Sunday, February 21, 2010

uma sombra que passa...


Simone, sibilina elegância, rosto singular, intensos olhos azuis, vinda de outro mundo, eu diria que da cena vitoriana, debruçada para a frente, atenta, suspira. Demora-se em silêncio durante o que me parece uma eternidade. Quando recomeça a falar, a sua voz sai calma. “O que eu sinto verdadeiramente, pela primeira vez na minha vida, e com intensa confiança, é que não existe Deus, nunca existiu e nunca existirá. E que estou certa em pensar assim. Polémicas, lutas aguerridas – só isso existe. Seres emaranhados nos seus problemazitos do calendário em Excel e orçamentos. Um mundo atulhado de gente apressada e estéreis discussões, em missões bélicas, lentas, penosas, divertidas e estúpidas, triviais e calorosas, caminhada sem norte, escuros dias em que os corpos se desfazem. Medos, cobardias, misérias, castigos, timidez. Espaços de decepção, claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se frustra e se agoniza numa morte lenta. Um mundo que necessita de um cinema, para as escuras, chorar e secar as feridas expostas. Uma vida que é um romance de cordel, teatral e politico. A esperança de um amor eterno e a promessa de um beijo, mas que culmina em uísque, ódio, em carne viva e raiva acesa. Gente inteligente, mas viciada em Farmvilles facebookianas, que troca Albee, Lorca, Müller, Duras, Yourcenar ou Eça por um chat de interesse nenhum. Nada mais. Afinal um soneto onde todo o homem é uma ilhazinha. Aquela mulher de cabelos brancos que vai diariamente à Igreja, também. As suas expectativas por um Deus são inócuas, só podem ter existência naquele espaço. Não existe nenhum Omnipotente. Nenhum grande ser vive lá fora. A nossa vida real é composta de imaginação e de ficção. Existe esta conversa, este momento e é tudo. Aqui e agora, por exemplo, existe apenas este quarto, existes tu e eu a conversar, nesta York House, lugar poliglota que se ergue luxuriante nesta cidade, onde nenhum de nós mora, mas também e por vezes o lugar da mais arriscada solidão. Gosto deste lugar, como gosto de um concerto para violino de Tchaikovsky, porque “está lá tudo”, estão lá as viagens que não fiz. Nunca nos vimos antes. Ontem ao entardecer conhecemo-nos e falámos. Um arranjinho. Sete minutos mais cedo ou mais tarde e não teria acontecido. Cruzarmo-nos numa rua anónima tão estreita não admira que nos tivéssemos sentido atraídos, uma rua afinal tão humana e desinibida; ficámos enredados numa torrente sentimental, aninhados em sorrisos, até a noite cair para dentro de nós. Tu, homem, assistente social, Eu, mulher, militar da Força Aérea. Os nossos beijos representam o fim de um estereótipo, um soco no puritanismo, o pó de arroz da poesia, o limpar da poeira da melancolia. Precisava de meiguice, carinho, sentimentalismo, da volúpia do desconhecido, do veludo de um final de dia e acendeu-se-me uma lareira. Apetecia-me um homem com queda de água de mulher por dentro, como me recorda a famosa Mátria. Suspirava por alguém que quer mais da vida, que exige felicidade, que teime em andar por mares nunca dantes navegados. Sei que dizer isto parece uma banalidade que carece de rodapé. Falámos de livros e quadros, das artes e da bela cultura e até da Ilha dos Amores e de outros nostálgicos armazéns de ternura. Esse é o momento sagrado. Se houver um sacramento é esse. Será essa coisa a que chamam destino? Pode ser. As coisas que nos acontecem na vida, sim. As nossas memórias, sim. Os nossos desejos, sim. Os poetas. A arte com romantismo. A Sinfonia Fantástica de Berlioz. As suites para violoncelo pelo Casals. O Graham Green e o seu The End of the Affair, com o qual, pelos vistos, ambos estremecemos na nossa adolescência. O Mar, de Miguel Torga, que nos deslumbra a infância. Se temos filhos, então os nossos filhos. E todos aqueles que amamos. Talvez todos aqueles que já estimámos. Mas nada mais. Andamos por cá uma vez e depois acaba-se tudo. “.
Interpelo-a com uma frase surripiada à feiticeira cotovia Natália Correia “Não jurarei que qualquer Deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem Deuses”. “E preciso acreditar que existe algo após a morte”, acrescento. “Não te posso perder, não quero desistir de ti”, digo baixinho. “Não foi em vão, não foi inútil, foi tão bonito o nosso encontro, que embora tenha vindo num tempo ingrato, chegou no tempo do coração.”, digo-lhe com os olhos brilhantes.
“Para mim ter vivido esta noite já é uma jóia valiosa que me foi oferecida, não obstante a minha existência nos últimos meses ter sido uma marcha cansativa, um suor no rosto, um trabalho cinzento de que o Deus em que precisas de acreditar se ausentou.”, responde-me, com um quase sorriso.
Simone levanta-se devagar e caminha até à janela. Encosta a face ao vidro da janela e olha para o seu reflexo. O que ela gosta de Lisboa, palco de projectos sempre por acabar, mas sua tão grande cidade, onde nunca viveu. Uma luminosidade especifica de uma cidade que parece vienense; compara o que vê a uma encenação de O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. Uma ambulância corre a toda a velocidade as ruas de Santos-o-Velho, com a sua luz a brilhar, reflectindo-se nos rostos ingénuos das crianças que entram quase de madrugada nos colégios e no corpo de um filho de ninguém vomitado à porta da Embaixada do Luxemburgo. É hora de Simone apanhar um táxi para o IPO. Despede-se de mim, estranhamente sem pressa, contando-me um último segredo. Uma lágrima, um beijo e um abraço, a impotência da vitória do amor perante o medo da morte. Tal como um bando de pássaros voa para longe, sem levar nada. E é nesta cidade apertada entre um hotel de sonho e uma instituição oncológica que a sua vida se transforma tão só num punhado infantil de areia ressequida, num som de água ou de bronze e numa sombra que passa, como escrevera um dos seus poetas…
Luís Galego

