Imagem retirada da net
Telefonava à minha mãe todos os dias e descontraía-me na suavidade que ela transpirava. Já não bebia nem se ensopava em anti-depressivos e, como estava reformada, já não corria atrás da notoriedade profissional e dispunha agora de tempo para desfrutar as sonatas de Beethoven e as netas. Os três filhos da minha irmã estavam crescidos e estudavam no estrangeiro. Mas Laura adoptara duas meninas cabo-verdianas apesar de já não ser uma árvore nova. Resolvera finalmente pôr em prática a formação em Psicologia e trabalhava com pequenos grupos, frequentemente homens vítimas de stress de guerra. Na sua vida nada estava resolvido – nunca nada está definitivamente estabilizado numa personalidade bipolar, mas, pelo menos, Laura tinha agora uma vida com sentido. Enquanto que eu me tornava cada vez mais desleixado, como se estivesse a sonhar, e não a pintar, a grande tela da minha vida, a minha irmã quando não estava a cuidar das crianças ou a ver pacientes, refugiava-se no seu monte em Avis, perdendo-se naquela vista desafogada, zona calma, muito perto da vila. Tempo para tudo. Para as estrelas também. Cenário estranhamente belo, liso, purificado de pormenores, tão nu como o olhar.
A família aproxima estranhos. Eu nunca teria escolhido uma anátomo-patologista reformada com quase oitenta anos, residente em Ranholas, como a minha confidente. Por sua iniciativa, a minha mãe que detestava pintura contemporânea e ficava sufocada com aquela amálgama de formas atormentadas, aquele guisado, um traçado misto de retoques incompatíveis que é a minha pintura, nunca teria apreciado ou adquirido as minhas obras, mas, porque me amava, lançou-se a decifrá-las, e, certo dia, num vocabulário consentâneo com os seus critérios, disse-me que admirava a minha obsessiva exploração pelo mesmo tema: as relações enquanto relações de poder e as relações de poder enquanto encenações de perversidade e daí ver-me como um exemplo dos artistas contemporâneos e elogiava-me como se falasse de Paula Rego ou até de Andy Warhol. Do mesmo modo, eu escutava as suas inquietações e esperanças e seguia-a no fascínio com que planeava os seus passeios pelo Mundo. A sua cultura era vastíssima, omnívora, embora tivesse fechado já o parêntese do tempo para imensas coisas entregava-se à paixão da história da cultura e das civilizações. Para ela os países eram como os aromas. O cheiro da Índia e do Brasil, o cheiro do Sul negro e do Oeste desconhecido e dourado, o cheiro do magnificente Norte, o cheiro da velha Europa, de rios vigorosos e de extensas plantações, de povos desconhecidos e línguas estranhas, toda a glória do mundo conhecido, todo o fulgor do mundo nunca visitado, todo o enigma, toda a beleza, a sumptuosidade da Terra. Eu estava sempre pronto a partilhar um qualquer roteiro, pelo que passeei-a por entre o que de superior existe no âmbito do património da humanidade. A minha mãe apoiava os óculos gigantescos no seu acanhado nariz e lia as descrições das obras de arte com a mesma concentração com, que noutros tempos, lera relatórios sobre medicina legal. Temia perder a memória e exercitava-se, repetindo longas listas de nomes e factos, um exercício apropriado para uma mulher que, no Portugal da sua infância, fora obrigada a aprender de cor todos os rios, linhas ferroviárias e províncias ultramarinas e que na juventude decorara livros de três e quatro quilos e se preocupava com exotismos e cadeiras com nomes tipo Histologia e Embriologia.
Pensava constantemente na eventualidade de ter de viver num lar, mas observava quão feliz ela se sentia por viver na sua casa com o seu jardim minuciosamente tratado, naquela zona pacata com vista para a Serra de Sintra e Lisboa e eu encorajava-a, a continuar no seu espaço, tal o seu intenso desejo de liberdade. A ela se aplicara como uma luva a expressão tão bela de Éluard: “le dur désir de durer”, mas morreu ontem, no dia do seu aniversário, numa manhã com o céu de laca azul. Laura disse-me que ela estava um furacão; fizera tudo o que o seu clínico lhe mandara fazer, seguira à risca as suas mais ínfimas sugestões, e agora, maior injustiça não podia haver, tinha de morrer, ela, uma ex professora de toxicologia e biologia forense, uma quase sacerdotisa do templo da Medicina, que sempre trabalhara e dirigira especialistas. Apagar-se, como um qualquer leigo.
A minha mãe tinha, como ela dizia, um estrutura íntima sólida para viver sozinha, cumprir horários, alimentar-se adequadamente, ler, receber visitas, jogar canastra com as amigas. Comprava-lhe assinaturas para o São Carlos e para os museus. Incensava-me constantemente pela minha generosidade e, mesmo reconhecendo que os seus louvores eram desmedidos, o certo é que me abrigava neles.
