Sunday, October 21, 2007

o construtor Solness...

Solness, construtor de casas numa pequena cidade da Europa do Norte, vive atormentado pela culpa e pelo medo de que os jovens lhe queiram tirar o poder que conquistou. Perdeu a alegria. E envelheceu. A sua mulher é a presença viva da morte dos filhos na consequência de um grande incêndio que lhe veio a possibilitar o êxito como construtor. Os seus empregados são as vítimas da sua crise. Um dia acontece o que ele temia: a juventude entra-lhe pela porta dentro. Uma rapariga vinda das montanhas chega a sua casa para lhe recordar um dia de alegria esquecida: o dia, dez anos atrás, em que, desafiando Deus, venceu as vertigens, subiu ao catavento da alta torre que construíra e nesse entusiasmo a beijou, era ela ainda menina. Nesse dia prometeu-lhe que havia de voltar para fazer dela uma princesa e lhe dar um reino. A rapariga, agora mulher feita, vem exigir o cumprimento da promessa e acaba por transformar a sua vida. Liberta-o da culpa, dos deveres familiares, da dependência dos empregados e devolve-lhe a alegria. Solness volta a ter confiança em si próprio, vence as vertigens e volta a subir a uma torre muito alta. Mas o gesto é maior que o homem e o Construtor cai da torre e morre. E Hilde, o anjo ou demónio que o veio visitar, apesar da tragédia, ganha de facto um reino: aprende a esperança de um mundo novo, finalmente liberto dos fantasmas do velho mundo.
In programa da Companhia

O Teatro da Cornucópia tem em cena uma das peças de Ibsen menos conhecidas, embora seja considerada como a sua obra-prima. Retrato fiel e, por vezes, realista do final do século XIX, O Construtor Solness é mais que uma história, como aliás sucede em geral com os textos do dramaturgo norueguês, sobretudo quando falamos de um dos seus textos de final de carreira, onde deparamos com um escritor maduro, sólido e desafiador. O seu texto que começa com uma frase amarga: "Não, creio que não vou aguentar muito mais", obriga a grandes interpretações, compromisso com um teatro corajoso, nada condescendente nem comercial, reclamando do público uma predisposição para uma viagem íntima. É um texto filosófico, com ironia, metáforas, muito pensamento, abundante teoria sobre relações. Solness, ao que consta, baseado em experiências de vida pessoais, pode ser um espelho do próprio escritor e da sua condição de artista. Mas é essencialmente a imagem de um velho mundo, o poder da burguesia ou até a “civilização ocidental em luta com a sua própria decadência”. É uma peça de imensa violência interior.

Na Cornucópia o texto é servido por excelentes actores, ou não fosse Luís Miguel Cintra o próprio Construtor Halvard Solness, secundado, e num registo adequado, por Beatriz Batarda, no papel de Hilde. Fosse qual fosse o desempenho geral, colectiva e individualmente, Luís Miguel Cintra, por si, tornava obrigatório assistir a esta peça. É, em grande parte, graças a este trabalho de actor, onde a maneira de expressar os sentimentos é muito contemporânea, que a peça se torna realidade tão perceptível, num texto que caminha numa linha divisória entre o real e o sonhado. Se por um lado, a descrição da pequena burguesia, os dramas diários abarrotados de silêncios ou as pequenas traições e mentiras são testemunho de actualidade social, por outro a história de Solness e Hilde, uma rapariga que o procura dez anos depois de uma estranha promessa, transporta-nos para o campo do onírico, do sonho e do real. O mesmo campo dos castelos de sonho que ambos procuram e onde sonham viver. Onde nós seres reais também procuramos e sonhamos viver. Eu, pelo menos…

Ali, na Cornucópia onde o teatro faz todo o sentido e de onde saio com aquele sentimento que se tem quando se esteve face a uma obra de arte...
Ler aqui textos do encenador e de Luís Miguel Cintra.

