Rui Nunes esta semana, no Jornal de Letras. Apetecia citar o texto todo. Fica um brevíssimo excerto, resumo e sublinhados meus:
Outro dia, fez as contas e o resultado não deixou de o impressionar: não fala mais de hora e meia por semana. Talvez não fosse mais do que a confirmação do que já era de esperar. É que vive «isolado», em St. Pölten, a cerca de 70 quilómetros de Viena de Áustria e, embora fale alemão, essa poderia ser uma razão suficiente para tão poucas palavras. Mas reconhece que esse caminho para o silêncio é mesmo uma «evolução» natural. A relação de Rui Nunes com as palavras tornou-se difícil. No início, eram para ele uma espécie de «lupa» para ver melhor o mundo. Mas foi-lhe crescendo a convicção que o encobriam mais do que clarificavam. Por essas razões, a sua escrita busca o silêncio, cada vez mais escassa de palavras e imensa de sentidos, sem género, nem histórias, sem fronteiras, nem rótulos, cada vez mais fragmento e densa poesia. Essa natureza fragmentária decorre, aliás, do seu modo de ver, em si mesmo parcelar, exigindo uma certa inclinação sobre a realidade. Rui Nunes tem uma doença na retina, congénita, que desde criança lhe determina e limita o campo de visão. E, como confessa, só escreve sobre o que vê. Sabe também que «cada olhar é único». E essa é a garantia da Literatura. «Mesmo que o mundo aparentemente seja o mesmo, o olhar que o vê é sempre outro», diz. Falou acerca do seu olhar sobre o mundo há mais de quatro décadas e o seu próximo livro, que provavelmente se chamará Oficio de Vésperas, seguirá a linha inaugurada com O Choro É Um Lugar Incerto em que se acentua a «rarefacção e a suspeição» verbal. E também enquanto fala Rui Nunes tem a palavra sob suspeita. Deita mão da lupa para ler o que escreveu no papel, morde por vezes as frases, temendo ser traído por uma palavra menos justa. Escolhe-as, mede-lhes o sentido, vigia-lhes a obscuridade. Diz muitas vezes: «Não gosto desta palavra». E nomeia o silêncio.
Outro dia, fez as contas e o resultado não deixou de o impressionar: não fala mais de hora e meia por semana. Talvez não fosse mais do que a confirmação do que já era de esperar. É que vive «isolado», em St. Pölten, a cerca de 70 quilómetros de Viena de Áustria e, embora fale alemão, essa poderia ser uma razão suficiente para tão poucas palavras. Mas reconhece que esse caminho para o silêncio é mesmo uma «evolução» natural. A relação de Rui Nunes com as palavras tornou-se difícil. No início, eram para ele uma espécie de «lupa» para ver melhor o mundo. Mas foi-lhe crescendo a convicção que o encobriam mais do que clarificavam. Por essas razões, a sua escrita busca o silêncio, cada vez mais escassa de palavras e imensa de sentidos, sem género, nem histórias, sem fronteiras, nem rótulos, cada vez mais fragmento e densa poesia. Essa natureza fragmentária decorre, aliás, do seu modo de ver, em si mesmo parcelar, exigindo uma certa inclinação sobre a realidade. Rui Nunes tem uma doença na retina, congénita, que desde criança lhe determina e limita o campo de visão. E, como confessa, só escreve sobre o que vê. Sabe também que «cada olhar é único». E essa é a garantia da Literatura. «Mesmo que o mundo aparentemente seja o mesmo, o olhar que o vê é sempre outro», diz. Falou acerca do seu olhar sobre o mundo há mais de quatro décadas e o seu próximo livro, que provavelmente se chamará Oficio de Vésperas, seguirá a linha inaugurada com O Choro É Um Lugar Incerto em que se acentua a «rarefacção e a suspeição» verbal. E também enquanto fala Rui Nunes tem a palavra sob suspeita. Deita mão da lupa para ler o que escreveu no papel, morde por vezes as frases, temendo ser traído por uma palavra menos justa. Escolhe-as, mede-lhes o sentido, vigia-lhes a obscuridade. Diz muitas vezes: «Não gosto desta palavra». E nomeia o silêncio.
