Instalado em frente ao Carnegie Hall a estadia em Nova Iorque soou-me a música celestial. Mas o que rabiscar acerca de uma cidade sobre a qual já foi tudo dito? Nada de diferente. Ou tudo, pois Nova Iorque renova-se a cada momento. É uma onda de luzes, cores, odores, barulho e gente, uma metrópole multicultural e multiétnica onde tudo pode acontecer. Seria redundante averbar aqui tudo o que há para ver – guias há muitos e um único post não comporta toda a arquitectura e escultura públicas, todos os centros culturais, todos os museus e galerias de arte, todas as ruas e avenidas e todos os parques. Do elitista Upper East Side ao revigorado Theater District, passando pelo MeatPacking, o bairro da moda, aos distintos hotéis de artistas, quase todas as esquinas (e recantos) de Nova Iorque são matéria para uma curta/média/longa-metragem. Não vou dissertar acerca do tempo que passei em terras nova iorquinas, gostaria apenas de me centrar em alguns momentos e lugares: no Lincoln Center for the Performing Arts; no Museum of Modern Art (MoMA); no Metropolitan Museum of Art e nos palcos da (e off) Broadway. Ao regressar a Nova Iorque, a principal dificuldade é decidir o que fazer: dos célebres ícones da maior cidade dos Estados Unidos à diversidade e carácter de cada um dos cinco distritos da grande metrópole (Bronx, Brooklyn, Manhattan, Queens e Staten Island), a escolha é tão esmagadoramente vasta que talvez o melhor seja reconhecer que não se pode abarcar tudo e simplesmente fruir do facto de ali estar e de poder respirar a atmosfera enérgica e a surpreendente força da cidade. Nova Iorque exerce uma pujante atracção e já se me tornaram familiares os seus impressionantes museus, as artérias congestionadas, a movimentada Chinatown, a Grand Central Terminal, célebre estação de comboios que foi cenário de um beijo entre o fugitivo Gregory Peck e Ingrid Bergman no Spellbound de Hitchcock, o American Museum of Natural History, maior museu de história natural do mundo, os teatros da Broadway, da off (e da off off), os terraços com magníficas vistas sobre a cidade, a livraria Barnes & Noble, a New York Public Library, uma das principais bibliotecas públicas do mundo, os clubes de jazz de Greenwich Village ou as atracções do Central Park, entre outros lugares. Contudo, o maior prodígio da Big Apple é provavelmente a população multicultural que garante a identidade da cidade, mantendo-a viva 24 horas por dia com a sua gama de matizes, estilos de vida, costumes e tradições, assimetrias e, necessariamente, conflitualidades. Não será, pois, de estranhar que se falem perto de 170 idiomas ou que tenha sido berço de múltiplos movimentos culturais em todas as áreas. Mesmo depois do golpe desferido pelos atentados, Nova Iorque mantém uma coreografia única; a city that never sleeps oferece praticamente tudo o que eu posso imaginar nos meus sonhos mais inverosímeis. E, embora possa permanecer semanas em Nova Iorque e apenas consiga vislumbrar aspectos superficiais da metrópole, há experiências e locais que não consinto perder.
Nova Iorque é surpreendente. Porquê? Não sei, diria que é uma questão de chama e que qualquer apreciação racional viria a despropósito. Foi entusiasmado que me senti na primeira visita e repete-se a paixão quando ali regresso. Nova Iorque é um work in progress, caótica, barulhenta e poluída, não tem a imponência aristocrática de Paris, a beleza, a cor e a história de Roma, o mistério das cidades escandinavas, o civismo de Viena ou a luminosidade de Lisboa. Também não tem grandes monumentos, nem edifícios seculares e não é propriamente acolhedora. E, no entanto, a sua energia cultural seduz e vicia. Talvez sejam as luzes que ofuscam, a veemência electrizante que se vive nas suas vias, a rapidez com que tudo se passa, o turbilhão de gente, a sensação de poder, de que ali tudo pode acontecer. Tentadora, a "maçã" atrai, deixa saboreá-la e depois aprisiona. Há quem compare a cidade a uma serpente cujo olhar nos seduz. Depois, prende para sempre. Mas não será esse o segredo e fascino de uma paixão?