Ver imagem aqui.

22 comments:

AnaLee said...

Valeu a pena esperar todos estes dias por novo texto no infinito.

cirandeira said...

Luís, Luís, que bom que voltaste!
Sentí tanta falta de teus textos, de tua "sombra" poética. Estava
sempre espreitando, sorrateiramente
atrás da porta. Acreditas?Pois podes acreditar!Esse teu monólogo a
dois chegou assim tão transbordante,povoado de sentimentos múltiplos, de questionamentos, arrastando mitos,
convenções,crenças e sonhos de papel...!?
Gostei teres voltado.
Um grande abraço

Unknown said...

Um regresso que se celebra! E da melhor maneira...
Tanto a dizer. Dito. Sentido. Comungado.
E pelo texto perpassam as emoções.Os dias.Cruzam-se conversas.

Caro Luís, aqui se mostra que a net é um espaço Único! Longe de "farmvillices" e afins...
"Brigados" por esta partilha. Continuação de bom domingo.

Anonymous said...

............diz-me um ninho
e vamos colher giesta
para te pintar
um quadro com música dentro de um cântaro azul:)
Priscila

Mar Arável said...

É sempre outro dia

quando a vida nos surpreende

Bom regresso

João Roque said...

Luís
não sei bem o que te diga, mormente depois das palavras que me dirigiste e que te agradeço.
Não quero ser repetitivo, nem do que já afirmei antes , nem do que outras pessoas já comentaram, mas realmente apenas a blogosfera permite que alguém se exponha de uma forma tão intima e tão bela, como está demonstrado neste texto magnífico.
Talvez nunca como neste texto tenhas algum dia justificado tanto o nome do teu blog: Infinito Pessoal!!!!
É, como já foi dito, uma conversa contigo próprio, escrita com a mestria habitual em que justificas, talvez, para ti próprio, algo que não carece de justificação.
Mas, penso que te fez bem e acima de tudo, deu a quantos apreciam a leitura dos teus textos, o prazer de te reencontrar no lugar certo e único onde o conseguem fazer bem: no teu blog.
Obrigado!!!
Abraço muito amigo.

Ricardo Passos said...

Imagens como "Um mundo que necessita de um cinema, para às escuras, chorar e secar as feridas expostas" ou "veludo de um final de dia" denunciam a tua magnífica capacidade literária, de uma criatividade ímpar, que fazem da ficção uma realidade que me toca nos cinco sentidos.
Quando penso que o texto recente do "Infinito Pessoal", é sublime, surge sempre outro ainda mais surpreendente que o supera e que me penetra mais profundamente na alma, levando-me a questionar-me sobre os meus sentimentos, as minhas emoções, as minhas dúvidas, as minhas feridas.
Só sei que é grosseiro viver sem a poesia, que no fundo é o sonho, o motor que nos alimenta a vida.
Obrigado por seres meu amigo, poeta maior.
Grande Abraço

Lucinda Duarte said...

