Thursday, March 12, 2009

Francisco...


[Rembrandt - Homem nu sentado no chão com perna estendida]

As árvores do parque estremeciam com a chuva; e a chuva continuava a cair como sempre sobre o lago, que fazia lembrar uma ave a tremer. Cruzava-o um bando de cisnes, e a água era de uma pureza tal que se confundia com os diamantes mais límpidos. E eles abraçaram-se suavemente, impelidos pela luz cinzenta e húmida, as árvores silenciosas e molhadas, o lago estendido diante deles, a coreografia dos cisnes. Abraçaram-se sem entusiasmo e sem calor, o braço dele descansou sobre o pescoço dela. Ela trazia uma capa cinza-pálido que a envolvia e a sua cabeça estava inclinada num recato condescendente. Ele tinha os cabelos desgrenhados, de um castanho-arruivado, e mãos ternas, harmoniosas, milagrosas e cobertas de sardas. O rosto dele roçava os cabelos escuros dela, que acicatavam a chuva e convidavam a noite a espreitar. A mão acariciadora era a de Francisco. Afastou-se lentamente, em direcção às sombras mais profundas, para que eles não se apercebessem da sua presença, da sua solidão e da sua dor. E permitiu ao seu pensamento que evocasse os finais de tarde que com ele viveu no Lawrence Hotel, em Sintra. Uma alegria trémula, ligeira como uma débil luz, dançou à sua volta como um bando de fadas. Corpos, acordando nas sombras do desejo, corpos que faziam empalidecer o sol que nascia a oriente. E saboreou, na linguagem da memória, vinhos de cor profunda e aroma e paladar de cerejas e especiarias, cadências pungentes de belas árias, corpos disponíveis à lenta embriaguez dos dedos. Os gemidos nas camas, o sabor da pele, o fogo genital metamorfoseado em volúpia. O entendimento dos corpos. Os beijos de uma boca vermelha. Nunca o entardecer se demorara assim nos lábios. O fantasma Lord Byron espiando por detrás da porta.... E viu tudo isto, com os olhos da memória. As imagens que evocara eram secretas, proibidas e ardentes. Tinha a vaga impressão de que ele já estaria só e que atravessava, naquele momento, o parque em direcção à Azul-cobalto. Sentiu o perfume do corpo dele, levemente, primeiro, depois de forma mais intensa. Um tumulto começou a ferver no seu sangue. Sim, era o aroma do corpo dele que sentia, um odor natural e erótico, do seu peito sobre o qual a música fluía cheia de desejo, da sua roupa íntima sobre a qual a carne dele transpirava o seu orvalho.

O seu corpo deplorável que já não disfarça, apodrecido, roído pelo infortúnio, obrigou a cerrar as pálpebras num súbito espasmo de desespero e, nas sombras, viu cabelos castanhos-arruivados a cair do céu, rolando à medida que caíam. Sim, não eram as sombras que caíam do ar. Era a necessidade sôfrega que tinha dele.
Luís Galego

15 comments:

João Roque said...

Na sua essência este texto tem a ver com o desejo; mas como é hábito na tua escrita, vais entremeando imagens ou naturais ou de locais, como o "Lawrence Hotel" ...
E como é hábito, também, fica-se estarrecido a ler as tuas palavras.
Abraço.

Daniel C.da Silva said...

Quando comecei a ler, de imediato pensei que podia ser o primeiro capitulo de um belissimo livro. E apesar de algumas expressões, a tua escrita, como sempre, é sublime.

Unknown said...

Ler este texto faz-me recordar um artista construindo, bloco a bloco, a sua peça... o cuidado na escrita, a estrutura, o conteúdo, tudo se conjuga harmonicamente para uma obra prima no final. E, no final, sentamo-nos ao lado do escultor cntemplando a sua obra até ao infinito... pessoal...

Maria said...

Belíssimo este post!
Obrigada, Luís

Anonymous said...

O Amor vivido no Amor!Não é tarefa impossível... é pesada!Mas é linda! Gostosa!É vida, sem a qual não se existe!Uma alegoria perfeita, no desfilar das Imagens.Não se É, sem o orvalho que nos cai pela cara e pelo corpo, no acto de se DAR.
Adorei, Luís...Lerei todos os seus "Livros",para captar a alma do artista... (Como se isso fosse possível!)

cirandeira said...

Este espaço está a cada dia mais interessante.Em sua espinha dorsal
sempre temos um conto recheado de filigranas poéticas e um certo mistério em seu desfecho e em suas bordas sempre outros assuntos de relevante importância. Sempre gosto
de passar por aqui, porque sempre
me sinto acrescida de algo mais.
Um abraço

Maria Faia said...

Estimado Amigo Luis,

Finalmente, hoje embarquei no Infinito!
E, valeu a pena...Como sempre, encontrei nele um espaço de acolhimento, prazer e beleza.

Um abraço Amigo
Maria Faia

bonecadetrapos said...

Entre o real e o imaginário, entre a poesia e arte de ser verdade.
Francisco, in acto.
Vale a pena ser observador quando se sabe relatar o quadro.

Fica o convite reiterado da
*__bonecadetrapos__* ao espaço.

Anonymous said...

"Do meu olhar
no teu...
da minha mão
na tua...
nasceu o momento,
sem um lamento...
A fragilidade do Amor
preso no rubor
da minha face na tua...
Lua no céu
a cobrir, sorrindo,
o nosso durar...
a viver!"


P-C4d-76-Abl/08


de lusibero, com amizade.

AnaLee said...

Luís, é uma sensação fantástica a que a sua escrita provoca!
Que posso dizer? Felicitá-lo, agradecer-lhe... Parece-me pouco para tão grande prazer!

Maria P. said...

Excelente!

Beijinho, Luís*

Mar Arável said...

Na verdade relativa de todas as coisas

todos procuramos afirmar as nossas luminosidades

com receio das sombras

que caem dos céus

e surpreendentemente

nos afagam

apesar da cor dos cabelos

desde que sejam soltos

para o vento

Anonymous said...

Agora é o tempo de agir.Agora´e o tempo de juntar esses textos e poemas dispersos que vai escrevendo ao sabor da corrente e, levá-los a um editor, que, imagino acompanhado de belas fotos...
Acredito que não está assim tão longe esse dia...e o Luis merece-o.
Um abraço
Lucy

Lúcia Laborda said...

Lindo amigo, como sempre seus textos maravilhosos, que instigam a leitura... Esse faz parte de algum livro?
Adorei!
Beijos

isabel mendes ferreira said...

bom dia CLARIDADE na escrita . daqui.hoje.


especialmente.


um abraço.