Ao aterrar de olhos bem abertos em Times Square julgo que estou dentro do Blade Runner, a observar a paisagem nocturna e, entre a multidão que passa, o meu olhar dirige-se em direcção às luzes e aos cartazes publicitários coloridos da Broadway. Pareço um recém-chegado tal a expressão de espanto, mas também pouco importa porque é impossível ficar indiferente ao espectáculo, como se estivesse no palco do mundo, um lugar essencial onde tudo se passa ao mesmo tempo e tudo se vê. Edifícios todo-poderosos, o glamour do néon que ilumina a noite escura, várias músicas de fundo, um cowboy sem roupa, mas de guitarra em punho, um baterista à procura do sucesso, um homem travestido de noiva, o vendedor da Gray Line New York Sightseeing em delírio por mais uma venda de bilhetes, sirenes da polícia, o ronco do metropolitano e o rumor da respiração simultânea de milhões de pessoas...
Em dia meteorologicamente ciclotimico, entre trovoadas e sol abrasador, refugio-me no Gerald Schoenfeld Theatre, curiosamente a mesma sala onde há três anos assisti a uma peça de Edward Albee, com Kathleen Turner em Who´s Afraid of Virginia Woolf? Mas é à noitinha que me delicio numa das maiores instituições de música erudita do mundo: Lincoln Center/ Avery Fisher Hall e o seu Mostly Mozart Festival. Obviamente que não posso comparar o Chorus Line ou o Gypsy (que vi com agrado e o coração apertado devido ao talento da Patti Lupone, naquela espécie de King Lear do musical) com a voz da cantora lírica alemã Christiane Oelze e a batuta de Louis Langrée. Só mesmo eu que esquizofrenicamente troco um punhado de dólares por um espectáculo em qualquer sítio, desde um vão de escada a uma sala imperial, salto de registo em registo. Psicanálise exige-se, ou talvez não, que se lixe. Sou extraordinariamente feliz numa plateia, embora cada vez mais severo…E a propósito de exigência caminho para ruas fora dos grandes holofotes onde encontro Titus Andronicus, uma peça fora de qualquer chancela comercial num teatro gerido à laia de Woody Allen chamado The Archlight Theatre. Ali o texto é sério – ao contrário do que escreveu T.S.Eliot, “One of the stupidest and most uninspired plays ever written” –, interpretações cuidadas, cadeiras rotas, palco desnudado, o vizinho do lado descalço, um homem que me pede para guardar o lugar enquanto sai por uns instantes, ainda que a sala esteja vazia, dois negros na fila da frente de mãos dadas, a senhora da bilheteira com a vozinha irritantemente fina, a visão independente do teatro em todo o seu esplendor e o público em menor número que o elenco. Não sei se melhor que a Cornucópia (refiro-me à adaptação que a Companhia de Luís Miguel Cintra fez daquela peça de Shakespeare), não, claro que não, mas decididamente diferente da maioria do que se faz cá e lá. E foi, igualmente, com chuva torrencial que fui brindado à saída deste curioso teatro da 152 West 71st Street.
Além do teatro (de algum teatro, cada vez mais off Broadway) os territórios museológicos assumem a minha preferência. Nova Iorque possui muitos tipos de museus, suportados por uma prática mecenática corrente. O Metropolitan Museum of Art é o maior museu dos Estados Unidos e exibe actualmente a maior retrospectiva dos últimos 40 anos sobre Turner, a qual se converteu num acontecimento cultural na cidade. Para a ocasião, reuniram-se cerca de 150 obras, 85 das quais procedentes da Tate Britain, onde se guarda uma grande parte do denominado Turner Bequest, um conjunto de aproximadamente 100 óleos cedidos pelo artista à Grã-Bretanha e entre os quais se encontram alguns dos seus trabalhos mais relevantes. Esta mostra que agora pude contemplar no MET, com a qual se desenha um percurso completo por toda a produção de Turner, de forma cronológica e temática, divide-se em dez deslumbrante partes e por elas inquieto me perdi …
Muitos museus especializaram-se, como o Museum of Modern Art e o controverso Guggenheim Museum, de Frank Lloyd Wright. E imperdoável seria se lá não voltasse. O MoMA mostra como Salvador Dali se intoxicou e se deixou contaminar pelo cinema: “Estou em Hollywood, onde entrei em contacto com os três surrealistas americanos, Harpo Marx, Walt Disney e Cecil B. DeMille. Acredito tê-los intoxicado e que as possibilidades para o surrealismo aqui se tornem uma realidade.” Na carta endereçada a André Breton, Dalí afirmava sua afinidade com três dos maiores ícones do cinema americano comercial. Dali que de forma brilhante interage com lagostas e línguas gigantes foi convidado pelos grandes estúdios a desenhar sequências oníricas de realizadores como Fritz Lang e Hitchcock. O pintor armazenou muito da visão vanguardista e “alucinógena” que marcou a sua pintura e a sua estreia no cinema em parceria com Luis Buñuel. Essa fertilização mútua entre cinema e pintura é o tema da interessante exposição Dali: painting and film.