Já tinha saudades dos seus contos/poemas, Luís...

Personagens reais ou fictícias? Realidade ou ficção?

Na sua escrita, tudo parece real, mesmo o que não o é, tal é a sensibilidade e o poder de descrição que o distingue. é um dom que nem todos possuem. Para mim é sempre um prezer e um alento renovado recorrer à leitura dos seus posts. è um lenitivo para os dias cinzentos e sombrios que vou acumulando. Obrigado.

Bilitis said...

É neste mundo da blogosfera que também me desnudo, sem pudores, me dou e logo cobro, umas vezes sarcástica outras com a doçura de uma criança , é aqui que me revelo sem me mostrar, escrevo sem pontuação e com ela fora de sitio, com acentos ao contrário, é aqui que de forma anónima, liberto a minha Alma. É aqui que de vez em quando descubro autênticos néctares dos Deuses, como este que acabei de ler, devagar vou bebendo as tuas palavras, vou à frente e volto atrás e de novo releio, para saborear cada palavra, cada virgula, cada ponto final, desejando que aquele ponto não tenha chegado ao fim. Continua a encher-me a Alma.
Bem hajas Luis

Anonymous said...

Se pretendesse comentar o seu texto,
seria um néscio.
E debruçar-me
sobre o peitoril do seu pensamento,
seria ignomínia.
O que você escreve lê-se
em silenciosa admiração.
E o que não está escrito hoje
espero ler noutro dia.
Cá estarei…
pode crer (tenha fé)!

Cleopatramoon said...

Rendo-me.

farfalla said...

parabéns pelo texto e pelo espaço :)

_baci_

Anonymous said...

Texto publicado no blogue ALIQUANDO - http://thiagomlisboa.blogspot.com/



Nas minhas navegações, ao acaso, sem arte nem engenho internauta, encontrei o seu blogue e detive-me na leitura de «uma sombra que passa…» Dei de caras com uma Simone inicialmente atraente na figura e na descrença, e depois, longamente depois, também atraído compassivo pela sua desventura.



Da atracção física, diria que a descrição corresponde à fantasia dos meus desejos; e a da descrença desperta-me a interrogação sobre uma existência que a existir me deixa inevitavelmente desassossegado.



Com efeito, que a Simone tenha dito «O que eu sinto verdadeiramente, pela primeira vez na minha vida, e com intensa confiança, é que não existe Deus, nunca existiu...», suscita-me o devido respeito pelo seu talvez retórico sentimento ateísta. Mas afirmar «… e nunca existirá…» parece-me estranho, pois não existindo nem tendo alguma vez existido, se viesse a existir seria uma criação humana. Ora, um “Deus” nascido de um capricho humano ou de uma necessidade das gentes, que teria de divino? Quiçá uma espécie de divindade como os ídolos dos pagãos - «obra das mãos dos homens: têm boca, mas não falam; têm olhos, mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem, e nariz, mas não cheiram; têm mãos, mas não apalpam, e pés, mas não andam, nem da sua garganta emitem qualquer som.» (Salmo 115, 5-7).



Enfim…, adiante, pois não sendo um “académico”, antes um simples jardineiro de palavras, com a vida gretada pelo tempo de plantar, cuidar e colher, em pequenos canteiros da vida, não devo adentrar-me num campo para o qual jamais saberei cultivar com o meu pouco conhecimento destas coisas da religião e a minha modesta inteligência para a especulação teológica.



A atracção por Simone na sua desventura surge no final do seu texto, porque é nesse momento da leitura que me percebo impelido a acolhê-la na minha intimidade, movido pela compaixão, pois nada é mais capaz de originar uma atitude compassiva do que o sofrimento humano. Compadeço-me apoiado numa espiritualidade que não se preocupa com a prevenção dos erros e dos pecados, em jeito moralista, a qual se baseia num ideal de perfeição e deixa sempre a pessoa com a consciência pesada. A espiritualidade que me sustenta na compaixão é a que me introduz no mistério de Deus e no mistério da pessoa humana, a espiritualidade mistagógica, que «trata da experiência da vida com que Deus nos presenteou», como dizem Anselm Grün e Meinrad Dufner. E acrescentam: «Quanto mais a moralizamos, menos vitalidade temos dentro de nós. Quando os clérigos celibatários (incluindo o papa e os bispos) consideram a sua mais importante tarefa a valorização da moral sexual, principalmente a moral sexual para as mulheres, isso nos revela mais sobre a sua própria situação psicológica, sua sombra e sua falta de espiritualidade do que sobre a pertinência de suas exigências morais. Naturalmente, não existe vida espiritual sem moral. Mas a moral é consequência da experiência espiritual, e a recíproca não é verdadeira.»