JL: Ouve-se Sempre A Distância Numa Voz é um livro com um lastro autobiográfico?
Rui Nunes: Só escrevo sobre o que vejo e sempre foi assim. E neste ver, está o sentir, tudo. Há em mim essa pobreza: não consigo inventar o real.
Por isso, nunca conta histórias?
Como digo no meu livro, há tão poucas. E começam e acabam quase todas da mesma maneira. Porquê contá-las? No entanto, ao contrário do que muitas vezes se diz, há fios narrativos nos meus livros, mas é preciso ler e descobri-los. Mas hoje as pessoas não perdem muito tempo com a leitura. Lêem e querem chegar ao fim depressa. Querem saber quem casa com quem, quem matou quem? A escrita está a ser substituída pelo fim.
A sua escrita exige demora?
Exige que gostem dela ou então que a ponham imediatamente de parte. Neste livro, há algumas zonas de memória, de ternura, em relação a imagens que são importantes para mim, como a do meu avô? Ele um dia decidiu que não tinha mais nada a dizer e calou-se.
Rui Nunes: Só escrevo sobre o que vejo e sempre foi assim. E neste ver, está o sentir, tudo. Há em mim essa pobreza: não consigo inventar o real.
Por isso, nunca conta histórias?
Como digo no meu livro, há tão poucas. E começam e acabam quase todas da mesma maneira. Porquê contá-las? No entanto, ao contrário do que muitas vezes se diz, há fios narrativos nos meus livros, mas é preciso ler e descobri-los. Mas hoje as pessoas não perdem muito tempo com a leitura. Lêem e querem chegar ao fim depressa. Querem saber quem casa com quem, quem matou quem? A escrita está a ser substituída pelo fim.
A sua escrita exige demora?
Exige que gostem dela ou então que a ponham imediatamente de parte. Neste livro, há algumas zonas de memória, de ternura, em relação a imagens que são importantes para mim, como a do meu avô? Ele um dia decidiu que não tinha mais nada a dizer e calou-se.
É uma personagem enigmática?
Para mim, é tutelar. Porque me disse quase todas as palavras do mundo, nomeava as coisas, introduzia a luz no mundo. Eu perguntava-lhe: «Avô, o que é aquilo?» E ele tinha um nome. Era pescador e sabia o nome de todos os peixes, de todas as praias e mares.
Viveu com ele?
Até aos nove anos. E mais tarde, porque morreu velho. Aliás, sempre o foi. Vivíamos em Setúbal. Um dia, achou que já tinha dito tudo. Foi uma bela decisão.
(…)
Não posso afiançar, mas penso que não voltarei a escrever um livro com tantas palavras. Tal como o meu avô, estou quase a chegar ao momento de achar que já disse tudo o que sei. A minha relação com as palavras tornou-se cada vez mais difícil.
Sempre tive uma suspeita em relação à palavra e tem-se acentuado com o tempo. E tudo o que quero dizer é na escrita que o digo. Na fala, as palavras procuram sempre o caminho mais fácil. Organizamos a nossa relação com o Outro através da palavra e a palavra parece que veicula aquilo que queremos dizer, mas na verdade só o encobre. As palavras na fala carregam a traição. É isso que sinto, que estão continuamente a trair-me. Somos levados por uma espécie de música que vai destruindo uma certa forma de sentido. Porque acreditamos que o sentido está nela. E, na verdade, não está.
Como é possível, na escrita, acercar-se mais do verdadeiro sentido das palavras?
Através, por exemplo, da destruição das grandes paisagens de sentido, que são os romances, sobretudo aquele fiozinho da história. Penso que isso é muito nítido na minha escrita. Porque a história estabelece um sentido que é ele próprio contra a verdade que eu quero dizer.
Também parece muito presente na sua escrita uma espécie de concentração, como se escavasse por dentro o sentido das palavras?
Houve tempo em que as palavras eram, para mim, uma espécie de lupa e eu poderia ver melhor o mundo escrevendo. Mas hoje já não é assim e penso que a minha escrita o evidencia. Vou perdendo palavras, desistindo de as utilizar, mas aquilo que poderia ser sentido como uma espécie de empobrecimento, é para mim uma ascese, que nos conduz à intimidade. E é nela que está a verdade. Daí as poucas palavras que ficam. E essas, sim, vêm carregadas daquela obscuridade que me fascina. A verdade é a coincidência de mim comigo. Essa absoluta coincidência, como a absoluta coincidência da palavra com a coisa que designa, estará no fim dessa espécie de ascese.
