Wednesday, April 11, 2007

Jorge, este Rapaz de Lisboa...


Um homem é feito do que vê, do que ouve, dos passeios, e eu foi assim que fui vivendo, feliz na passiva. Na ficção, também.

Jorge Silva Melo: actor, argumentista, cineasta, critico de cinema e de teatro, co-fundador do teatro da Cornucópia, cronista, director dos Artistas Unidos, dramaturgo, encenador, estudante na London Film School, realizador de cinema, tradutor de Carlo Goldoni, Pirandello, Oscar Wilde, Bertolt Brecht, Georg Büchner, Lovecraft, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Heiner Müller e Harold Pinter, amante de todas as artes, que a elas tem dedicado uma vida superlativamente prodigiosa. Não se trata, apenas, da minha crença enquanto leitor atento à sua vida e obra. Pegue-se no extraordinário Século Passado e saboreie-se. E, pela leitura, atravesse-se o país desde os anos 50, o Portugal acanhado e bafiento, em que as revistas de cinema eram a sua paixão, devoradas juntamente com bolas-de-berlim da leitaria do Senhor Aires: «Eu gostava de tudo, dos Hércules no São Jorge, de uns policiais alemães com o Peter van Eyck no Roma, do fantástico ‘Guerra e paz’ de King Vidor, gostava era do cinema, de comprar o bilhete, receber o programa, ouvir o gong e ali ficar, entre aventuras de piratas e dramas de amor, pensando que iria ser assim, desmesurada, a minha vida adulta e o grande amor.». O autor reúne, nestas quase 600 páginas, parte dos escritos dos seus quase 60 anos de vida. Admirável ideia, a de escrever as Memórias não agora, mas desde sempre, de as ir escrevendo com os dias, para depois as reunir. É do tributo a muitos seus contemporâneos que Jorge Silva Melo quer que as recordações se façam; e nessa humildade de se encarar como mero figurante, o rapaz que assiste à vida lá do 2º balcão mostra a sua estatura. E isso, neste país ingrato, velhaco e grandiloquente, é coisa de apertar o coração (como a propósito realçaram os seus editores):
«Não andei, livre, a vagabundear, nem livre divago, nem foi, afinal, sozinho comigo e as bolhas nos pés que calcorreei Tates e Louvres, cinematecas e escadas para o galinheiro das óperas. Prolongo, filho eterno e demorado aluno, genes e lições (…) nada inventei, tudo me foi em segredo ditado (…)».

Jorge, este rapaz de Lisboa, vagueia por cafés e cinemas que já não existem, ressuscitando mitos esquecidos. Enaltece a verdadeira liberdade, aquela que sobressai em Jacques Tati e em John Ford. Assume-se como discípulo de Raoul Walsh e promete filmar a vida dos homens sem Deus, sem moral e sem sentença. Com o mesmo regozijo, aplaude Bénard da Costa e reconhece-lhe a capacidade de, através da escrita, fazer ver a vida. Recorda a altura em que foi aluno de Mário Dionísio e mostra-se grato por ter aprendido o verdadeiro papel da literatura. Encontra-se nos livros que recorda da adolescência e nas preciosidades descobertas em alfarrabistas. Define os actores de teatro não apenas pelos papéis que fizeram mas também por aqueles que gostaria que tivessem feito. "Adoro actores, a sua fragilidade, as suas vaidades, divertem-me e encantam-me", disse numa entrevista. O autor de António, um Rapaz de Lisboa surge-nos com o olho clínico do observador, a fragilidade do artista, o devaneio do viajante (cf. Mafalda Azevedo in Mise en Abyme). O mesmo homem que inicia as suas memórias com uma frase de Simone Weil – a nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção. É ele, Jorge Silva Melo, um dos vultos da cultura portuguesa e o autor desta pérola. Uma obra que é o retrato eficaz de um século e de uma época enlameados pelo salazarismo mas coloridos por uma vida cultural em que os intelectuais combatiam por causas. Uma obra em que a capacidade de inter-relacionar e de interpretar as conexões interdisciplinares e interculturais é estonteante. O carácter específico de disciplinas como a arquitectura, o cinema, a literatura, a música, a pintura e o teatro perde o seu sentido numa reflexão como esta que as confunde e baralha. Numa única página, debruçamo-nos sobre a obra de Beethoven, ao mesmo tempo que reflectimos sobre Michel Piccoli e lembramos Van Gogh. Numa obra em que, entre muitos outros, são convidados, Tati e Walsh, Pavese e Fiama, Glicínia e Chaplin, Skapinakis e Lapa, Hawks e Ford, Hitchcock e Oliveira, Welles e Garrel, Sophia e Godard, Strehler e Visconti, Gastão e Verdi, Wilder e Pasolini, Kazan e Xana. Até a Senhora Dona Amélia Rey-Colaço não faltou à chamada.

Memórias? Jorge Silva Melo esclarece: «[...] notas que fui escrevendo, algumas que reescrevi [...] Mais sobre quem me fez do que sobre aquilo que fiz [...] pode parecer mas não é um diário [...] calendário privado mas sazonal [...] Nem aqui juntei o que sobre teatro também fui escrevendo, e sobre os amigos de todas as manhãs. Fica para depois.». Pessoas, filmes, livros, cidades, cafés. Páginas memoráveis, lidas com sofreguidão ontem pela noite fora…

Fontes:
www.livroscotovia.pt/
daliteratura.blogspot.com/
miseenabyme.blogspot.com/

3 comments:

Moura ao Luar said...

Gosto de memorias, quando estou triste fazem-me sorrir

rui rebelo said...

O Jorge Silva Melo é um Senhor do Teatro.

Anonymous said...

O Lapa, será o álvaro lapa?