Em velocidade de cruzeiro revisitei a gigantesca concha branca que é o Guggenheim e dei conta que Louise Bourgeois ali habita por uns meses. A construção da artista plástica é uma triunfante afirmação da existência iluminada pela libido. Nessa obra biográfica e erotizada, transformar materiais em arte é uma conversão física. Esta destreza retira a mulher da sombra da história da arte. Depois de Bourgeois, o universo artístico já não será de mulheres no mundo dos homens, nem têm de falar aí a linguagem dos homens, mas tornar presente o seu próprio desejo. Namorei o catálogo, folhei-o atentamente e adiei a aquisição.
Nova Iorque, sexta-feira à tarde. Despeço-me da cidade com um Blackberry Lemonade bebido apressadamente num bar de hotel da 7th Avenue…
P.S - Não resisti e numa sala de cinema da Broadway assisti à adaptação da obra-prima de Evelyn Waugh: Brideshead Revisited. Não comparo com o livro, nem com a série e antes de ler qualquer critica mergulhei nos anos 20 e acompanhei Charles Ryder e Sebastian Flyte. Não obstante tudo o que se venha a ser dito a propósito e presumo que não seja pouco posso confessar que saboreei esta outra visão da obra.
Nova Iorque é surpreendente. Porquê? Não sei, diria que é uma questão de chama e que qualquer apreciação racional viria a despropósito. Foi entusiasmado que me senti na primeira visita e repete-se a paixão quando ali regresso. Nova Iorque é um work in progress, caótica, barulhenta e poluída, não tem a imponência aristocrática de Paris, a beleza, a cor e a história de Roma, o mistério das cidades escandinavas, o civismo de Viena ou a luminosidade de Lisboa. Também não tem grandes monumentos, nem edifícios seculares e não é propriamente acolhedora. E, no entanto, a sua energia cultural seduz e vicia. Talvez sejam as luzes que ofuscam, a veemência electrizante que se vive nas suas vias, a rapidez com que tudo se passa, o turbilhão de gente, a sensação de poder, de que ali tudo pode acontecer. Tentadora, a "maçã" atrai, deixa saboreá-la e depois aprisiona. Há quem compare a cidade a uma serpente cujo olhar nos seduz. Depois, prende para sempre. Mas não será esse o segredo e fascino de uma paixão?
Ao aterrar de olhos bem abertos em Times Square julgo que estou dentro do Blade Runner, a observar a paisagem nocturna e, entre a multidão que passa, o meu olhar dirige-se em direcção às luzes e aos cartazes publicitários coloridos da Broadway. Pareço um recém-chegado tal a expressão de espanto, mas também pouco importa porque é impossível ficar indiferente ao espectáculo, como se estivesse no palco do mundo, um lugar essencial onde tudo se passa ao mesmo tempo e tudo se vê. Edifícios todo-poderosos, o glamour do néon que ilumina a noite escura, várias músicas de fundo, um cowboy sem roupa, mas de guitarra em punho, um baterista à procura do sucesso, um homem travestido de noiva, o vendedor da Gray Line New York Sightseeing em delírio por mais uma venda de bilhetes, sirenes da polícia, o ronco do metropolitano e o rumor da respiração simultânea de milhões de pessoas...
