais, emociono-me perante um quadro num altar de igreja, admiro o famoso arco, imagino o corpo de Anita Ekberg nas águas da Fontana di Trevi, peço ao empregado de olhos cinzentos, no restaurante, carbonara romana, que ele, orgulhoso, me serve. Na grande esplanada animo com uma bebida inebriante. Ali, viveram amores contrariados, que, na grandeza do seu génio, encheram a cidade com um número impressionante de obras-primas. Reclino-me entre janelas, portais e colunas, cuja elegância e nobreza de linhas são explanadas nos mais brilhantes volumes de história da arte. A qualquer hora do dia, tropeço em ruas antigas repletas de mulheres e homens de olhar deslumbrante e exuberante cordialidade. Mora, aí, uma estirpe orgulhosa, vaidosa e cônscia da própria beleza e sensualidade. Rasam sobre mim olhares de ternura, que espiam a minha solidão, ou, numa serena superioridade, me enfeitiçam, endereçam mensagens, olhares femininos que soltam minúsculas faíscas, me salpicam com um perfume sexual, atiram beijos com o olhar, até o coração estremecer. Impossível por aqui passar de olhos fechados. Ao entardecer ouvem-se clássicas melodias que se sintonizam com a luz colorida de candeeiros e há enamorados que dançam até ser madrugada. Nestes lugares extasiados de sons e archotes, há uma mesa que me aguarda, e uma mulher com uma écharpe de seda preta, que me convida a entrar num corredor escuro, repleto de quartos abandonados onde tanto se tinham feito livros e amor. Com o coração a desfalecer, angustiado sob o peso da dor, assustado e perplexo olho para tudo, como um discípulo atento mas exausto, vagueio pela cidade desde manhã cedo, concentrado nos detalhes, como quem receia perder alguma particularidade. Imponho-me a respeitar uma rotina, estou pronto na hora certa, seguro dos pontos cardinais; como se alguém me aguardasse embora não ouse confessar a mim próprio que tenho a sensação de que ela espera por mim. E que se andar entre a multidão, por aqui e por ali e for a certos lugares, hei-de encontrar a mulher que amo. Procurá-la tornou-se o meu dia, a minha noite, a minha conversa, o meu cântico. Lanço o meu grito luso sobre os telhados do mundo, navego por mares incógnitos, visito territórios desabitados. Desfigurado e suado sinto-me confuso e receio estar a alimentar uma expectativa ingénua. A porteira, sem entusiasmo, só sabe que ela partiu com o seu violino para um qualquer lugar, provavelmente Roma. Os amigos, não sabem mais, ou não dizem, como se de um fantasma efémero se tratasse...Muito rapidamente deixei de saber fosse o que fosse sobre ela. O universo ergueu um nebuloso obstáculo entre mim e a pessoa desaparecida, como se alguém tivesse cometido um crime e se encontrasse desterrado. Como se uma ambulância passasse vagarosamente pela minha vida deixando um rasto de sangue. Embriagado pelo sofrimento, eu grito que a amo. Ela não ouve. Embruxado, continuo a chorar de medo, sem testemunhas, que é o meu único modo de chorar, como as virgens atormentadas no cinema triste. A penumbra anuncia-me o dia e recordo Garcia Marquez quando escreve que as estirpes condenadas a cem anos de solidão não têm uma segunda oportunidade sobre a terra. E de repente é um martírio. Terrível. E isto dá vontade de morrer de desgosto, porque tudo se aliou ao silêncio no esquecimento do amor. Afinal, onde procurar aquele gesto, aquele olhar, aquele sorriso indescritivelmente doce?...E, depois, Beatriz, o que dizer?...
Luís Galego

20 comments:

Anonymous said...

E depois,Luís, não procures mais!
Abre o coração e...actua!
Abraço

Anonymous said...

E depois,Luis...não deixes que seja terrível. Abre o coração, esquece o Garcia Marquez...e viaja nos braços duma eleita "Beatriz".

Ana Paula Sena said...

Parece-me um texto excelente!

E espero que Beatriz reapareça ou seja (re)encontrada breve :)

Anonymous said...

Afinal, sou mais teimosa que esta coisa, que não me permite deixar um comentário... E vão três...
Se encontrares a tua "Beatriz" não penses no Garcia Marquez...Abre o coração, recebe o Amor...Actua!
Depois...boa viagem, meu amigo!

