Eduardo Prado Coelho foi autor de uma ampla bibliografia universitária e ensaística, e mantinha vasta colaboração em jornais e revistas e uma crónica semanal sobre literatura, para além de um comentário político quotidiano. Uma crónica relatando uma situação real publicada há alguns anos tocou-me de tal modo que várias vezes a li a íntimos. Partilho convosco esse texto, hoje, dia em que o escritor foi a enterrar.
HORIZONTE
Eduardo Prado Coelho
Em falta
Conheci a Luísa há muitos anos, nos tempos da faculdade. Frequentava História, era inteligentíssima, às vezes quase perturbante no exercício infatigável dessa inteligência, falava muito, escondia sentimentos, apresentava uma imagem de dureza, paixão e rigor em tudo o que fazia. Recordo-me da sua presença nas lutas estudantis, de como foi presa, do julgamento na Boa-Hora, da sua energia e da sua raiva. Havia nela a forma mais pura de se poder ser: acreditava numa só coisa. E aí não transigia.
Mais tarde, a Luísa esteve em França, trabalhando para Portugal na Rádio France Internacionale. Depois partiu para Macau, onde viveu muitos anos (creio que era funcionária do Leal Senado). Escrevia às vezes. Desatenta aos fusos horários, telefonava a altas horas da noite. Sem família a seu cargo, foi dos primeiros funcionários a serem dispensados. Regressou a Portugal. A legislação que a deveria integrar no funcionalismo português só saiu posteriormente e não a abrangia. Escreveu às mais altas instâncias, foi recebida por assessores que lhe explicaram que nestas coisas há sempre situações injustas. Mas ela não percebia. E via alguns, mais astutos, resolverem essas situações com demasiada facilidade. O que a revoltava.
A Luísa não era capaz de entender o país que deixara 30 anos antes. Lia jornais ingleses para compreender o mundo. Tentou uma bolsa na Fundação do Oriente. A última vez que estive com ela foi para lhe fazer uma carta de recomendação que devia acompanhar o processo. Não sei se ela chegou a entender que o que eu ali escrevia não eram fórmulas de circunstância, mas o que verdadeiramente penso, e nunca lhe cheguei a dizer: que se tratava de uma pessoa excepcional, incomodamente inteligente, corajosa, culta, obstinada, intransigente. E silenciosamente terna.
Há dias a Luísa preferiu voar directamente para a morte e deixar de ter os pés assentes nesta terra de que ela não sabia o que fazer e que manifestamente não sabia o que fazer com ela. Na tua morte, sentimo-nos todos em falta: um pouco pelo que somos, claro – mas sobretudo por tudo aquilo que não conseguimos chegar a ser. O que tu viste e nem gritaste.
Mais tarde, a Luísa esteve em França, trabalhando para Portugal na Rádio France Internacionale. Depois partiu para Macau, onde viveu muitos anos (creio que era funcionária do Leal Senado). Escrevia às vezes. Desatenta aos fusos horários, telefonava a altas horas da noite. Sem família a seu cargo, foi dos primeiros funcionários a serem dispensados. Regressou a Portugal. A legislação que a deveria integrar no funcionalismo português só saiu posteriormente e não a abrangia. Escreveu às mais altas instâncias, foi recebida por assessores que lhe explicaram que nestas coisas há sempre situações injustas. Mas ela não percebia. E via alguns, mais astutos, resolverem essas situações com demasiada facilidade. O que a revoltava.
A Luísa não era capaz de entender o país que deixara 30 anos antes. Lia jornais ingleses para compreender o mundo. Tentou uma bolsa na Fundação do Oriente. A última vez que estive com ela foi para lhe fazer uma carta de recomendação que devia acompanhar o processo. Não sei se ela chegou a entender que o que eu ali escrevia não eram fórmulas de circunstância, mas o que verdadeiramente penso, e nunca lhe cheguei a dizer: que se tratava de uma pessoa excepcional, incomodamente inteligente, corajosa, culta, obstinada, intransigente. E silenciosamente terna.
Há dias a Luísa preferiu voar directamente para a morte e deixar de ter os pés assentes nesta terra de que ela não sabia o que fazer e que manifestamente não sabia o que fazer com ela. Na tua morte, sentimo-nos todos em falta: um pouco pelo que somos, claro – mas sobretudo por tudo aquilo que não conseguimos chegar a ser. O que tu viste e nem gritaste.
28 comments:
Muito obrigado. Este senhor, com as suas críticas literárias iluminou-me na descoberta de muitas obras na minha fase de "intelectualização". E era um prazer ouvi-lo, com aquela voz suave, e lê-lo. Parece-me que sugou o tutano da vida até ao fim e fez ele muito bem. Devia de ir de burro ajaezado à andaluza.
Olá!!
Estou passando por aqui para dar meus parabéns
pela sua indicação, ao prêmio blog 5 estrelas!
Seu blog é muito original, parabéns 2x!
rsrs...
Boa semana
Lembrando que o último dia para me enviar
seus votos é amanhã dia 27/08 e no próx dia 31/08
conheceremos o blog 5 estrelas escolhido pela maioria!
=]
o meu último aplauso e eterno a eduardo prado coelho e à luísa também.
Tinha lido este artigo do Eduardo Prado Coelho e gostei muito.
Hoje de manhã quando li a notícia da sua morte fiquei triste, gostava realmente deste homem, ou melher do que escrevia e dizia, nunca o conheci pessoalmente nem o vi ao vivo, mas tive pena.
