imagem retirada daqui.
Hoje acordei às seis da manhã. Já era dia, mas não havia ninguém nas ruas. Então, sentei-me à pequena mesa no meu quarto de hotel, antigo farol desabitado, conhecido pelas suas paredes forradas com imagens a preto e branco, numa homenagem a solitários, e comecei a rabiscar num papel amarrotado. Sentia unicamente alegria por estar em Brisray de manhãzinha, por ter acordado ali naquele pequeno reino dos contos de fadas, por saber que tornaria a andar por caminhos desertos onde a poeira nunca assenta, mas onde nos espreitam pelas janelas, que voltaria ao salão de chá para escrevinhar algumas frases no meu Moleskine, pensadas numa língua estrangeira, que respiraria o ar do belíssimo e mítico mar ali tão perto e um pouco mais tarde do encantador jardim tricentenário. A vontade infinda de caminhar sobre uma terriola paralisada junto da água, outrora assombrada por poetas, num prazer refinado, gracioso e singular, instantes vividos de forma mágica, mirífica, magnifica envoltos na nostalgia serena da paisagem, desenhada como um bordado em miniatura. Sou dominado por uma profunda melancolia de cada vez que estou prestes a deixar aquele refugio, sitio ilegível no mapa, a pequenina vila dos náufragos, dos abandonados ao silêncio, do bolo de gengibre, dos livros espalhados pelas artérias, onde pintores de horizontes se refinam, amantes se encontram às escondidas e bibliotecários se juntam com a desculpa de conferências e que atrai músicos dos mais variados géneros, do clássico ao experimental, autêntico cinema independente, que resiste ao espectáculo mediático contemporâneo. A simplicidade, a intimidade, a fragilidade da vida, a sua continuidade e o sentimento de estar num lugar onde o único museu não fecha de noite e o tempo se move tão lentamente, como um perfume que se cola aos dedos. Como sempre, quando se aproxima a hora do meu regresso a Lisboa, desejo absorver a terra na sua plenitude, como se de um fruto exótico, raro e caro se tratasse – as ruelas bucólicas, o respeito pelo silêncio, o canto gregoriano, na missa de final de tarde, os cafés onde se repousa, o sabor da cerveja, as cores das arvores, os aromas, os sons, as temperaturas, os segredos impartilháveis, as pessoas sem horários, momentos em que não somos nada e somos tudo, coisas extraordinárias presas por um fio; gostaria de fixar todo este punhado de imagens e sensações em forma de um poema bem conseguido e oferecê-lo a quem vadiasse por este infinito pessoal.
Luís Galego
Luís Galego
14 comments:
Eu ando por aí a vadiar, Luís...Só que não nos temos cruzado senão nos mesmos sentimentos de melancolia, perto, perto... do farol das nossas vidas!
E a verdade é que ,qualquer terriola se pode transformar no paraíso da meditação que urge e surge ,quando e onde menos se espera...
Beijito amigo de lusibero!
Agradeço o poema, e sim, foi bem conseguido, como sempre, partindo de um texto grandíloquo. Como é inebriante ler as primeiras horas da manhã, isentas dos ruídos da cidade e do ramerrão das pessoas.
E também retiraria isto:
"A simplicidade, a intimidade, a fragilidade da vida, a sua continuidade e o sentimento de estar num lugar onde o único museu não fecha de noite e o tempo se move tão lentamente, como um perfume que se cola aos dedos".
Abraço
Que bonito...
Mesmo em prosa senti-me presenteada.
Eu aceito a oferta. Também eu ando por aí a vadiar, a vadiar no meu próprio "infinito pessoal". De comum, além do aniversário, temos uma espécie de nostalgia que nos trespassa perante a fragilidade da vida. Quem me dera poder um dia escrever assim... parabéns pelo belíssimo texto.
Estive lá. Certamente que não me viste, mas estou acabando de chegar
e com o coração cheio de nostalgia,
de saudades e de uma certa serenidade, daquela que ao mesmo tempo reaquece e queima e arde e renova!
