Sunday, September 09, 2007

o medo que nos olha...

Às vezes ouvimos um som aos nossos pés, ou entre as sombras, e temos medo que os ratos já aqui estejam, entre nós. Agora que éramos tão felizes.
Às vezes ouvimos nas nossas costas o som daquela flauta e dá-nos medo de nos voltarmos e reconhecermos os olhos do flautista. E corremos para os quartos dos nossos filhos para ver se ainda ali estão.
Às vezes tememos que o “Era uma vez” nos alcance como uma língua negra. E que, como uma profecia, cumpra o conto em nós.
Nas versões mais antigas do conto, as crianças nunca voltam a Hamelin. O flautista leva-os para sempre com a formosa música da sua flauta. Arrebatando os filhos inocentes, o flautista outorga à culpa dos pais o mais cruel dos castigos.
Também este Hamelin é um conto sobre a culpa dos adultos e o seu castigo. Sobre as crianças de uma cidade que não sabe protegê-los. Sobre um menino e os seus inimigos. Sobre o ruído que o rodeia e o medo que nos olha.
Juan Mayorga

Ontem à noite. Convento das Mónicas, fundado em 1586, em propriedade cedida às freiras para o culto. O convento mantém a sua traça original seiscentista, mas com o sismo, parte da igreja ruiu obrigando à sua reconstrução. Com a extinção das ordens religiosas em 1834 e a morte da última freira, o Estado transformou o convento em casa de correcção para rapazes e seguidamente para raparigas, até o converter em cadeia para mulheres. Curioso, é aqui que os Artistas Unidos estão instalados e preparados para uma nova representação de Hamelin, peça que nos fala do mesmo que o conto, mas de homens rato. A perversão é o tema, perversão da educação, perversão sexual, perversão das palavras. O espectáculo reflecte sobre a perversão do Homem, sobre os comportamentos de desvio e o modo como a sociedade contamina o indíviduo. “Unidade familiar significa família para uma criança que não sabe o que isso é? E se a tolerância é zero, quererá isso, para um juiz moderno e democrata, dizer repressão?”. Mas Hamelin também é um jogo teatral requintado onde um comentador, em contínuo contacto com o público, consegue alterar o ponto de vista ou elucida acerca de um conceito ou comove ao adoptar uma postura crítica ou simplesmente permanece ao lado do espectador e observa como ele olha. E é disso que se trata, de olhar. Preocupei-me com aquele atormentado juiz e senti alguma tranquilidade com aquela carinhosa e pragmática pedopsicóloga.

Hamelin é uma peça escrita numa linguagem sóbria, precisa e fluida. Uma peça sobre a dificuldade, ou a impossibilidade, de chegar a conclusões, quando a linguagem é tudo o que existe para apurar da verdade, ou, o que é ainda mais problemático, para arriscarmos distinguir o bem do mal.

Resta sublinhar que Hamelin é um espectáculo de qualidade e assisti-lo foi um privilégio. Enérgico, inteligente, pertinente e, desafiador, suportado num elenco que assegura um conjunto de figuras credíveis e de uma humanidade tocante. Em suma, foi feliz a encenação oferecida ao texto de Juan Mayorga, que escreve com a subtileza que faz do teatro algo único.

24 comments:

avelaneiraflorida said...

Tema muito interessante!!!
E sobretudo quando olhamos o Conto do Flautista ...com outros olhos!!!!
Fiz um pouco essa experiência com os meus "besouros" e descobrimos leituras surpreendentes!!!!!
De facto, não é um simples conto infantil...
"Brigados" pela pista...
UM BOM RESTO de FIM DE SEMANA!!!!!

Jasmim said...

Olá Luís
Já tenha saudades dos seus "escritos" que funcionam como uma sugestão para mim.
Bom resto de domingo.

Jonice said...

Se eu aí estivesse não haveria de perder este espetáculo, Luís.
Tem uma ótima semana.
Um beijinho

Ka said...

É engraçado apercebermo-nos que realmente nunca duas pessoas vêm a mesma coisa (seja ela um objecto, um conceito ou mesmo um sentimento) da mesma forma não é?

O difícil é lembrarmo-nos disso no dia-a-dia

Beijinho e boa semana

Shelyak said...

Sempre com grande prazer que por aqui passo...
Abraço que aqui deixo :)

Alexandre said...