Ficamos todos mais pobres
Jasmim
Ficámos todos mais pobres....
Como disse antes, não era uma leitora assídua, mas não deixo de poder dizer que a cultura portuguesa perdeu mais um dos seus valorea...
Olá Luis,
deixei-te um miminho no Querubim Peregrino.
Depois volto para ler este artigo.
Beijo e Boa Semana
Confesso-te que nunca nutri particular admiração ou êxtase pelo que ele escrevia. Salvo raras crónicas (como esta que publicaste) em que ele se conseguia aproximar do leitor, sempre achei a sua linguagem demasiado intricada, fechada, pouco acessível...mas isso talvez seja um mal geral de muitos dos nossos intelectuais...A cultura no nosso país, infelizmente, continua a ser para poucos... De qualquer forma, perde-se um grande pensador... Agora é aguardar as homenagens póstumas...
Parabéns pelo espaço. Gostei imenso. Bj
Recordar este texto é uma excelente forma de lhe prestar homenagem! Gostei muito de reler.
A cultura portuguesa fica muito mais pobre, isso é um facto incontestável! O que lamento sinceramente. Mas... bravo... para esta vida!
Confesso que a ideia de "não ter tempo para chegar a ser" me aflige... Talvez por ter sempre encarado a vida como algo demasiado precioso para ser desperdiçado...
A morte de EPC apanhou-me de surpresa neste final de Verão atípico.
Abraço.
pelo Eduardo, pela Luisa também. Por mim. Por todos nós, obrigada, Luis
certamente conmevente.
Beijos.
Há factos e situações em que seja qual for o comentário que se faça, será sempre dizer pouco, esta é uma dessas situações.
Obrigada Luís.
Danças?...
um pouco como o abssinto.
ele também me iluminou algumas vezes...
a morte parece-me sempre um estranho adereço que chega e se nos impõe
...demasiado cedo...?
beijO
Divulgação
Mais um Blog que se tornou um Livro!
Filme da apresentação disponível no YouTube em “Camarada Choco”
www.camaradachoco.blogspot.com
www.livrosnet.com
Todas as homenagens são poucas para colocar este senhor das letras, em Portugal, no sítio que merece... LÁ NO ALTO!
Gostei muito da crónica! Obrigado, Luís!
Abraço,
FMOP
Bonita homenagem! E Obrigada por me dares a conhecer este texto! Não é nada fácil lidar com as injustiças e qualquer tipo de perdas...
Boa semana! Beijocas
Repito
nós não deixamos morrer os nossos mortos mesmo que em vida nem sempre estivessem ao nosso lado
Amigo Luís
Ora bem, vou iniciar uma série de posts sobre o ALFABETO da minha Vida. Cada dia vou postar uma letra do abecedário, e direi o que achar sobre ela, podem ser coisas boas ou menos boas, são as que foram ou são importantes durante a minha vivência.
Hoje, em homenagem ao meu neto ANDRÉ - dia do seu 1º aniversário: Parabéns a você, nesta data querida, muitas Felicidades, muitos anos de vida...
começo precisamente pela 1ª letra do Alfabeto - a letra A.
Beijitos azuis (em homenagem ao meu neto)
"Há dias a Luísa preferiu voar directamente para a morte e deixar de ter os pés assentes nesta terra de que ela não sabia o que fazer e que manifestamente não sabia o que fazer com ela."...
***
O "Fio do Horizonte", recorda-nos a todos a finitude impossível de contornar...
Mas não deixa de nos remeter para dimensões maiores do que é "estar vivo". Encetar uma viagem sem retorno pode ser e é uma dor para os que por cá ficam, pode ser e é o "fim de".
Eduardo Prado Coelho, à semelhança da Luísa, e de tantos outros, deixa-nos um legado que os tornará imortais: a palavra, o pensamento estruturado, organizado em torno de sentido de missão e de valores.
Por eles, ambos e por todos quantos amamos a partilha de e nas palavras, Luís, o meu muito obrigada por esta crónica tão singela e ao mesmo tempo tão, mas tão profunda.
Um abraço fraterno, meu "brother"
PS: Perdoa a ausência, sabedor que és das "razões".
Ontem voltei, li os post anteriores, quero comentar com tempo.
Bjs, amigo!
Mel
www.noitedemel.blogs.sapo.pt
Olá, Luís.
Vamos ficando com o que fica!...
Parabéns.
Eduardo Prado Coelho foi um dos meus grandes mestres.
Bjs Zita
O talento não é um dom que se busca e encontra.
Aquilo que consegues com o teu trabalho neste blogue revela esse teu dom espantoso de saber olhar, ler, discernir, avaliar, ajuizar, entender e sentir.
Tudo isto e muito mais vai construindo esta bela mansão!
Eduardo Prado Coelho, continuará por ai para quem o quiser "ouvir" com a voz de quem o lêr!
Gostei de cá vir e voltarei.
Parabéns pelo que nos oferece!
Já sinto falta das crónicas dele no Público. Um abraço.
"O fio do horizonte" era um espaço de leitura obrigatório, no Público.
Podia-se não estar sempre de acordo com EPC, mas nunca se ficava indiferente; se há alguém a quem se possa adjectivar a palavra intelectual, seria a ele.
O texto escolhido por ti para o homenageares é dos mais sinceros e belos que escreveu.
Encontrei o seu blog casualmente e estive a dar uma olhada pelos posts.
Parei neste, que li todo. Eduardo Prado Coelho é inesquecível. E este texto dele tocou-me profundamente.
Muito obrigada.
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