Luis, de blog em blog acabei chegando aqui...
Que delicia de surpresa....
Estive lendo alguns de seus texto...
Me sentí em casa, já que tens belas escritas por aqui...
Voltarei para apreciá-lo
Beijos avassaladores!
"gostaria de fixar todo este punhado de imagens e sensações em forma de um poema bem conseguido e oferecê-lo a quem vadiasse por este infinito pessoal."
Luís,
a meu ver este texto é um poema porquanto há nele a intensidade própria da poesia.
A poesia, a meu ver, mede-se pela intensidade, por aquela faísca que nos é capaz de tocar, nao só a alma mas também o corpo. E isso é exactamente o que este teu texto faz.
Excelente!
L.C.
Olá,
Sobre o teu texto “como um perfume que se cola aos dedos” queria dizer-te que há muito tempo que não lia nada assim.
É um texto com cheiro, com som, com alma.
Acredita que me deixou a sensação de que estive lá, de que se inspirasse profundamente o cheio a mar me entraria pelas narinas e que se fechasse os olhos conseguia ver as cores do nascer da manhã e ouvir os sons do dia a começar.
O lugar certamente não será o mesmo para ti que o conheces de facto e para mim, que o imaginei através das tuas palavras, mas ao qual dei o meu toque pessoal, mas num caso e noutro é sem dúvida um lugar mágico e especial.
Apetece-me pedir-te que logo à tarde esperes por mim no salão de chá e me deixes dar uma espreitadela naquilo que estiveste a escrever.
Obrigada pelo prazer que me deste ao ler este texto e por todas as sensações que me fizeste experimentar.
Um beijo
Ana Paula Teixeira
Mais um texto belíssimo de uma viagem por impressões e sensações que sendo tão pessoais, são profundamente humanas e universais.
A poesia está lá, perfeita e bela, e foi, mais uma vez, um enorme prazer vadiar por aqui.
Um abraço
LUÍS:VÁ ao meu blog. TENHO lá um prémio para si.
BEIJO DE LUSIBERO
não sei onde começa ficção e acaba a realidade na estória. sei que se cruzam com mestria de frases e sentimentos que me fizeram mergulhar na própria terrinha e sentir aquela melancolia quando estou prestes a sair do refúgio... esse ou outro. Obrigado pela oferta deste rolo de imagens e sentimentos neste infinito pessoal
Recebo, agradecido, a oferta de «todo este punhado de imagens e sensações», enquanto vadio por este infinito pessoal.
Uma tal dádiva possibilita a quem escreve um duplo objectivo: por um lado, sair da sua solidão e partilhar as suas vivências com quem é capaz de acolhê-las compassivo; por outro lado permite ao leitor agilizar um bom discernimento e retribuir com o justo suporte num horizonte de prazer e confiança.
Imagino que os pensamentos do escritor coincidem com as tendências presentes no profundo do seu coração (segundo um esquema afectivo-cognitivo-motivacional), as quais ele expressa com a máxima liberdade, superando eventuais dificuldades interiores produzidas pelo orgulho e pelo temor de ser julgado e repreendido, com o desejo de confiar-se a quem o receba com simpatia e compreensão.
Por isso, a meu ver, ele conclui: «gostaria de fixar todo este punhado de imagens e sensações em forma de um poema bem conseguido e oferecê-lo a quem vadiasse por este infinito pessoal.»
O vadio aqui é simpático e compreensivo!
"gostaria de fixar todo este punhado de imagens e sensações em forma de um poema bem conseguido e oferecê-lo a quem vadiasse por este infinito pessoal."
Fechei os olhos e consegui apanhar o punhado de imagens... tudo isto porque a tua prosa é poesia.
Obrigada
Caro Luís,
há espaços que se nos colam à pele, ao mais profundo de nós...e muitas vezes só o sentimos quando chega o exacto momento em que deles partimos /nos partimos...
Obrigada por mais esta partilha!!!
E continuação de excelentes e sentidas viagens!!!!
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