A última vez que fui ao teatro foi para ver «O carteiro de Pablo Neruda» em Almada. Gostei e está na hora de voltar a ir ao teatro, até porque estou a conseguir a média de ir 4 ou 5 vezes ao teatro por ano, e não quero estragar esta média!

Obrigado pelas sugestões!!!

Um forte abraço!!!

Vulcano Lover said...

Li a peça uma vez e adorei. Gosto sempre da maneira em que apresentas os obras de arte, os românces, as peças de teatro, os filmes...
Já faz tempo que não falamos, como é que estás???
Um abraço forte.

Anonymous said...

el otro día oí que el secreto de impactar a la gente es llegar al corazón para cegar la razón

quizá sea verdad, en todo caso me parece lícito cegar la razón si la música del flautista nos arrastra, la música es más verdad que la razón

amor
:-)

Maria P. said...

Tal como tu fazes deste espaço algo único.

Beijinho e boa semana*

o Reverso said...

a 12 de abril?!

isabel said...

mais uma excelente sugestão.

obrigada Luís

Lúcia Laborda said...

Realmente, um espetáculo para aguçar a curiosidade de assistir.
Parabéns pela escolha do tema do post.
Que sua semana seja feliz!
Beijos

Espaços abertos.. said...

Os teus textos tem uma grande funcionalidade para mim,viajo no mundo da leitura...
Bom início de semana
Bjs Zita

-Flor do Campo said...

Muito interessante a história, e tal qual deve ser a peça.
À propósito, que bela música de fundo!

Boa semana para ti.

Suspiros said...

Não podemos perder o medo de vista...
Boa semana!
:)

Ana Paula Sena said...

Uma óptima sugestão que muito agradeço. Gostei de ler o seu texto que apela à nossa atenção.
A música que se faz ouvir é lindíssima. :)

Chawca said...

Quem dera o teatro de cidades como a minha fosse mais movimentado...
Mas mesmo assim ainda vejo algumas peças muito boas por aqui...
Com a mudança de casa deixei de fazer muita coisa (até de blogar), mas avida vai voltando ao normal e assim volto para a leitura, o teatro, a m´suica e tudo aquilo que me faz sentir completo como ser humano...
SDeu texto sobre a peça me deu a impressão de que ela é inquietante...
Fiquei curioso, mas fazer o que?
Um abraço

ninguém said...

Tenho uma ligação especial com o teatro, arte sobre a qual escrevi durante muitos anos para diferentes jornais e revistas. Há pouco, fiz uma longa matéria para uma publicação chamada Aplauso, sobre o atual panorama das artes cênicas, com sua mistura de linguagens - dança, video, circo. Esta semana, estamos em pleno 14º Porto Alegre Em Cena que traz como pièce de resistence Mnouchkine e seu Théâtre du Soleil. INfelizmente, não há uma peça portuguesa na programação. Como vou escrever um novo artigo para esta revista avaliando os 14 anos do festival, reclamarei solenemente da ausência lusa. uym abraço

joshua said...

Bela sugestão!!!

Rui Rebelo said...

belíssimo espectáculo.

Rui Rebelo said...

belíssimo espectáculo.

Fernando Pinto said...

Quantas máscaras afivelamos perante o medo?

Abraço

João Roque said...

Gosto muito de cinema, comovo-me e "entro" pelo filme a dentro, se o tema me interessa mesmo; a televisão é aquela caixa mágica, que no meio de muito lixo, e ignorando totalmente certas estações, nos dá, mediante alguma aturada procura, algumas pérolas que nos fascinam (o meu canal preferido é de longe o "Arte").
Mas é o teatro que me dá a maior magia, pois "eles" estão ali, e estão a representar para mim, estão a dar-me o seu melhor, para satisfazer o meu desejo de passar um bocado do meu dia a sonhar com um assunto, a rever-me nos meus sonhos, enfim, transportam-me, ali mesmo ao seu reino de "faz de conta".
Nunca fui à cadeia da Mónicas, sei que é a actual "residência" dessa maravilhosa companhia que já tantos bons espectáculos me deu, em sítios vários, mas principalmente no seu(?) espaço do Bairro Alto (ahhh, aquela escadaria em caracol...), sempre sob a batuta de um dos maiores vultos do teatro português contemporâneo: Jorge Silva Melo.
Se somar a tudo isto a descrição cuidada e entusiasmante do Luís Galego, como é seu hábito, torna-se quase uma obrigação ir ver esta peça.

Lúcia Laborda said...

Passei por aqui e deixei beijinhos com votos de um feliz fim de semana!