À guisa de conclusão, um merecido elogio, sincero, a Luís Galego pela sua boa escrita, na forma e no conteúdo, capaz de nos introduzir com mestria «numa cidade apertada entre um hotel de sonho e uma instituição oncológica na qual a vida de Simone se transforma tão só num punhado infantil de areia ressequida, num som de água ou de bronze e numa sombra que passa, como escrevera um dos seus poetas…».



(ler mais... no blogue)

Mel de Carvalho said...

Depois de tanto que atrás ficou escrito pelos outros intertextualizantes e que eu gostaria de ter dito deste teu (e mais uma vez) soberbo texto, onde a inversão da lógica, confirma o princípio de tudo, a busca harmónica de cada um de nós, resta-me, meu amigo, agradecer-te por partilhares connosco, teus leitores de há muito, o que, insisto, desejo ver em corpo de livro. Ao mais cedo.

Beijo fraterno, meu "brother"
Mel

Anonymous said...

Se eu fosse "a sua" Simone...apagaria lentamente o cigarro ... olhava para lá dos seus olhos, fundamente, perdidamente...e diria num fio de voz nem quente nem frio, apenas voz: "abrirás, às vezes, a janela à toa, por gosto… e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!” (Antoine de Saint-Exupéry)

Adorei. Naturalmente.
D

Anonymous said...

vim espreitar. Adorei, obrigada

com senso said...

Este texto tocou-me particularmente.
York House, Santos-o-Velho e IPO são referências que estão marcadas indelevelmente na minha vida, através de circusntâncias várias que, também para mim, estão associadas à vida e à morte!
Revejo-me na sensação, aqui pressentida de se estar à beira de um naufrágio, de se possuir a necessidade de se agarrar a algo, ainda que fugaz ou episódico e de não compreender em absoluto a razão de ser de um Deus carrasco ou indiferente.
Este texto curto, mas magnifico, como sempre, traça-nos um percurso tão humano, quanto dramaticamente real do que vai passando na alma de alguém que se vê confrontado com um destino que não pode nem quer aceitar, mas que é o seu!
Um episódio de vida, belissimamente escrito e de uma profundidade e intensidade excepcionais.
Um abraço!

com senso said...

Este texto tocou-me particularmente.
York House, Santos-o-Velho e IPO são referências que estão marcadas indelevelmente na minha vida, através de circusntâncias várias que, também para mim, estão associadas à vida e à morte!
Revejo-me na sensação, aqui pressentida de se estar à beira de um naufrágio, de se possuir a necessidade de se agarrar a algo, ainda que fugaz ou episódico e de não compreender em absoluto a razão de ser de um Deus carrasco ou indiferente.
Este texto curto, mas magnifico, como sempre, traça-nos um percurso tão humano, quanto dramaticamente real do que vai passando na alma de alguém que se vê confrontado com um destino que não pode nem quer aceitar, mas que é o seu!
Um episódio de vida, belissimamente escrito e de uma profundidade e intensidade excepcionais.
Um abraço!

Gabriela Rocha Martins said...

dói

de tão forte
na vertigem
de uma viagem sem retorno
ou hora

basta o minuto
quando BELO




.
um beijo

maria said...

Fico sempre petreficada perante a beleza da escrita do "Infinito Pessoal". A beleza comove-me, e a das palavras de uma forma muito particular. Esta escrita cinematográfica desperta em mim o desejo de, momentaneamente, me transformar numa Simone que num quarto de hotel, com o Tejo como pano de fundo, ouve alguém dizer-lhe "Não te posso perder, não quero desistir de ti"...
Mas afinal, era ela que já tinha desistido, era ela que queria "voar para longe" sem levar nada... Sem levar a memória, despojada da esperança que teima em se agarrar ao corpo como um "cancro"...
Era ela que queria voar em direcção à liberdade...

Fico, ansiosamente, à espera da próxima emoção.
Abraço

nsp said...

http://www.youtube.com/watch?v=peJxkzPSQFg
Referência para acalmar e sentir a essência da vida.

Maria Julia said...

Que dizer aqui, Luís?
Já lho disse, de outra forma, lembra?

PARABÉNS e grande continuação.

Beijo grande.