Unidade de oncologia, poema em alto risco, onde dia a dia, médicos e técnicos de saúde enfrentam gemidos e terapêuticas complicadas. Todos eles suportam intermináveis jornadas nas quais não há tempo para comer, nem sequer para dormir; onde os dias se confundem com as noites. O peso das patologias tratadas obriga a que a fé e a esperança, aliadas ao rasgar constante de novos horizontes, sejam a senha da vida. Ali combate-se o que constitui a segunda causa de morte e toda a alegria é clandestina. Na sala de espera impressiona-me o olhar do rapaz de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca e que aguarda o seu copo de veneno. Um anjo faz-lhe um afago com os seus pálidos dedos delicados, ele, uma asa quieta, magro, lábios sem cor, com os olhos pisados, perdidos, tristíssimos, magoados, a expressarem qualquer coisa como um grito. Sobre o coração da mãe pesam montanhas, tira um lenço da mala e passa suavemente na face do filho e os seus olhos doces de protectora denunciam um lago triste, meses de silêncio e de tortura, soluços até ao limite de si. Uma senhora idosa olheiras roxas, roxas, quase pretas, com um lenço de cor azul-cobalto a cobrir a ausência de cabelo questiona a enfermeira acerca de uns exames que parece não entender, numa postura de fada envolta num perfume de violeta. Várias mulheres com perucas grotescas que não ligam com a paisagística dos rostos aguardam numa sala que desmaia. Sinfonia de dor e saturação estampada no rosto de todas elas. Um cigano de óculos escuros e dentes de ouro, ar escultural de vagabundo, boémio ou quem sabe poeta, mete os polegares trémulos por baixo das lentes riscadas de modo a secar as pálpebras molhadas. Uma rapariga, perfil moreno, lusitano, já longe da inocência, aguarda de pé enquanto uma nódoa de sangue queima a mágica tarefa de viver. Uma outra, olhos verdes, cor do verde oceano, sem peito, os dois pulmões doentes e nervos a tilintar já só almeja ouvir sons marinhos numa concha vazia. Carnes rasgadas, ossos músculos nervos e veias doentes deambulam por aquela passerelle de sofrimento e indizíveis cansaços. E eu, cheio de pudor por a vida me apertar nos seus braços e ainda sonhar em tratar por tu a mais longínqua estrela, sinto um lúgubre arrepio colar-se-me às costas. Sou um simples finalista de psicologia e enquanto eles sofrem eu termino a parte curricular na área da psico-oncologia, estou aqui apenas a observá-los e a registar os seus movimentos, a orientadora diz que tenho olho clínico, estou ali duas semanas, daqui a pouco tudo isto não passou de um estágio, mas dentro de mim estas pessoas insistem em doer, gente frágil que em cinzentas brumas se dilui, sem rede, suporte ou armadura, e eu fico vivo a fantasiar com mundos inteiros e fantásticos castelos,
a vida desta gente que ameaçada por um verme rastejante não é igual à vida da outra gente intangível que dança com a eternidade, obriga a curvar-me a seus pés.
Arrelio-me com um Deus mal informado, irrito-me comigo, com a morte, que é uma puta, com as horas más da vida, como posso ser emproado, imbecil, negligente, como posso lamentar-me, gostava de agasalhar todos estas almas que expiram em tempestades de lágrimas.
Estas palavras saem de mim como golfadas de sangue, perco vocábulo, frases e emoções, pensamentos afogam-se-me na garganta, isto que rabisco não faz justiça à velha senhora do lenço cor de azul-cobalto, que sorri para não ter que expor a sua própria dor.
Nesta hora fria permitam que poise a minha cabeça dolorida nos vossos ombros e afiancem que não é roubada a vida a ninguém da sala de espera. Se a mulher do lenço cor de azul-cobalto e o miúdo de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca morrerem vou sentir-me ensanguentado,
vou sentir raiva, desespero e nojo.
Luís Galego
Imagem: Frida Kahlo - Frida Kahlo Henry Ford Hospital
a vida desta gente que ameaçada por um verme rastejante não é igual à vida da outra gente intangível que dança com a eternidade, obriga a curvar-me a seus pés.
Arrelio-me com um Deus mal informado, irrito-me comigo, com a morte, que é uma puta, com as horas más da vida, como posso ser emproado, imbecil, negligente, como posso lamentar-me, gostava de agasalhar todos estas almas que expiram em tempestades de lágrimas.
Estas palavras saem de mim como golfadas de sangue, perco vocábulo, frases e emoções, pensamentos afogam-se-me na garganta, isto que rabisco não faz justiça à velha senhora do lenço cor de azul-cobalto, que sorri para não ter que expor a sua própria dor.
Nesta hora fria permitam que poise a minha cabeça dolorida nos vossos ombros e afiancem que não é roubada a vida a ninguém da sala de espera. Se a mulher do lenço cor de azul-cobalto e o miúdo de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca morrerem vou sentir-me ensanguentado,
vou sentir raiva, desespero e nojo.