Em dia meteorologicamente ciclotimico, entre trovoadas e sol abrasador, refugio-me no Gerald Schoenfeld Theatre, curiosamente a mesma sala onde há três anos assisti a uma peça de Edward Albee, com Kathleen Turner em Who´s Afraid of Virginia Woolf? Mas é à noitinha que me delicio numa das maiores instituições de música erudita do mundo: Lincoln Center/ Avery Fisher Hall e o seu Mostly Mozart Festival. Obviamente que não posso comparar o Chorus Line ou o Gypsy (que vi com agrado e o coração apertado devido ao talento da Patti Lupone, naquela espécie de King Lear do musical) com a voz da cantora lírica alemã Christiane Oelze e a batuta de Louis Langrée. Só mesmo eu que esquizofrenicamente troco um punhado de dólares por um espectáculo em qualquer sítio, desde um vão de escada a uma sala imperial, salto de registo em registo. Psicanálise exige-se, ou talvez não, que se lixe. Sou extraordinariamente feliz numa plateia, embora cada vez mais severo…E a propósito de exigência caminho para ruas fora dos grandes holofotes onde encontro Titus Andronicus, uma peça fora de qualquer chancela comercial num teatro gerido à laia de Woody Allen chamado The Archlight Theatre. Ali o texto é sério – ao contrário do que escreveu T.S.Eliot, “One of the stupidest and most uninspired plays ever written” –, interpretações cuidadas, cadeiras rotas, palco desnudado, o vizinho do lado descalço, um homem que me pede para guardar o lugar enquanto sai por uns instantes, ainda que a sala esteja vazia, dois negros na fila da frente de mãos dadas, a senhora da bilheteira com a vozinha irritantemente fina, a visão independente do teatro em todo o seu esplendor e o público em menor número que o elenco. Não sei se melhor que a Cornucópia (refiro-me à adaptação que a Companhia de Luís Miguel Cintra fez daquela peça de Shakespeare), não, claro que não, mas decididamente diferente da maioria do que se faz cá e lá. E foi, igualmente, com chuva torrencial que fui brindado à saída deste curioso teatro da 152 West 71st Street.
Além do teatro (de algum teatro, cada vez mais off Broadway) os territórios museológicos assumem a minha preferência. Nova Iorque possui muitos tipos de museus, suportados por uma prática mecenática corrente. O Metropolitan Museum of Art é o maior museu dos Estados Unidos e exibe actualmente a maior retrospectiva dos últimos 40 anos sobre Turner, a qual se converteu num acontecimento cultural na cidade. Para a ocasião, reuniram-se cerca de 150 obras, 85 das quais procedentes da Tate Britain, onde se guarda uma grande parte do denominado Turner Bequest, um conjunto de aproximadamente 100 óleos cedidos pelo artista à Grã-Bretanha e entre os quais se encontram alguns dos seus trabalhos mais relevantes. Esta mostra que agora pude contemplar no MET, com a qual se desenha um percurso completo por toda a produção de Turner, de forma cronológica e temática, divide-se em dez deslumbrante partes e por elas inquieto me perdi …
Muitos museus especializaram-se, como o Museum of Modern Art e o controverso Guggenheim Museum, de Frank Lloyd Wright. E imperdoável seria se lá não voltasse. O MoMA mostra como Salvador Dali se intoxicou e se deixou contaminar pelo cinema: “Estou em Hollywood, onde entrei em contacto com os três surrealistas americanos, Harpo Marx, Walt Disney e Cecil B. DeMille. Acredito tê-los intoxicado e que as possibilidades para o surrealismo aqui se tornem uma realidade.” Na carta endereçada a André Breton, Dalí afirmava sua afinidade com três dos maiores ícones do cinema americano comercial. Dali que de forma brilhante interage com lagostas e línguas gigantes foi convidado pelos grandes estúdios a desenhar sequências oníricas de realizadores como Fritz Lang e Hitchcock. O pintor armazenou muito da visão vanguardista e “alucinógena” que marcou a sua pintura e a sua estreia no cinema em parceria com Luis Buñuel. Essa fertilização mútua entre cinema e pintura é o tema da interessante exposição Dali: painting and film.
Em velocidade de cruzeiro revisitei a gigantesca concha branca que é o Guggenheim e dei conta que Louise Bourgeois ali habita por uns meses. A construção da artista plástica é uma triunfante afirmação da existência iluminada pela libido. Nessa obra biográfica e erotizada, transformar materiais em arte é uma conversão física. Esta destreza retira a mulher da sombra da história da arte. Depois de Bourgeois, o universo artístico já não será de mulheres no mundo dos homens, nem têm de falar aí a linguagem dos homens, mas tornar presente o seu próprio desejo. Namorei o catálogo, folhei-o atentamente e adiei a aquisição.
Nova Iorque, sexta-feira à tarde. Despeço-me da cidade com um Blackberry Lemonade bebido apressadamente num bar de hotel da 7th Avenue…
P.S - Não resisti e numa sala de cinema da Broadway assisti à adaptação da obra-prima de Evelyn Waugh: Brideshead Revisited. Não comparo com o livro, nem com a série e antes de ler qualquer critica mergulhei nos anos 20 e acompanhei Charles Ryder e Sebastian Flyte. Não obstante tudo o que se venha a ser dito a propósito e presumo que não seja pouco posso confessar que saboreei esta outra visão da obra.