Sunday, August 02, 2009

uma incerteza eterna…

Edvad Munch: Jealousy, 1907

Eu nunca tive esse sentimento pequeno-burguês chamado ciúme, com ardores de estômago, enxaquecas e colites ansiosas, nem paciência para canibalismos sentimentais. Vivi sempre sem a sombra do ciúme e considero abjecta a ideia do direito de propriedade. Abominei a cena maléfica da Laura com aquele tipo em Lagos, mas isso era um golpe baixo, não se assemelhava à sórdida tragédia shakespeariana. A Laura dissimulou, não foi franca, mentiu, iludiu e aguardou que eu saísse para ir ter com a minha mãe a Sagres para lhe enviar um e-mail afrodisíaco a dizer que eu estaria ausente toda a manhã. Nunca discorreu que eu me ia esquecer de levar os documentos do carro e regressar ao apartamento vinte minutos depois. Agir como eu agi não são ciúmes, mas uma explosão de sensações contraditórias e uma questão de honra. Impunha-se pôr o pseudo especialista em horticultura biológica no seu lugar. Quem não se sente ferido na sua confiança não é filho de boa gente, não se pode tolerar que um intruso entre na nossa vida e nos nossos lençóis e tenha prazer com a mulher que amamos, que tenha contacto com a ilha perfumada das suas pernas, com quem pensamos existir uma cúmplice partilha, com a qual se aprecia a calma das estrelas. Foda-se! Estou a vê-la, quando, à noite, depois de se ter cansado de esperar por mim, se dirigiu ao restaurante e o Indiano lhe entregou a minha carta. Há-de ter saudado os outros casais amigos com um sorriso inquieto e doloroso, a dar voltas à imaginação para justificar a razão de eu não estar, porque é que o Virgílio não se encontrava ali com ela, no dia em que comemoravam dez anos de vida em comum. Fiquei incontactável. Foi o que fiz. Ciúmes? Obviamente que não. De qualquer modo, não há nenhum “monstro de olhos verdes” que vença a voz de Jessye Norman que me abraçava no escuro às tantas da madrugada, atenuando no meu rosto os sinais das lágrimas …
Luís Galego

17 comments:

João Roque said...

Dolorosamente belo...
Dos textos melhores que já publicaste; só um reparo - isto é ciúme, e mais que justificado, longe das características que muito adequadamente lhe atribuíste, no início do texto; é ciúme de amor ferido...e quem o não tem, não ama!
Abraço.

Penélope said...

Sempre muito sutil.
Engolir o ciúmes em conta gotas a dizer que não o sente...
Tratando-se de sentimentos a ambiguidade prevalece todas as vezes, pois ciúme não é ciúme, traição não é traição, infidelidade não é infidelidade.
Na verdade ( não a absoluta), os sentimentos são o que atribuimos a eles.
Mesmo com o orgulho ferido o ser humano suporta muitas situações que vão aos opostos do que ele realmente sente, por isso as eternas incertezas...
Abraços para ti

Anonymous said...

(E)terna (in)certeza...quer seja no campo real quer virtual.
Quem não se sente ferido na sua confiança não é filho de boa gente_____________________.

"...os lábios --- -- ---- lembram
o arder do fogo que curioso
adormece na vigília da noite"

Maria Ribeiro said...

Texto, puramente confessional!Sem querer, VIRGílio dá "uma no cravo e outra na ferradura":ele está com ciúmes ,embora pense que, desse modo displicente, todos acreditem que não. O amor acabou! Mas dentro dele a dor das peqenas coisa vai permanecer PRESENTE! "FODA-SE"... uma exclamação carregada de "dor de cotovelo"!
O leitor identifica-se com a situação, porque vai sendo,cada vez mais comum assistir, com os nossos próprios sentimentos, a coisa deste género, com as nossas próprias vivências!É claro que há gente que procede como esta mulher, à traição, metendo-se entre as pernas das pessoas mais próximas do objecto do seu ódio...
Diz JACINTO DO PRADO COELHO que o texto liter+ario sugere, fala, conota...Este teu texto vai nesse caminho, felizmente, até pelo calão do desabafo.E ainda bem que assim é, porque o texto ganha VIDA. na MORTE interior do nosso VIRGìlio...
Lindo e humano!
BEIJO DE LUSIBERO

Anonymous said...

Le riz qui est dans ton grenier est ton ennemi parce qu'il excite la jalousie de ceux qui n'en ont pas.
Proverbe thaï
F.L

AnaLee said...

Por momentos este pequeno texto evocou-me as crónicas do Lobo Antunes na Visão.
Muito, muito belo e tocante. Intimista.

Vulcano Lover said...

palavras como bocados de ar quente no coração do verão, a deitar água na escuridão das longas noites de ciume recusado.

Lucy said...

Este texto toca-nos particularmente pois de certa forma, todos passamos por situações semelhantes...com ciúme ou sem ele, a constatação da infidelidade é das coisas que mais nos doem e acabrunham!
A vida vai tecendo muitas armadilhas e normalmente não estamos preparados para um confronto tão violento com a realidade...
Belo texto o seu! Parabéns!
Lucy

maria said...

Excelente companhia a escolhida para se chorar o "fel" do ciúme. Ah, como a fidelidade e o ciúme são antagónicos, como estão em pontos opostos e, no entanto, cruzam-se porque trilham o mesmo caminho, a mesma tragédia...uma tragédia "pequeno-burguesa", isto a que chamamos amor.
Mas há "monstros de olhos verdes", da cor do ciúme, que podem atenuar a dor e as lágrimas.
Um abraço.

Mar Arável said...

Muito bom Luiz

Quando a ficção aflora o real

ela mesmo se torna real.

Quanto ao amor e desamor

ardem sempre de madrugada

Abraço

Anonymous said...

Senhor Luís, eu sou um pobretana, e sempre tive algum ciúme! Não muito, diga-se em verdade, pois sou de parcos rendimentos. E, talvez por isso, nunca com ardores de estômago, nem com enxaquecas e colites ansiosas, nem com paciência para canibalismos sentimentais. Penso que essa é a razão por que o meu ciúme não é um sentimento pequeno-burguês, mas apenas uma ciumaria barata, de um pobretana que sobre o direito de propriedade só sabe que nada possui, nem o Amor a quem se dá todos os dias. E muito menos uma cantadeira que me abraçasse no escuro às tantas da madrugada!

Violeta said...

e sabe sempre tão bem aparecer por aqui...

Cleopatra said...

Muito bonito.
Muito bom.
Muito,...demasiado sereno. :-)

almas said...

Neste post não se fala dos ciúmes, fala-se de algo mais complexo e elaborado, a fidelidade. Gosto especialmente desta frase do Oscar Wilde:
"A fidelidade é para a vida afectiva o que a coerência é para a vida intelectual - a simples constatação de um logro"

anjo said...

Luís,

saúdo MUITO o teu regresso ao Sítio.
Penso que sabes que te estimo muito.
Sinto que és alguém de cultura verdadeira_____________________ diferente da cultura balofa e pedante e trivial.

Um abraço «««

Joaquim Moedas Duarte said...

Textos sempre intensos, estes que aqui leio!

anjo said...

E tu serias Bastonário da Ordem do bom gosto e da sapiência!

Um abraço «««