17 comments:

Jasmim said...

olá
Que bom tê-lo aqui no seu blog.
Fiquei cm curiosidade sobre a peça. Agora que estou quase livre posso sonhar em por a arte e a cultura em dia.
Ah! gostei do Poema "dá-me a tua mão".
Obrigada pela inspiração que me foi dando nestes últimso tempos.
Até para a semana

pin gente said...

procuro e sonho viver, eu, também...
apesar de nÃO ter a idade da hilde, que importa? que me importa?procuro e sonho viver também...
abraço
luísa

e josé gomes ferreira... lindo!
como é bom "andar" de mão dada.

João Roque said...

Amigo Luís
esta peça tem vindo a "entrar" em mim, em crescendo; desde a primeira notícia, até ao aprofundar das críticas lidas, ao facto inédito do L.M.Cintra não ser o encenador, à presença da mais fabulosa actriz da sua geração, Beatriz Batarda, e agora este teu texto, que decerto já esperava, pois me havias falado do interesse em assistir à peça, tudo contribui para que de hoje a uma semana, domingo, na matinée, eu lá esteja a aplaudi-la.
Abraço, e "até breve".

firmina12 said...

agradeço o seu comentário, e apesar de estar sempre a morrer, ainda não foi para sempre (parece-me)

Fernando Pinto said...

A vida é um palco onde somos obrigados a interpretar quase tudo... Quem nunca afivelou uma máscara?

Estou a escrever este comentário num Teatro, imagina só!

Abraço

Maria said...

Estão reunidos os "ingredientes" mais que suficientes para ser uma bela peça, e para uma ida até à Cornucópia...

Maria P. said...

Sem dúvida a "receita" aqui exposta abre o apetite!
Mais um excelente post.

Beijinho e boa semana Luís*

Sol da meia noite said...

Adorei esta fantástica reflexão sobre a vida.
"Mas o gesto é maior que o homem e o Construtor cai da torre e morre."
Para quê ir além do que se pode?...
Ambição desmedida ou loucura?...
*

Lúcia Laborda said...

O amor é capaz de remover montanhas. Ele é a mola mestra do mundo. Pena que existam tantas pessoas que não tenham se dado conta disso. E a maior prova disso, são as guerras, etc.
Lindo post! Que sua semana seja feliz!
Beijos

Ana Paula Sena said...

Que excelente sugestão! Um autor a revisitar com mais atenção, sem dúvida.
É pelo sonho que vamos... :)
Boa semana!

P.S. - Gostei imenso do desenho da Doris Lessing, ali ao lado!:)

Espaços abertos.. said...

Mais uma excelente sugestão...
O amor é baluarte de todos os sentimentos.
Bom início de semana amigo
Bjs Zita

avelaneiraflorida said...

A Cornucópia é sempre sinal de QUALIDADE!!!!
Os comentários/sugestões que aqui nos deixa, Caro LUÍS, igualmente!!
"BRIGADOS"!!!!!

Anonymous said...

"Um dia acontece o que ele temia: a juventude entra-lhe pela porta dentro."

Luís, tantas e tantas vezes aquilo que mais tememos sucede: a juventude das coisas vem dizer-nos que existem montanhas para além das planícies. E que a vida cobra sempre àqueles que não ousam enfrentar a montanha mágica... O amor é, inquestionavelmente o motor do mundo.

A tua crónica uma delícia, como sempre.

Não ir ao teatro regularmente, mas ter que, como tu, olha com olhos de ver e nos revela o seu olhar, é, direi um previlégio para cada um que por este blog passa.

Um abraço saudoso, "brother"
Mel de Carvalho

Lúcia Laborda said...

Passei pra lhe ver e deixei beijinhos...

Jonice said...

Não consigo transpor o Atlântico. Mas como eu simplesmente amo ler teatro vou procurar o livro! Luís, tens sido meu melhor fornecedor de boas dicas. Obrigada :)

Beijinhos e ótimo domingo

Isabel Victor said...

Excelente !

Anonymous said...

Teatro da Córnucópia, uma enorme falha minha mas irei lá com toda a certeza um dia destes...

"O mesmo campo dos castelos de sonho que ambos procuram e onde sonham viver" não procuramos todos?

Beijinho