Vive bem com o silêncio?
Sempre falei pouco. E quando me reformei foi óptimo, porque podia ceder a esse desejo de falar cada vez menos. Vivo numa casinha de madeira, que tem um quintal imenso, com árvores, perto de uma cidade pequena…para ir beber um café, tenho que andar meia hora. Evidentemente é um silêncio cheio de sons, ainda que com poucas vozes.
Os sons do mundo são mais importantes que as vozes?
Hoje, são bem mais importantes do que as vozes. Quando me falta o som das minhas gralhas já estranho.
Porque escolheu a Áustria para viver?
Porque lhe estou emocionalmente ligado desde sempre. E como as pátrias para mim não têm muito sentido, nem as fronteiras…
O que é para si a Pátria?
É o sítio onde me sinto bem, onde os meus afectos foram construídos. São aqueles lugares onde gosto de estar. É na Áustria, porque lá estiveram, e de certo modo ainda estão, alguns dos meus afectos. Além disso, há uma relação afectuosa com determinado tipo de paisagem e com o clima. Gosto do frio, da neve, do gelo. E encontrei lá uma solidão que sempre procurei, uma não interferência.
É difícil a solidão em Portugal?
É impossível. Há demasiada luz. Estamos sempre a ser vistos., comentados, ouvidos. A quererem que se diga alguma coisa. E não me apetece essa obrigação de estar sempre a acrescentar palavras ao mundo. Já há palavras que cheguem.
O que sente quando chega a Portugal?
Vontade de me ir embora.
É uma relação de rejeição?
Bastante. É evidente que todos os países se equivalem, mas eu estou sempre fora dos mecanismos do sistema…mas quando chego aqui, em termos de Literatura, tudo isto me repugna bastante…quando entramos nas livrarias, deparamos com uma selecção de horrores. É pornografia pura.
Há uma definição terrível que encerra o seu livro, da velhice ou da tragédia humana. Diz que a velhice é um amontoado de palavras e de salas vazias.
As palavras na nossa vida vão-se esvaziando e chegamos ao fim com as palavras todas vazias. Dizemos um nome e a pessoa a quem pertenceu já não existe. Essa é a condição humana. Morremos, quando já só temos mortos, é essa a distância que se ouve sempre. É o som da palavra vazia.
Tocante este Rui Nunes, comoventes as palavras….
Viveu com ele?
Até aos nove anos. E mais tarde, porque morreu velho. Aliás, sempre o foi. Vivíamos em Setúbal. Um dia, achou que já tinha dito tudo. Foi uma bela decisão.
(…)
Não posso afiançar, mas penso que não voltarei a escrever um livro com tantas palavras. Tal como o meu avô, estou quase a chegar ao momento de achar que já disse tudo o que sei. A minha relação com as palavras tornou-se cada vez mais difícil.
Sempre tive uma suspeita em relação à palavra e tem-se acentuado com o tempo. E tudo o que quero dizer é na escrita que o digo. Na fala, as palavras procuram sempre o caminho mais fácil. Organizamos a nossa relação com o Outro através da palavra e a palavra parece que veicula aquilo que queremos dizer, mas na verdade só o encobre. As palavras na fala carregam a traição. É isso que sinto, que estão continuamente a trair-me. Somos levados por uma espécie de música que vai destruindo uma certa forma de sentido. Porque acreditamos que o sentido está nela. E, na verdade, não está.
Como é possível, na escrita, acercar-se mais do verdadeiro sentido das palavras?
Através, por exemplo, da destruição das grandes paisagens de sentido, que são os romances, sobretudo aquele fiozinho da história. Penso que isso é muito nítido na minha escrita. Porque a história estabelece um sentido que é ele próprio contra a verdade que eu quero dizer.
Também parece muito presente na sua escrita uma espécie de concentração, como se escavasse por dentro o sentido das palavras?