Sempre receara que o amor de uma mulher tivesse um efeito fragilizador no meu carácter, enquanto que o amor da minha mãe, enorme arquivo de sabedoria, era tão absoluto, como se me embalasse eternamente no seu útero.
Luís Galego
A família aproxima estranhos. Eu nunca teria escolhido uma anátomo-patologista reformada com quase oitenta anos, residente em Ranholas, como a minha confidente. Por sua iniciativa, a minha mãe que detestava pintura contemporânea e ficava sufocada com aquela amálgama de formas atormentadas, aquele guisado, um traçado misto de retoques incompatíveis que é a minha pintura, nunca teria apreciado ou adquirido as minhas obras, mas, porque me amava, lançou-se a decifrá-las, e, certo dia, num vocabulário consentâneo com os seus critérios, disse-me que admirava a minha obsessiva exploração pelo mesmo tema: as relações enquanto relações de poder e as relações de poder enquanto encenações de perversidade e daí ver-me como um exemplo dos artistas contemporâneos e elogiava-me como se falasse de Paula Rego ou até de Andy Warhol. Do mesmo modo, eu escutava as suas inquietações e esperanças e seguia-a no fascínio com que planeava os seus passeios pelo Mundo. A sua cultura era vastíssima, omnívora, embora tivesse fechado já o parêntese do tempo para imensas coisas entregava-se à paixão da história da cultura e das civilizações. Para ela os países eram como os aromas. O cheiro da Índia e do Brasil, o cheiro do Sul negro e do Oeste desconhecido e dourado, o cheiro do magnificente Norte, o cheiro da velha Europa, de rios vigorosos e de extensas plantações, de povos desconhecidos e línguas estranhas, toda a glória do mundo conhecido, todo o fulgor do mundo nunca visitado, todo o enigma, toda a beleza, a sumptuosidade da Terra. Eu estava sempre pronto a partilhar um qualquer roteiro, pelo que passeei-a por entre o que de superior existe no âmbito do património da humanidade. A minha mãe apoiava os óculos gigantescos no seu acanhado nariz e lia as descrições das obras de arte com a mesma concentração com, que noutros tempos, lera relatórios sobre medicina legal. Temia perder a memória e exercitava-se, repetindo longas listas de nomes e factos, um exercício apropriado para uma mulher que, no Portugal da sua infância, fora obrigada a aprender de cor todos os rios, linhas ferroviárias e províncias ultramarinas e que na juventude decorara livros de três e quatro quilos e se preocupava com exotismos e cadeiras com nomes tipo Histologia e Embriologia.
Pensava constantemente na eventualidade de ter de viver num lar, mas observava quão feliz ela se sentia por viver na sua casa com o seu jardim minuciosamente tratado, naquela zona pacata com vista para a Serra de Sintra e Lisboa e eu encorajava-a, a continuar no seu espaço, tal o seu intenso desejo de liberdade. A ela se aplicara como uma luva a expressão tão bela de Éluard: “le dur désir de durer”, mas morreu ontem, no dia do seu aniversário, numa manhã com o céu de laca azul. Laura disse-me que ela estava um furacão; fizera tudo o que o seu clínico lhe mandara fazer, seguira à risca as suas mais ínfimas sugestões, e agora, maior injustiça não podia haver, tinha de morrer, ela, uma ex professora de toxicologia e biologia forense, uma quase sacerdotisa do templo da Medicina, que sempre trabalhara e dirigira especialistas. Apagar-se, como um qualquer leigo.
A minha mãe tinha, como ela dizia, um estrutura íntima sólida para viver sozinha, cumprir horários, alimentar-se adequadamente, ler, receber visitas, jogar canastra com as amigas. Comprava-lhe assinaturas para o São Carlos e para os museus. Incensava-me constantemente pela minha generosidade e, mesmo reconhecendo que os seus louvores eram desmedidos, o certo é que me abrigava neles.
Sempre receara que o amor de uma mulher tivesse um efeito fragilizador no meu carácter, enquanto que o amor da minha mãe, enorme arquivo de sabedoria, era tão absoluto, como se me embalasse eternamente no seu útero.
Luís Galego
17 comments:
Maravilhoso...
Lindo Amigo Luís,
E, rematado a chave de ouro - "o amor da minha mãe, enorme arquivo de sabedoria, era tão absoluto, como se me embalasse eternamente no seu útero".
A vida é mesmo uma passagem para a outra margem mas, enquanto estamos nesta margem a que chama terra, deixamos sementes. E, aqui, ao que os meus olhos e sentidos têm apreendido, as sementes são de cultura. Quanta felicidade não ter passado por cá em vão...
Cordiais e amigas saudações,
Maria Faia
Fizeste-me apanhar "um pequeno susto".
Abraço amigo.
Amigo,
Também eu me descontraio na suavidade que transpira destes teus textos...