Luís Galego
Imagem: Frida Kahlo - Frida Kahlo Henry Ford Hospital
20 comments:
Tão, tão, mas tão difícil... beijo verde, hoje sem vermelho, cor de esperança.
Nao tenho palavras.....................para isto.............................................................................maravilhoso...................dentro do gelado da realidade................
"golfadas de sangue" que nos dizem da dor mais do que se consegue dizer. E curvo-me a seus pés... sem palavras
abraço, Luís
Olá Luis....desta vez deixaste o meu coração pequenino... pequenino!
Demasiado triste....demasiado real.
Um abraço.
Li e também senti a revolta, a tristeza e a dor. A impotência e a raiva.
Um abraço
Luis Milhano
acabei de postar no facebook palavras de Lobo Antunes ditas pelo próprio.... e, como não há coincidências vim aqui parar.....
Deixo os parabéns pela tua escrita e uma raiva, desespero e nojo incontidas...
Parece-me que fica mal dizer que este texto é lindíssimo. O que direi então? Talvez que mais uma vez me fazes ter consciência da pequenez do ser-se humano. Da fragilidade do ser-se vida. Do perigo que é dizer-se sou feliz. Da insensatez das guerras. Da irracionalidade de alguns sorrisos. Outro abraço, Luís.
Sem palavras...
A escrita é autêntica quando se escreve com o coração.
Esta é uma dor que conseguiste fazer-me sentir...
Um beijo.
... quando a tristeza e a desgraça podem ser belas?
se ditas assim, como as disse - escreveu ...
Comparo este seu texto a algumas fotografias de Sebastião Salgado ... tão tristes, tão trágicas, tão tudo o que de pior existe, e no entanto tão belas ...
Triste realidade muito bem retratada...
Beijinhos
Verdinha
Apesar de há 23 anos caminhar para o IPO com o meu pai e testemunhar toda a dor que sei estar escondida por detrás de tantos e tantos rostos, não conseguiria fazer uma descrição tão bela e profunda do que se passa numa unidade oncológica.
O Luís Galego tem um talento raríssimo de nos fazer ver todas as dimensões da vida, do horror ao amor, da mais poetica forma possivel.
E neste caso concreto, tantas e tantas vezes, o horror e o amor andam de braço dado.
Parabéns caro Luís Galego por mais esta bela prosa magnífica e hoje muito especialmente parabéns pelo seu aniversário. Tenha um dia e uma vida repleta de tudo de bom, com muita alegria e felicidade. Um grande abraço com muita amizade. Luis Esteves
"Arrelio-me com um Deus mal informado, irrito-me comigo, com a morte, que é uma puta, com as horas más da vida,..."
Tantas vezes, Luís, tantas vezes... e, noutras, em tantas outras, acredito que no meio de um multidão vai um ser, um ser que sofre, e para quem as minhas palavras, o meu olhar, o toque da minha mão, faz a diferença. Ai agradeço a Deus por me ter colocado naquele caminho, busco forças nas horas más da vida, na lição da vida, e tento dar-me.
Como tu o fazes sempre, Luís. De forma única, de coração aberto, nesta humanidade que te reconheço.
Beijo Luís.
Sabes-me sempre por perto e contas com a minha amizade (além da blogger...).
Grata pela partilha
Mel
Senhor Galego, a VIDA é uma mescla de belezas e fragilidades que devemos aceitar com resignação, pois nem tudo esta ao nosso alcance... há muitas coisas que estão além de nós...
Um beijo enorme em seu coração
é a triste realidade das pessoas que têm de passar por este processo tão doloroso, mas para quem assiste e nada pode fazer, são momentos de muita raiva, desespero e impotência.
Mas de todas as situações que lá se vivem a que nos toca´mais fundo é ver crianças que ainda mal começaram a viver e estão condenadas a deixar-nos tão breve.
Apesar de em muitos casos já se ter conseguido curas quase miraculosas, ainda há muitos outros casos em que não se consegue, tenhamos esperança que a cura desta doença tão fatal seja em breve uma realidade, mesmo assim a prevenção é muito importante e há que estar muito atento aos sinais de alarme
excelente !
para um Deus mal informado ...
abraço
TMQ
Se te disser que nunca me senti mais perto de Deus, nem a minha vida fez tanto sentido, quanto naquele momento que soube que ía ser operada e tudo poderia acontecer!
Não tive tempo para pensar muito, nem viver tudo o que queria da vida naqueles dez dias que me separavam do conhecimento e do Acto! Nada a não ser uma grande e infinita Paz.
Por curioso que parece, ou estranho, foram dos poucos momentos de Real Paz e Serenidade que tive na Vida. Abençoados Momentos!!!
Beijo e um enorme abraço meu Amigo
Ana
A realidade...
Assim é a bela dolorosa realidade vista após um luto.
Um enorme abraço.
conheço de perto, esta triste realidade...
Abraço.
Et
A realidade... dura e terrível.
Hoje partilhei um texto sobre a Esclerose Múltipla que vive e convive com um familiar muito directo. Não é fácil assistir à degradação do ser humano e ficarmos sem saber que fazer para ajudar...
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