Houve tempo em que as palavras eram, para mim, uma espécie de lupa e eu poderia ver melhor o mundo escrevendo. Mas hoje já não é assim e penso que a minha escrita o evidencia. Vou perdendo palavras, desistindo de as utilizar, mas aquilo que poderia ser sentido como uma espécie de empobrecimento, é para mim uma ascese, que nos conduz à intimidade. E é nela que está a verdade. Daí as poucas palavras que ficam. E essas, sim, vêm carregadas daquela obscuridade que me fascina. A verdade é a coincidência de mim comigo. Essa absoluta coincidência, como a absoluta coincidência da palavra com a coisa que designa, estará no fim dessa espécie de ascese.
Vive bem com o silêncio?
Sempre falei pouco. E quando me reformei foi óptimo, porque podia ceder a esse desejo de falar cada vez menos. Vivo numa casinha de madeira, que tem um quintal imenso, com árvores, perto de uma cidade pequena…para ir beber um café, tenho que andar meia hora. Evidentemente é um silêncio cheio de sons, ainda que com poucas vozes.
Os sons do mundo são mais importantes que as vozes?
Hoje, são bem mais importantes do que as vozes. Quando me falta o som das minhas gralhas já estranho.
Porque escolheu a Áustria para viver?
Porque lhe estou emocionalmente ligado desde sempre. E como as pátrias para mim não têm muito sentido, nem as fronteiras…
O que é para si a Pátria?
É o sítio onde me sinto bem, onde os meus afectos foram construídos. São aqueles lugares onde gosto de estar. É na Áustria, porque lá estiveram, e de certo modo ainda estão, alguns dos meus afectos. Além disso, há uma relação afectuosa com determinado tipo de paisagem e com o clima. Gosto do frio, da neve, do gelo. E encontrei lá uma solidão que sempre procurei, uma não interferência.
É difícil a solidão em Portugal?
É impossível. Há demasiada luz. Estamos sempre a ser vistos., comentados, ouvidos. A quererem que se diga alguma coisa. E não me apetece essa obrigação de estar sempre a acrescentar palavras ao mundo. Já há palavras que cheguem.
O que sente quando chega a Portugal?
Vontade de me ir embora.
É uma relação de rejeição?
Bastante. É evidente que todos os países se equivalem, mas eu estou sempre fora dos mecanismos do sistema…mas quando chego aqui, em termos de Literatura, tudo isto me repugna bastante…quando entramos nas livrarias, deparamos com uma selecção de horrores. É pornografia pura.
Há uma definição terrível que encerra o seu livro, da velhice ou da tragédia humana. Diz que a velhice é um amontoado de palavras e de salas vazias.
As palavras na nossa vida vão-se esvaziando e chegamos ao fim com as palavras todas vazias. Dizemos um nome e a pessoa a quem pertenceu já não existe. Essa é a condição humana. Morremos, quando já só temos mortos, é essa a distância que se ouve sempre. É o som da palavra vazia.
Tocante este Rui Nunes, comoventes as palavras….
3 comments:
Olá!
Se gostas de cinema vem visitar-nos em
www.paixoesedesejos.blogspot.com
todos os dias falmos de um filme diferente
Paula e Rui Lima
Olha Luís, hoje vou-me silenciar no mutismo/escassez das palavras.
Vou voltar para trás e reler este post, digerir o que aqui está inscrito e (pré)inscrito antes do verbo solto da boca de Rui Nunes ...
A mensagem é demasiado densa e creio que não a absorvi na sua plenitude.
No silêncio, vou ler de novo...
Bjs
Mel
PS: Jean Paul Satre, como sabes era estrábico (a visão do Mundo, necessáriamente era diferente). Sim, uma qq deficiência gera uma visão diferente ...
Se estiveres preso a uma cadeira de rodas, o mundo tem apenas 1 m de altura ao nível do teu olhar ... E, contudo, pode ser de uma riqueza desmedida. Porque absorve intensamente a dimensão onde passeia o ângulo de visão.
Enfim... prometi fazer silêncio.
já que lemos o mesmo escritor, com a mesma adesão, gostava que lesse o que escrevi sobre o "ouve-se sempre a distância numa voz".
vou passar aqui mais vezes
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