É a segunda vez que venho aqui hoje... na primeira li, interiorizei, emocionei-me. Segui a minha rotina diária a pensar no fim da vida, ou como gosto de acreditar, no recomeço em direcção a um lugar melhor. Voltei a parar e a entrar neste Infinito Pessoal, reli, voltei a interiorizar desta vez todos os significados (para mim) subliminares, e voltei a me emocionar.
É um privilégio poder ler algo assim.
Beijos meus***
Querido Luís,
não fora ter lido o comentário do Pinguim, e também me tinhas feito apanhar um susto. Assim, limito-me a aplaudir, de pé, tão belo texto.
Muitos beijinhos
Texto maravilhoso este...esperando que não seja de todo autobiográfico, devo dizer que adorei a descrição emocional desta mãe!
Continue a escrever assim, depois só faltará entregar o manuscrito numa qualquer editora e ...
Um abraço amigo da
Lucy
Não me resta qualquer dúvida de que estamos perante alguém a quem podemos chamar de gente.
Luís Galego é um nato observador que reúne em si a capacidade de transportar para o papel vivências e experiências recolhidas aqui e ali e as conglomerar em registos deliciosos.
Excelente post.
Saudações e redobrado convite à casa da "Bonecadetrapos"
Texto, como sempre, cheio de vida ,de sangue puro ,incandescente, porque intimista,confessional,perfeitamente "auto"...Nele , a vida flui,, através de recordações eternas que saíram do ventre da MÃE.
Não consigo, Luís,ter essas memórias da minha mãe, que faleceu, em Dezembro, aos 87 anos. Pode ser que um dia falemos disso.
Um abraço da L.
Agradável leitura de um olhar edipiano, em que a ausência de qualquer referência ao pai faz jus ao título. Com efeito não é displicente o endereço com que sou convidado a ler a tua atraente escrita. E fica confirmado no final, quando se lê… «o amor da minha mãe, enorme arquivo de sabedoria, era tão absoluto, como se me embalasse eternamente no seu útero.» Este absoluto do amor materno, marcado pela eternidade do embalo no lugar simbólico da protecção total, que espaço poderia dar à manifestação de um possível afecto do pai? Posso supor que raramente telefonava ao pai, e tampouco encontrava nele uma qualquer suavidade com que pudesse descontrair-se? Posso pensar que a presença paternal o contraísse e o fizesse sentir-se menos seguro, mais desafiado diante da “concorrência” de uma atenção afectiva que se quer exclusiva? Pobre pai! Ele tem de morrer… nem que seja por um simples exercício de imaginação? Entretanto, a morte da mãe é referida com uma tal discrição que na continuidade da leitura me dá a sensação de permanecer viva. Talvez seja isso mesmo a pretendida sinfonia… um primeiro movimento rápido, na descrição da mãe com todo o vigor dos seus talentos; depois, um segundo movimento, lento ou moderado, denunciando alguma fragilidade nas suas capacidades; e de seguida mais rápido do que o primeiro, com «uma estrutura íntima sólida para viver sozinha, cumprir horários, alimentar-se adequadamente, ler, receber visitas, jogar canastra com as amigas.» A concluir este presunçoso comentário, o meu muito obrigado por me teres proporcionado um belo tempo de remanso, cujo prazer se prolonga na memória da leitura. Por fim, o merecido abraço!
N.B. Quanto a recear que o amor de uma mulher tivesse um efeito fragilizador no seu carácter, suscita-me uma espontânea compreensão, pois um homem não é imune à graciosidade feminina, qualquer que seja o tipo de relação estabelecida. Mas, isto daria um comentário demasiado longo. Quero evitar enfastiar-te com a minha verborreia.
Arrepiei-me com o último parágrafo... de tão belo.
Um beijo, Luís
Então, Luís, por onde anda?
Momento de reflexão, depois de "Humus"?Há tanto a deitar cá para fora...E olhe, se nada pode substituir esse amor de Mãe, COMO MÃE,a vida espera por si, no amor de uma MULHER!
Que beleza de sensibilidae.Parabéns.Um prazer!
A mãe
é quase sempre a mulher
que sonhámos
antes de serem absolutas
Estimado Amigo Luis,
Venho desejar um feliz dia da Liberdade.
Que as comemorações deste dia de Libertação renovem em nós a esperança na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária.
Um abraço amigo,
Maria Faia
Excelente ...
Obrigada pela visita ...!
Bom FDS!
Um Abraço da M&M & Cª!
Belíssimo texto de uma mulher/mãe.
Ficará como uma referência para a minha velhice, que deve ser construída, enquanto andamos a correr, não atrás de uma "notariedade profissional" (outros tempos) mas de respeito à nossa profissão.
Arranjo, organizo, sonho com o meu recanto onde possa "desfrutar as sonatas de Beethoven".
Um abraço.
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