
O mais recente espectáculo de Vera Mantero, «Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza».

Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.
Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.
Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino.
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.
Herberto Helder
O poema de Herberto Helder, «Lugar II», ao qual o mais recente espectáculo de Vera Mantero, foi furtar o título, fala da condição fatal daquele que ama, condenado que está ao desassossego, à busca incessante de um momento de paz que nunca chegará, «pois não há paz para aquele que ama». «Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» é um espectáculo de alerta para um determinado estado de coisas difícil de sustentar. Impõe-se contra o facilitismo e é, como fica dito no texto do Programa, «uma cápsula espacial», onde «algumas coisas não são daqui e outras não pertencem aqui». A maturidade que comporta o espectáculo é bastante para admitir que o corpo não necessita de outras formulações. Contêm em si mesmo todas as instrumentos para uma constante reformulação porque, como disse o compositor musical experimentalista e escritor norte-americano John Cage, «there is no such thing as silence»*. Façam favor de ser felizes através da Arte…BOM FIM DE SEMANA!!!
Ver pequena apresentação do bailado. *agradeço a o Melhor Anjo a referência.