Luís Galego said...

Trata-se de ficção - entenda-se. Um grande abraço a quem por aqui passa.

Maria P. said...

Gosto quando o texto fico com "?...",enigmático, espero a continuação.

:)Beijinhos*

João Roque said...

"Só que falta o afecto, uma espécie de semidireito de cidadania".
Gosto muito, por razões pessoais desta frase.
E fiquei um pouquinho desapontado por na magnífica descrição de Roma, não haver uma referência a uma das mais belas praças que já vi: Piazza Navonna...
De resto, tudo magnifico, como já nos habituaste!
Abraço.

Unknown said...

Além da escrita esmerada, são os tons, as cores, os ambientes...tudo com grande qualidade...

Violeta said...

"como se alguém me aguardasse embora não ouse confessar a mim próprio que tenho a sensação de que ela espera por mim. E que se andar entre a multidão, por aqui e por ali e for a certos lugares, hei-de encontrar a mulher que amo"
Gosto da ficção que aqui escreves. Muito bem escrito, como sempre.
Bom domingo

Anonymous said...

A ficção, Luis,também se fundamenta na realidade...Melhor do que eu, o senhor doutor sabe que os reflexos existem...

AnaLee said...

Vim aqui parar por acaso quando andava pelo google a pesquisar sobre o convento da Cartuxa.
Creio que fiquei fan do blogue.
Ele há por aí uma ou outra Beatriz cheia de sorte, ficcionadas ou não...
:)

Oliver Pickwick said...

Intimista e existencial - sem ser maçante, muito ao contrário, tem um clima de suspense que anseia o leitor a equiparar a busca por Beatriz, como se esta fosse um tipo de tesouro de Sierra Madre, no entanto, sem que se perca a dramaticidade em nenhuma frase.
Sobressai ainda as âncoras que utilizou, desde Anita na Fontana di Trevi, aos ícones da arte que referenciou, criando um ótimo pano de fundo. Por sinal, diferenciando de outros contos deste gênero, contumazes em exibirem ações que parecem dar-se em ambientes preenchidos pelo éter.
Excelente conto, caro Luís.
Um abraço!

Oliver Pickwick said...

P.S.: Desculpe por este comentário "Guerra e Paz", mas é que gostei muito da escrita.

Carlos Faria said...

Continuas a deliciar-me com a forma de alinhar sentimentos, descrições de terras, arte. a misturar tudo novamente e a voltar a dar sempre de um modo belo.
por acaso não conheço roma, estava a pensar provavelmente lá ir no próximo outono, mas agora estou certo que é roma onde quero ir... apesar das poucas palavras sobre ela, foram mais que suficientes para me convencer e isto prova a força do teus textos.

isabel mendes ferreira said...

embarco sempre Luis. consigo neste espelho de margens in.margináveis.


nada como ficar aqui....solta e expectante do seu "cantar".



um abraço. de maravilha.

jorge vicente said...

o que dizer, meu grande poeta
que roma não diga
ou que a bela capela sistina não diga com os anjos.

beatriz está nestas páginas todas.

um grande abraço
jorge

Dona Fernanda said...

teu escrito é visceral, me arrebata.

aplausos!

Daniel C.da Silva said...

"Só que falta o afecto, uma espécie de semidireito de cidadania"

Pegando no personagem (que nunca deixa de ser um pouco de nós ainda que por vezes nao o tenhamos interiorizado porque foge ao campo da consciência)- embora neste caso o personagem praticamente deva ter coincidido contigo no que toca à citação que faço-, diria isto: o afecto nao é uma espécie de semidireito de cidadia. É uma Obrigação (Direito das Obrigações ou nao) de PLENO DIREITO (por mais paradoxal que seja usarem-se termos tecnicos para isto. Ou simplificando: o Homem foi feito para viver em relação com. Por natureza o Homem é um ser relacional. Nenhuma vida vale se for regua e esquadro. E isto nao significa que os afectos sejam o caos. Mesmo que o tragam. Mas so entao se pode aceder ao direito de Viver. De outra forma existimos...

Abraço

Vox Maris said...

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Dr.do absurdo said...

Muito bom seu conto.